A Pessoa e Obra do Espírito Santo (51)

2) Tudo pertence a Ele (Continuação)

Ateísmo teórico e prático

Davi, escrevendo o Salmo 14  – que em última instância descreve a realidade potencial de todo o homem sem Deus -, fala de modo mais específico daquele que nega o transcendente, cometendo o grande ato de insensatez: “Diz o insensato (lb’n”) (nabal) no seu coração (ble)(leb): Não há Deus (~yhil{a/)(elohim). Corrompem-se (tx;v’) ((shahat) e praticam abominação (b(;T) (ta’ab)” (Sl 14.1).

     O ateísmo do iníquo não é apenas teórico (especulativo), antes, é eminentemente prático,[1] se manifestando em seu comportamento. Diria mais: ele é mais prático e funcional do que teórico.[2] Este salmo (Sl 14) trata de ambos.[3] De certo modo, o ateísmo teórico  e o prático se constituem em uma cosmovisão.[4] Enquanto o teórico trata da questão da existência de Deus, o prático reflete sobre a implicação da existência ou não de Deus na vida humana.[5]

     Um ateísmo apenas teórico revelaria a consistência de sua inconsistência; em síntese, a sua nulidade como princípio intelectual e teórico. Terminaria apenas em uma abstração. Isso pode até parecer interessante, mas não é. Do mesmo modo, a incredulidade do crente pode revelar também a consistência de sua inconsistente fé. É preciso confiar no Senhor sem vacilar (Sl 26.1).[6] Para isso é necessário guardar a lei de Deus no coração. Ela firma os nossos passos (Sl 37.31).[7]

     Por isso, uma fé apenas teórica é altamente reveladora. No caso do ateu revelaria a fé daquele que diz não crer. No caso do crente, revelaria a incredulidade de sua fé.

     O ateu aqui descrito age a partir de seu pressuposto e, num processo natural, reforça o seu pressuposto em seus atos.

     Rookmaaker (1922-1977) observa com perspicácia: “O mundo não se tornou ateu porque os ateus pregaram arduamente, mas porque trabalharam arduamente”.[8]

     Como o ateu quer viver como se Deus não existisse, tende a racionalizar o seu comportamento alegando a inexistência de Deus e, por isso mesmo, a falta de sentido metafísico da existência. Embarca assim num círculo vicioso no qual sempre é reforçado pelos motivos que justificam a sua impiedade. Aqui temos a essência do agir e pensar néscio. O ateísmo teórico produz seus frutos na conduta de seu proponente.

     Spurgeon interpreta:

Onde há inimizade contra Deus, há uma profunda depravação interior da mente. As palavras ser vertidas por eminentes críticos num sentido ativo: “eles agiram corruptamente”; isso pode servir para nos lembrar que o pecado não está só passivamente em nossa natureza como fonte do mal, mas nós mesmos abanamos ativamente a chama e nos corrompemos, tornando mais escuro ainda o que já era tão escuro como as próprias trevas. Nós rebitamos nossas correntes pelo hábito e continuidade.[9]

     A negação de Deus traz sem seu bojo a diminuição de nossa própria humanidade. A grandeza do homem está em Deus que o criou à Sua imagem. Na negação de Deus desfiguramos a nossa própria imagem; nos corrompemos e nos aproximamos muito, com inúmeros agravantes, dos animais, os quais, por sua vez, revelam em muitas ocasiões, mais discernimento do que o homem ímpio (Is 1.2-4; Jr 4.22; 8.7).[10] Não há grandeza no homem fora de Deus. A majestade de Deus enche toda a Terra. Sem Deus o homem fez-se nulo em todo o seu pensar, sentir e agir (Rm 1.18-27).

O insensato nega a realidade transcendente. Não existe Deus nem seres angelicais.[11] O seu mundo é puramente material. Ele solidifica isso em seu coração, não simplesmente, da boca para fora, daí dizer “no seu coração”, a sede de sua emoção, razão e vontade. Ele se alimenta em seu “eu essencial” da negação de Deus. A língua expressa o que o seu coração sente e, o coração é retroalimentado pelas palavras que dele procede.

Ainda que ele possa não ter a ousadia de negar verbalmente a existência de Deus, vive conforme as suas inclinações pecaminosas e interesses circunstanciais, sem nenhum temor de Deus. Ele expressa de forma prática o que crê e labora em seu coração.

A ideia do texto é que o ateísmo como não permanece apenas no campo teórico, faz com que nos desviemos totalmente dos preceitos de Deus. Há um extravio, por isso a corrupção intelectual[12] e moral. Limito-me à questão intelectual. O salmista diz que ele se corrompe (tx;v’) ((shahat).[13] A palavra tem também a ideia de ruína (2Cr 34.11; Pv 6.32); destruição (Sl 78.38,45; Is 37.12); danificar (Jr 49.9); poço (Sl 7.16); cova (Sl 9.16), lodo (Jó 9.31).

