A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (33)

 

A santificação jamais terá fim nesta vida. Nós não somos perfeitos, nem o seremos enquanto estivermos neste modo de vida terreno. Buscamos a perfeição e caminhamos em sua direção. Contudo, como não estamos livres da influência do pecado, significa que a nossa caminhada não é sempre na mesma direção. Muitas vezes, avançamos, outras vezes, lamentavelmente retrocedemos. Somos tentados a seguir atalhos que se mostram fascinantes, mas que nos conduzem ao desvio de rota do propósito de Deus em nos tornar cada vez mais santos conforme à imagem de Seu Filho.

 

Todavia, neste processo, até mesmo as nossas quedas e desvios, de alguma forma, fazem parte do nosso currículo salvador – deixando cicatrizes em nossa alma, é verdade –  que tem como propósito final glorificar a Deus.

 

A oração do Pai Nosso indica que somos pecadores carentes da misericórdia perdoadora de Deus.[1] O pecado continuará por todo este estado de existência a exercer influência sobre nós, por isso, qualquer conceito de perfeccionismo espiritual, que declare que o crente não mais peca, é ilusório e, portanto, antibíblico.[2] A Palavra de Deus ensina enfaticamente que nós pecamos mesmo após o nosso novo nascimento.[3] A Escritura nos desafia e instrui: “Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, limpo estou do meu pecado?” (Pv 20.9). “Não há homem justo sobre a terra, que faça o bem e que não peque” (Ec 7.20). (Vejam-se: Rm 6.20; 7.13-25; Tg 3.2. 1Jo 1.8).

 

O pecado tem um poder sutil. Ele nos aliena de Deus e, consequentemente de nós mesmos. Fornece-nos óculos coloridos por meio dos quais nunca enxergamos a gravidade de nossa real situação. A visão do pecado, por esta óptica, sempre nos parecerá fascinante e atraente. O Cristianismo, no entanto, tem como um de seus ingredientes fundamentais, a consciência de que somos pecadores e, que, sem o perdão de Deus permanecemos sob a sua ira.

 

O apóstolo João não nos deixa nutrir nenhuma ilusão quanto a isso. Escreve aos crentes de todas as épocas, e nos adverte quanto ao fato concreto e real de nossos pecados: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1.10/1Jo 2.1).

 

Todavia, é preciso que entendamos que a consciência da não existência do perfeccionismo espiritual não nos pode conduzir ao extremo oposto de nos acomodar com o pecado e, até mesmo, nutrir certo orgulho em preservá-lo. Pecado intocável certamente é cultivado com mimos em nosso coração por satanás.

 

Portanto, a questão aqui é de equilíbrio: Não alcançamos a perfeita santidade, contudo, devemos buscá-la constantemente sem esmorecer. O que nos distingue da nossa antiga condição, além da consciência de que somos pecadores, é que não mais temos prazer no pecado. Podemos até dizer que o pecado é um acidente de percurso na vida dos regenerados.[4]

 

Isto indica a necessidade de o convertido adquirir novos hábitos pela prática da verdade em amor (Ef 4.15).[5] A graça de Deus é educadora (Tt 2.11-15), agindo por meio das Escrituras, nos corrigindo e educando na justiça para o nosso aperfeiçoamento (2Tm 3.16,17). Alguns desses hábitos são: leitura da Palavra, oração, participação dos cultos, esforço no anúncio do Evangelho e ajuda aos irmãos na fé.

 

O nosso crescimento externo deve ser acompanhado pelo aprofundamento e solidificação de nossas raízes.  Altura exige profundidade e solidez. Por isso, o nosso crescimento profissional, social, econômico, cultural, etc., deve vir acompanhado necessariamente de um alimento mais sólido, buscado não na mera superfície, para que possamos ter, não simplesmente, uma aparência espiritual teatral e cosmética, mas real e verdadeira.

 

Árvores mais altas necessitam de raízes mais profundas e vigorosas. A nossa projeção em geral vem acompanhada de tentações mais sofisticadas e sutis, às quais se configuram de maneira diferente. Possivelmente o nosso arsenal espiritual, se não estiver em constante sincronia com a Palavra, estará desatualizado para uma batalha na qual já entramos vencidos porque nem sequer a percebemos como tal…

 

Ao povo da Aliança que se desviara do caminho do Senhor, este lhe diz: “Aprendei (למד) (lâmad) a fazer o bem” (Is 1.17).[6] A santificação é justamente isto: um santo aprendizado guiado pelo Espírito, tendo como constituição normativa e legislativa do nosso pensar, agir e sentir, a Palavra de Deus. Portanto, a santificação envolve uma nova “alfabetização” espiritual guiada pela Palavra de Deus.

