A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (16)

4.8. Perseverança

 

A fé salvadora é aquela que permanece até o fim firmada em Deus e na Sua Palavra (Jo 8.30,31; Hb 10.39; Ap 14.12).[1] Essa é uma prova crucial.[2]

 

No entanto, o fundamento dessa certeza está em Deus, Aquele  que não fracassa em Seu propósito salvador como em tudo o mais. Ele gera a fé e nos conduz, a despeito de nossas fraquezas e percalços pelo caminho, à perseverança final. O propósito eterno de Deus é imutável (Hb 6.17; Rm 9.11).[3] A sua obra estabelecida na eternidade será consumada (Rm 8.29-30; Fp 1.6). Pela graça Deus nos atrai para Si e, pela graça nos preserva em comunhão consigo. (Jo 10.27-29).[4]

 

Aqui não há lugar para um quietismo solitário e misticamente irresponsável, nem para antinomismo que rejeita a lei em prol de uma graça barata inventada pelo homem, nem para um ativismo que no fundo supõe poder completar uma fé insuficiente.

 

Em determinada ocasião, o salmista Davi sentiu-se só e abandonado por Deus. Esta, sem dúvida, é uma provação dolorosa.

 

No salmo 13, Davi após descrever as suas angústias, incertezas e o seu circunstancial senso do abandono de Deus, revela, por fim, uma fé viva e vigorosa.

 

Davi ao escrever este salmo estava numa situação aflitíssima, passando por grande angústia e provação. Como Davi viveu muitos desses momentos, é difícil determinar quando ele o redigiu.      É possível que tenha composto este salmo no deserto, quando fugia de Saul que queria matá-lo para que ele não se tornasse o rei de Israel, conforme Samuel o ungira cumprindo a ordem do Senhor (1Sm 16.1,3,12,13).[5]

 

A sua situação no deserto nunca fora confortável. Durante os cerca de nove anos em que viveu foragido, além dos incômodos naturais, corria constante risco de morte, deslocando-se de um lado para o outro sob a perseguição implacável de Saul (1Sm 23.14; 25-28; 24.1-2),[6] contando às vezes com a amizade sincera de uns (1Sm 23.15-18)[7] – destacando-se neste caso a lealdade de Jônatas –, e sem necessariamente contar, tinha traições voluntárias de outros (1Sm 23.10-12; 23.19ss; 26.2).

 

No entanto, ele declara a sua fé perseverante de Deus: “No tocante a mim, confio na tua graça; regozije-se o meu coração na tua salvação” (Sl 13.5).

 

Um elemento fundamental à fé é a oração. A oração é um imprescindível exercício de nossa fé e esperança.[8]

 

O verso 3 retrata a grande transição na vida do salmista.[9] Ele clamou a Deus, o seu Deus. Na oração, encontramos o descortinar das promessas de Deus tão bem registradas em sua Palavra, mas, que às vezes, para nós, homens e mulheres do século XXI, ficam esquecidas ou, não nos soam como verdades objetivas em nossos desafios contemporâneos. Por vezes há a nítida sensação de que o culto a Deus é um mundo à parte, um faz de conta agradável e enternecedor, mas, que nós, precisamos em seguida despertar do sonho para voltarmos à nossa vida cotidiana com suas lutas, prioridades e valores que, por sinal, são bastante distantes daqueles que cultivamos durante o momento de “adoração”.

 

A sensibilidade espiritual de Davi, no entanto, não servia de pretexto para o esmorecimento de sua fé, antes ele declara: “No tocante a mim, confio na Tua graça (ds,x,)(Heisedh)”[10] (Sl 13.5).

 

Por vezes, as aflições presentes em sua aparente onipresença e perenidade, podem se tornar mais fortes do que a nossa capacidade de esperar com perseverança para além delas.

 

Calvino comenta:

 

Seguindo esse exemplo, devemos então contender contra as tentações, protegidos pela certeza de fé, mesmo submersos no mais emaranhado dos conflitos [cotidianos], confessando que as calamidades que nos induzem ao desespero têm de ser vencidas; justamente como vemos que a fraqueza da carne não podia impedir Davi de recorrer a Deus e de encontrar nele seus recursos.[11]

 

Davi reconhece que a sua confiança não está depositada em homens ou nos seus méritos, antes, na graça de Deus. É somente pela fé que podemos visualizar e nos apropriar da graça de Deus que nos consola e sustenta.

 

A questão é: como perseverar em meio às aflições? O caminho está em depositar a nossa fé unicamente na promessa de Deus. Nós não precisamos de nada além da Palavra de Deus. “A fé que precisa de mais do que a simples Palavra de Deus em mandamento e promessa, chega a ser tentação do próprio Deus”.[12]

 

Um grande desafio para nós é crer na Palavra e continuar crendo quando as promessas de Deus parecem, diante de nossos olhos incrédulos, ter falhado; quando o nosso contexto parecer indicar que a “justiça” de Deus nos conduz ao fracasso e os nossos meios são mais eficazes. Esperar na Palavra significa permanecer confiantes apesar das adversidades e da condução que o mundo dá às nossas inquietações, apresentando soluções aparentemente finais para os nossos problemas.

 

Encontramos o testemunho do salmista referente a estas experiências: “Alegraram-se os que te temem quando me viram, porque na Tua Palavra tenho esperado” (Sl 119.74). “Desfalece-me a alma, aguardando a tua salvação; porém espero na tua palavra” (Sl 119.81). “Tu és o meu refúgio e o meu escudo; na tua palavra espero” (Sl 119.114).

 

A fé cristã estará sempre associada à Palavra, à busca de santidade em nosso viver. A perseverança não é mera teimosia ou acomodação pecaminosa, antes é um perseverar em santidade.[13] A graça da fé se evidencia também na graça da perseverança até à comsumação da obra de Deus em nós (Fp 1.6).[14]

 

Sem dúvida, “pessoas justificadas podem cair de degraus da graça, podem abandonar o primeiro amor, perdem o favor de Deus por um tempo, mas não perdem sua justificação”.[15] Aqui não há lugar para arrogância ou suposta superioridade espiritual. É Deus quem nos sustenta. Por isso, o povo de Deus pelo poder do seu Senhor perseverará até o fim. Somente esses, de fato, nasceram de novo pelo Espírito.[16] Essa é a nossa convicção amparada na fidelidade de Deus que nos sustenta. Portanto, aqueles a quem Deus chamou, justificou. Esses já são considerados glorificados, porque a obra de Deus não poderá ser frustrada (Rm 8.29-30).[17]

 

Todavia, a despeito da extrema relevância da fé,  ela se tornará desnecessária: No céu já não mais precisaremos de ter fé pois, a plenitude daquilo que esperávamos pela fé foi alcançada. (1Co 13.9-13).

 

Maringá, 04 de março de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa

 


 

[1]30 Ditas estas coisas, muitos creram nele.  31 Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos” (Jo 8.30-31).“Nós, porém, não somos dos que retrocedem para a perdição; somos, entretanto, da fé, para a conservação da alma” (Hb 10.39). “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 14.12).

[2]Veja-se: John Murray, Redenção: consumada e aplicada, São Paulo: Cultura Cristã, 1993, p. 168.

[3]“Por isso, Deus, quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, se interpôs com juramento” (Hb 6.17). “E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama)” (Rm 9.11).

[4]27 As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem.  28 Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão.  29 Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar” (Jo 10.27-29).

[5]“Disse o SENHOR a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei (…) 3 Convidarás Jessé para o sacrifício; eu te mostrarei o que hás de fazer, e ungir-me-ás a quem eu te designar. (…) 12 Então, mandou chamá-lo e fê-lo entrar. Era ele ruivo, de belos olhos e boa aparência. Disse o SENHOR: Levanta-te e unge-o, pois este é ele. 13 Tomou Samuel o chifre do azeite e o ungiu no meio de seus irmãos; e, daquele dia em diante, o Espírito do SENHOR se apossou de Davi. Então, Samuel se levantou e foi para Ramá” (1Sm 16.1,3,12,13).