O insensato na afirmação de que não há Deus, perdendo a dimensão metafísica  (ontológica) da existência, se arruína, se destrói intimamente, tem desestruturada toda a sua forma de pensar, perceber a realidade (epistemologia) e, consequentemente, de organizar o seu pensamento (lógica) a partir de fundamentos equivocados. Isto se manifesta inclusive em sua conduta religiosa e ética. Ele escorregou e caiu na cova de seu próprio pensamento. Na vida humana há uma tríade que se relaciona e mutualmente se influencia: A ontologia, a epistemologia e a ética. É impossível dissociá-las de forma coerente.[14]

Somente a mente regenerada pode ter uma visão abrangente e significativa da verdade, encontrando nas Escrituras um guia seguro para nos conduzir na avaliação do significado de todas as coisas e nos rumos a serem tomados.

Van Til (1895-1987), assim apresenta a questão:

Nossa consciência não cria objetividade e não se apresenta como um padrão de interpretação da objetividade; porém, só ela recebeu a garantia de validade e, portanto, só ela pode falar dessa validade perante o mundo. (… ) Nossas proposições metodológicas não nos prendem a uma análise subjetiva como tal. Ao contrário, nosso ponto de partida, imediatamente, aponta para uma revelação redentora especial. Devemos usar as Escrituras como nossa fonte de informação sobre a nossa consciência, bem como sobre os outros tipos [de consciência].  (…) Tudo o que queremos dizer é que, com a experiência da regeneração em nossos corações, imediatamente, nos voltamos para as Escrituras como nossa fonte de informação, porque a regeneração implica que deixamos Deus interpretar a experiência para nós.[15]

De forma antitética, verificamos a prática de abominações que consistem em atos totalmente contrários à Palavra de Deus, tais como a idolatria, o sacrifício humano (1Rs 21.26; Sl 106.40), atos sanguinários e fraudulentos. Deus abomina quem tais coisas praticam:“Os arrogantes não permanecerão à tua vista; aborreces a todos os que praticam (b(;T) (ta’ab) a iniquidade (!w<a’) (‘aven) (Sl 5.6).

     Contrariamente àqueles que resistem ao Senhor, temos aqui um convite a que sirvamos ao Senhor em adoração jubilosa, com temor, alegria e tremor. Nos versos 10 e 11 há um ultimato:[16] 10Agora, pois, ó reis, sede prudentes (lk;f’) (sakal); [17] deixai-vos advertir (rs;y”) (yasar) (= instruir, ensinar), juízes da terra. 11Servi (db;[‘) (abad) ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor” (Sl 2.10-11).

Em outras palavras, há uma intimação para que os reis usem sua inteligência,[18] tenham bom senso para analisar a questão de forma genética e prática: todo o poder pertence a Deus, percebam então a loucura de rebelar-se contra Ele.[19] Sejam sensíveis à advertência, ensino e instrução (rs;y”) (yasar) do Senhor, o qual é pródigo em ministrar instrução ao nosso coração (Sl 16.7). Retornem ao Senhor! Este retorno, resultante do aprender de Deus, deve se manifestar em obediência e serviço.

     Há um destaque à majestade soberana de Deus e ao mesmo tempo à alegria de poder participar ativa e voluntariamente do seu reinado. Como é bom poder servir ao Senhor com os nossos talentos. Servir ao Reino deve ser o grande alvo de nossa existência!

     A nossa razão deve ser serva da Escritura. É maravilhoso colocar a nossa inteligência, tempo, recursos e bens a serviço do Senhor. Exultar na condição de servos, não de senhores. Saber que não precisamos de cargos para poder fazer a obra de Deus com integridade. A alegria está no serviço de Deus – até mesmo por meio de cargos e funções -, em sabermos que somos admitidos graciosamente em suas fileiras. Não há nada mais gratificante nesta vida do que sermos alegres servos de Deus.

     O erudito missionário Schalkwijk, escreveu com propriedade:

Que bênção: lavar louça ou fazer continhas, lavrar a terra ou servir como deputado, tudo para a glória de Deus! Foi a Reforma que colocou novamente todas as atividades humanas nesse plano elevado, redescobrindo esse ensino bíblico.[20]

     Enquanto para os ímpios o governo de Cristo é juízo, para os fiéis é motivo de alegria e serviço ao Senhor (Sl 2.3,11).[21] Os súditos voluntários do Reino são felizes (Sl 2.12)[22] e, portanto, podem se alegrar em seu serviço (Sl 2.11).[23]

 Maringá, 14 de novembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “O ateísmo pode ser prático ou teórico, ou ambos. O ateu teórico nega a Deus; o ateu prático simplesmente vive como se Deus não existisse” (John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 149). Do mesmo modo, vejam-se: Luís Alonso Schökel; Cecília Carniti, Salmos I: salmos 1-72, São Paulo: Paulus, 1996, p. 255; Giulio Girardi, Introduccion: In: Giulio Girardi, dir. El Ateísmo Contemporáneo, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1971, v. 1, p. 56-61.