 

Louis Berkhof (1873-1957) usa uma figura para ilustrar a nossa nova condição:

 

Uma criança recém-nascida é, salvo exceções, perfeita em suas partes, mas não está no grau de desenvolvimento ao qual foi destinada. Justamente assim, o novo homem é perfeito em suas partes, mas, na presente vida, continua imperfeito no grau de desenvolvimento espiritual.[7]

 

O crente é chamado a uma caminhada constante.            O Cristianismo é um caminho de vida, fundamentado na prática do evangelho, conforme ensinado por Jesus Cristo. A santificação é, portanto, um desafio a perseguirmos este caminho, empenhando-nos por fazer a vontade de Deus. Por isso, a santificação nos fala de caminharmos sempre em direção ao alvo proposto por Deus, com os nossos corações humildes, desejosos em agradar a Deus, de fazer a vontade dele com o sentimento adequado. A vida cristã não é a de um transeunte em férias, sem compromissos, sem agenda definida. A vida cristã se adéqua melhor à figura do peregrino, sempre buscando o melhor caminho para chegar ao seu destino. O cristão está comprometido com o propósito de seu Senhor (Ef 1.4). Todo o seu coração deve estar voltado para isso.

 

Portanto, a santificação não é algo periférico, ou acidental na vida do crente, antes, é um propósito para que devamos nos concentrar com todas as nossas forças espirituais a fim de cumprir o plano de Deus para nós. Em síntese: a santificação é um imperativo expresso por Deus em sua Palavra para todos os seus filhos. A vida cristã é um desafio à santidade conforme o propósito de Deus. De fato, não pode existir vida cristã estagnada, acomodada. A vida cristã é um desafio à santidade, conforme o santo e benfazejo propósito de Deus.[8]

 

Por isso, repito: na vida dos eleitos de Deus não há lugar para a acomodação no pecado. Deus nos chama à santidade conforme o seu propósito sábio, soberano, santo e eterno. Sendo assim, a santificação faz parte essencial da vida da Igreja.

 

Maringá, 22 de março de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 

*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa

 


[1] Lutero (1483-1546), em seus sermões sobre o “Pai Nosso”, proferidos em 1517, nos chama a atenção para o fato de que, quando oramos a Deus pedindo que “Faça a Sua vontade”, estamos afirmando que desobedecemos a Deus, confessando “contra nós próprios” que não cumprimos a Sua vontade. Acrescenta: “… Uma vez que temos de fazer esta oração até a morte, segue-se que até à hora da nossa morte seremos também acusados de sermos os que desobedeceram a vontade de Deus. Quem, pois, pode ser orgulhoso ou subsistir à sua própria oração, quando nela descobre que, se Deus o quisesse tratar com justiça, o poderia fazer, a toda a hora e com toda a equidade condenando-o e reprovando-o como desobediente, desobediência que ele confessa com a sua boca e de que está convencido?” Portanto, conclui Lutero, esta petição deve nos conduzir à humildade, reconhecendo a iniquidade de nossa “vontade própria”, e a procurar sinceramente na graça de Deus a remissão de toda a nossa desobediência (Martinho Lutero, Explicação do Pai Nosso, Lisboa: Edições 70, (Estante Espiritualidade), (1996), p. 46ss).

[2] Veja-se a exposição da teoria e a sua refutação em: Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 2, p. 618-624.

[3] “Quanto trazemos ainda conosco de nossa carne é algo que não podemos ignorar, pois ainda que a nossa habitação está no céu, todavia somos ainda peregrinos na terra” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 13.14), p. 462). Veja-se também: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 166.

[4]Calvino escreve: “Todavia, que ninguém se engane nem se vanglorie do seu mal, ao ouvir que o pecado habita sempre em nós. Isso não é dito para que os pecadores durmam sossegados em seus pecados, mas unicamente com este propósito: que aqueles que, aborrecidos, tentados e espicaçados por sua carne, não fiquem desolados, não se desanimem e não percam a esperança; antes, que vejam que continuam no caminho certo e que tiveram bom proveito ao sentirem que a sua concupiscência vai diminuindo pouco a pouco, dia após dia, até chegarem à meta almejada, a saber, a eliminação derradeira e final da sua carne, alcançando a perfeição quando esta vida mortal tiver fim” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 166). Do mesmo modo, ver: Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 1), p. 32.

[5] “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Ef 4.15).

[6] Em outro lugar o salmista suplica: “Faze-me, Senhor, conhecer os teus caminhos, ensina-me (למד)(lâmad) as tuas veredas” (Sl 25.4). A ideia básica de (למד)(lâmad) é a de treinar e educar, acostumar-se a; familiarizar-se com; aprender. Para um estudo mais pormenorizado do emprego da Lâmad, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à Educação Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2013.

[7] L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 541.

[8] “Cristianismo não é você parar na conversão e no conhecimento de que os seus pecados estão perdoados, e então contentar-se com isso pelo resto da vida; cristianismo é ingressar e desenvolver-se rumo à medida da estatura da plenitude de Cristo. Precisamos desenvolver nossas mentes e nossas faculdades, se é que desejamos tomar posse disso. Se nos contentamos com menos que isso, não passamos de crianças em Cristo, e somos indignos deste glorioso evangelho” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 254).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *