A Pessoa e Obra do Espírito Santo (337)

2) “Nosso trabalho vão será…” 1 

Verdadeiro serviço de Deus começa com a fé. Se transferirmos nossa entrega e confiança a qualquer outro objeto, defraudamo-lo da parte primordial de sua honra. ‒ João Calvino.2 
O tipo de dependência de Deus que podemos perceber durante a oração, particularmente quando enfrentamos tentações e tribulações na vocação, é uma manifestação de fé. À medida que confiamos em Cristo para a nossa salvação, passamos mais a confiar em Cristo em cada questão da nossa vida diária ‒ nossas vocações ‒ de tal maneira que, enquanto carregamos nossas cruzes, confiamos mais e mais na sua cruz, e crescemos na fé. ‒ Gene E. Veith Jr. 3 

Introdução

A graça de Deus é responsabilizadora. Paulo trabalha com esse princípio para demonstrar a loucura da arrogância de determinados mestres coríntios e seus incautos discípulos. Nos capítulos 1 e 3 Paulo indica o partidarismo existente na Igreja insuflado por falsos mestres. 

Agora, ele utiliza uma palavra para descrever o seu ministério, mostrando que pode ser aplicada ao trabalho de todos os que servem ao Senhor. Diz ele: somos despenseiros de Deus: “Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus. 2 Ora, além disso, o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel” (1Co 4.1-2).

Conforme vimos, quando trabalhamos com as qualificações dos presbíteros, a palavra usada por Paulo (oi)kono/moj) fora empregada por Cristo para se referir ao “mordomo fiel” (Lc 12.42). Em outra parábola, o contraste é estabelecido por intermédio da referência que Cristo fez ao “administrador infiel” (Lc 16.8), que tem o sentido de “injusto”, “iníquo”, “perverso”.4 A palavra traduzida por “despenseiro”, tinha o sentido de “mordomo” (Lc 12.42); “administrador” (Lc 16.1); “tesoureiro” (Rm 16.23) e “curador” (Gl 4.2). 

Conforme já destacamos, Pedro falando à Igreja em geral, diz que devemos servir uns aos outros em nossas vocações, “cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros (kalo/j oi)kono/moj) da multiforme graça de Deus” (1Pe 4.10). 

Assim sendo, a partir do texto de 1 Coríntios, podemos aprender algumas lições sobre os fiéis despenseiros de Deus no exercício de sua vocação. 

A) Têm consciência de que tudo pertence a Deus

  “Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1Co 4.7).

Paulo insiste no combate à arrogância daqueles que querem se nomear na Igreja como tendo grandes dons e competência. Sabemos que obviamente tudo pertence a Deus, contudo o quanto temos isto subjetivado em nós, sendo demonstrado em nossa vocação? Os nossos planos partem deste princípio? Quando fracassamos nos lembramos disso? E quando somos bem-sucedidos?

Paulo demonstra que tudo que temos origina-se em Deus. Se isso é assim, somos ainda mais devedores a Deus, visto que tudo que temos provém dele: “A nossa suficiência vem de Deus” (2Co 3.5). “Tudo provém de Deus” (2Co 5.18). Como corretamente comenta Calvino, “sejam quais forem os dons que possuamos, não devemos ensoberbecer-nos por causa deles, visto que eles nos põem sob as mais profundas obrigações para com Deus”.5

Um grande problema que enfrentamos, é saber lidar com o nosso ego. Ele parece nunca está consistentemente satisfeito. Sempre procura novas formas de se encher e se satisfazer. Porém, assim como o vício, a droga frequentemente utilizada da comparação, supervalorização de si e menosprezo para com o outros, parece, quando gera alguma droga estimulante em seu coração, torna-se cada vez mais fugaz. Por isso o nosso ego é cada vez mais carente de doses de reforço para se manter bem. 

Na realidade, estamos apenas intoxicando o nosso coração é ficando cada vez mais dependentes de nosso vício, chamado orgulho que se alimenta de vários formas, tendo como princípio ativo, a vaidade que busca a glorificação do eu. Tudo isso é bastante deprimente e fonte de frustração, ansiedade, inveja e divisão. 

Esquecer-nos de nós mesmos, o “autoesquecimento”, é libertador dessas lutas internas – que nos lembram as personificações de Hitler e Mussolini, do filme de Chaplin, desejosos de se mostrarem maior do que o outro 6 –, para servir a Deus sabendo quem somos em Cristo.7

Paulo tem clareza a respeito de sua vocação e do senhorio de Cristo: ele é despenseiro de Deus, não de si mesmo ou dos bens alheios, mas, de Deus. Tudo é de Deus, tudo pertence a Deus. As nossas vocações são meios pelos quais Deus se vale, graciosamente, para edificar a sua Igreja. Deve haver sempre em nós o senso de dependência de Deus e de compromisso social:

O povo de Deus, a comunidade de Deus, é Sua casa, que Ele edifica mediante a obra daqueles que vocacionou à tarefa, aos quais confia a administração da casa. Não devem considerar estas questões da casa como sendo assuntos particulares deles; são meramente mordomos dos dons que lhe foram confiados, e devem prestar contas da sua mordomia.8 

Temos, aqui, o privilégio e a responsabilidade de poder servir a Deus dentro de nossas vocações. 

Kuyper (1837-1920) comentando sobre os talentos que recebemos, conclui: “Os carismata ou dons espirituais são os meios e o poder divinamente ordenados pelos quais o Rei habilita a sua Igreja a realizar sua tarefa na terra”.9 O Carisma tem sempre um fim social: a Igreja, a comunhão dos santos.10 E também, como elemento de ajuda na proclamação do Evangelho (Hb 2.3-4)..11 

Calvino trabalha insistentemente com esse princípio:

As Escrituras exigem de nós e nos advertem a considerarmos que qualquer favor que obtenhamos do Senhor, o temos recebido com a condição de que o apliquemos em benefício comum da Igreja.

Temos de compartilhar liberalmente e agradavelmente todos e cada um dos favores do Senhor com os demais, pois isto é a única coisa que os legitima.

Todas as bênçãos de que gozamos são depósitos divinos que temos recebido com a condição de distribuí-los aos demais. 12 

Maringá, 10 de novembro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

[1] Primeira linha da segunda estrofe do Hino “Os Intentos de Deus” (A.C. Ainger/J.W. Faustini), Hinário Novo Cântico, nº 316.
[2] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3 (Sl 78.7), p. 202.
[3]Gene Edward Veith, Jr., Deus em Ação, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 118.
[4] a)diki/a (Lc 13.27; 18.6; Rm 1.18,29, etc.).
[5] João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.7), p. 113. 
[6] O Grande Ditador (1940).
[7] Veja o sugestivo livro de Timothy Keller, Ego transformado, São Paulo: Vida Nova, © 2014, 2019.
[8] J. Goetzmann, Casa: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 1, p. 373.
[9] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit,Chattanooga: AMG Publishers, 1995, p. 196.
[10] Veja-se: Frederick D. Bruner, Teologia do Espírito Santo, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 229. 
[11] Veja-se: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.4), p. 56.
[12]João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 36. “Qualquer habilidade que um fiel cristão tenha, deve dedicá-la ao serviço de seus companheiros crentes, como também submeter, com toda sinceridade, seus próprios interesses ao bem-estar comum da Igreja” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,São Paulo: Novo Século, 2000, p. 36). 

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