[6]14 Permaneceu Davi no deserto, nos lugares seguros, e ficou na região montanhosa no deserto de Zife. Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o entregou nas suas mãos. (…) 25Saul e os seus homens se foram ao encalço dele, e isto foi dito a Davi; pelo que desceu para a penha que está no deserto de Maom. Ouvindo-o Saul, perseguiu a Davi no deserto de Maom. 26 Saul ia de um lado do monte, e Davi e os seus homens, da outra; apressou-se Davi em fugir para escapar de Saul; porém este e os seus homens cercaram Davi e os seus homens para os prender. 27 Então, veio um mensageiro a Saul, dizendo: Apressa-te e vem, porque os filisteus invadiram a terra. 28 Pelo que Saul desistiu de perseguir a Davi e se foi contra os filisteus. Por esta razão, aquele lugar se chamou Pedra de Escape.  1Tendo Saul voltado de perseguir os filisteus, foi-lhe dito: Eis que Davi está no deserto de En-Gedi. 2Tomou, então, Saul três mil homens, escolhidos dentre todo o Israel, e foi ao encalço de Davi e dos seus homens, nas faldas das penhas das cabras monteses” (1Sm 23.14; 25-28; 24.1-2).

[7] 15 Vendo, pois, Davi que Saul saíra a tirar-lhe a vida, deteve-se no deserto de Zife, em Horesa. 16 Então, se levantou Jônatas, filho de Saul, e foi para Davi, a Horesa, e lhe fortaleceu a confiança em Deus, 17 e lhe disse: Não temas, porque a mão de Saul, meu pai, não te achará; porém tu reinarás sobre Israel, e eu serei contigo o segundo, o que também Saul, meu pai, bem sabe. 18 E ambos fizeram aliança perante o SENHOR. Davi ficou em Horesa, e Jônatas voltou para sua casa” (1Sm 23.15-18).

[8]Veja-se: João Calvino, Efésios, São Paulo: Edições Paracletos, 1998, (Ef 6.18), p. 195.

[9]Atenta para mim, responde-me, SENHOR, Deus meu! Ilumina-me os olhos, para que eu não durma o sono da morte(Sl 13.3).

[10]ds,x cuja etimologia é obscura, pode ser traduzido por “bondade”, “graça”, “benevolência”, “benignidade”, “clemência”, “beneficência”, “humanidade” (ARA. 2Sm 2.5), “fidelidade” (ARA. 2Sm 16.17) e “misericórdia”. Ocorre cerca de 247 vezes no Antigo Testamento, principalmente nos Salmos (127 vezes). Figuradamente, Deus é chamado de “Misericórdia” por Davi, no Salmo 144.2; a sua misericórdia dura para sempre (Sl 100.5; 106.1;107.1; Jr 33.11). Por isso Deus deve ser louvado (Sl 107.8,21, 31).

A ideia principal é a de que Deus manifesta o seu amor ativamente na forma de uma relação de um pacto; ds,x é um amor pactual, solícito e constante (Dt 7.9,12; Jr 31.3). O ds,x é a causa e o efeito do Pacto; Deus fez o Pacto por misericórdia; Ele revela a sua misericórdia de acordo com o Pacto (1Rs 8.23 [2Cr 6.14]; Ne 1.5; 9.32; Is 55.3; Dn 9.4).

     Devido ao seu ds,x, Deus voluntariamente elege o seu povo, mantendo-Se fiel nesta relação independentemente da fidelidade circunstancial dos seus eleitos (Dt 7.6-11; 2Sm 2.6; Sl 36.5; 57.3; 89.49; Is 54.10; 55.3).

[11]João Calvino, O Livro de Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 13.1), p. 262-263.

[12]D. Bonhoeffer, Tentação, Porto Alegre, RS.: Editora Metrópole, 1968, p. 52.

[13]Veja-se: John Murray, Redenção: consumada e aplicada, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 138-139.

[14]Veja-se: Charles H. Spurgeon, A Perseverança na Santidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, p. 21.

[15]Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 267.

[16]Veja-se: Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 659.

[17]Veja-se: J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 128.

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