[2]“O ateísmo em questão é mais prático que teórico, não tento negar a existência de Deus, mas sim sua relevância” (J.A. Motyer, Os Salmos: In: D.A. Carson, et. al., eds. Comentário Bíblico: Vida Nova, São Paulo: Vida Nova, 2009, (Sl 14), p. 748). Do mesmo modo: Walter Brueggemann, The Message of the Psalms: a theological commentary, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1984, (Sl 14), p. 44.

[3]Veja-se: James M. Boice, Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 14), p. 114. Contrariamente, Harman entende que “O Salmo 14 não se preocupa com o ateísmo intelectual. Seu enfoque é antes a pessoa que é ateia prática, visto que ela renunciou sua aliança, e daí o Deus da aliança” (Allan Harman, Comentário do Antigo Testamento ‒ Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, (Sl 14), p. 105).

[4]Vejam-se: R. Albert Mohler Jr., Ateísmo Remix: um confronto cristão aos novos ateístas, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2009, p. 15-17; Battista Mondin, Quem é Deus?: Elementos da Teologia Filosófica, São Paulo: Paulus, 1997, p. 130.

[5] Cf. Giulio Girardi, Introduccion: In: Giulio Girardi, dir. El Ateísmo Contemporáneo, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1971, v. 1, p. 60-61. De forma mais ampla, veja-se: Robert O. Johann, El Ateísmo de los “crentes”: In: Giulio Girardi, dir. El Ateísmo Contemporáneo, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1971, v. 1, p. 365ss. Não discuto aqui a distinção entre o ateísmo (acredita que não se pode provar a existência de Deus) e o antiteísmo (que afirma dogmaticamente a não existência de Deus). (Veja-se  a distinção em: Atheism: In: William Fleming, The Vocabulary of Philosophy, Mental, Moral, and Metaphysical, 2. ed. New York: Sheldon & Company, 1869, p. 54-55).

[6]Faze-me justiça, SENHOR, pois tenho andado na minha integridade e confio no SENHOR, sem vacilar” (Sl 26.1).

[7]“No coração, tem ele a lei do seu Deus; os seus passos não vacilarão” (Sl 37.31).

[8]H.R. Rookmaaker, A Arte não Precisa de Justificativa, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, p. 35.

[9] C.H. Spurgeon, The Treasury of David, London: Marshall Brothers, Ltd., (c. 1870), v. 1, p. 161.

[10]“Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim. 3 O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. 4 Ai desta nação pecaminosa, povo carregado de iniquidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o SENHOR, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás” (Is 1.2-4). “Deveras, o meu povo está louco, já não me conhece; são filhos néscios e não inteligentes; são sábios para o mal e não sabem fazer o bem” (Jr 4.22). “Até a cegonha no céu conhece as suas estações; a rola, a andorinha e o grou observam o tempo da sua arribação; mas o meu povo não conhece o juízo do SENHOR” (Jr 8.7).

[11]Keil e Delitzsch vão além, entendendo que a negação é da existência de um Deus pessoal (C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, MI: Eerdmans, (1871), v. 5, (I/III), (Sl 14.1), p. 203-204).

[12]“A insensibilidade para com Deus bem como a insensibilidade moral fecham a mente para a razão” (Louis Goldberg, Nabal: In: R. Laird Harris, et. al., eds., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 910). Do mesmo modo, Derek Kidner, Provérbios: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1980, p. 40.

[13]Sl 9.16; 35.7; 78.45; 106.23; Sf 3.7.

[14] Veja-se: Vern S. Poythress, Redimindo a filosofia: uma abordagem teocêntrica às grandes questões, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 13-21.

[15]Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, v. 1, p. 34, E-book.  Posição 504 de 715.

[16] Veja-se: Frans Van Deursen, Los Salmos, Países Bajos: Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1996, v. 1, p. 159.

[17] A palavra se refere “à ação de, com a inteligência, tomar conhecimento das causas. (…) Designa o processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra consequência é a ênfase no ser bem-sucedido” (Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478).

[18] No entanto, o ímpio rejeita a instrução e o discernimento: “As palavras de sua boca são malícia e dolo; abjurou o discernimento(lk;f’) (sakal) e a prática do bem” (Sl 36.3).

[19]“Que espantosa é a loucura daqueles que seguem sendo seus inimigos” (C.H. Spurgeon, El Tesoro de David, Barcelona: Libros CLIE., 1989, v. 1, (Sl 2.10), p. 22).

[20]Francisco L. Schalkwijk, Meditações de um peregrino, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 166. “Quer você esteja fazendo a exegese do Salmo 110, quer esteja examinando as penas de um pica-pau, você deve oferecer a obra a Deus e ver esse esforço intelectual, essa erudição, como parte da adoração” (D.A. Carson: In: John Piper; D.A Carson, O Pastor Mestre e O Mestre Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 87).

[21]3Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. (…) 11 Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor” (Sl 2.3,11).

[22]“Bem-aventurados todos os que nele se refugiam” (Sl 2.12).

[23] “A verdadeira alegria da vida cristã também depende de um correto entendimento da doutrina” (D. Martyn Lloyd-Jones, A vida de paz, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2008, p. 26).

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