A Pessoa e Obra do Espírito Santo (185)

6.3.5. Arrependimento para a vida (Continuação)

Pecado como transgressão

Retornando à confissão de Davi, lemos: “Bem-aventurado aquele cuja iniquidade ((a$ep) (pesha’) (“transgressão”,[1] “violação”) é perdoada, cujo pecado é coberto” (Sl 32.1. Da mesma forma Sl 32.5).

A palavra traduzida por “iniquidade” significa revolta ou recusa a se submeter a uma legítima autoridade, ultrapassando o limite estabelecido (Nm 14.41; 1Sm 15.24).[2]

Para o transgressor, nesse caso, o que houve foi libertação; uma rebelião que elege um novo senhor que nada mais é do que o nosso ego com as suas inclinações, interesses e desejo de egorreferência. Agora, segundo pensa, assumiu o real controle de sua vida elegendo o seu eu como prioritário em detrimento de qualquer outra relação

  • de autoridade (Deus),
  • de amizade e lealdade (Urias),
  • senso de dever e honradez (Reino e família) ou
  • de respeito e integridade de caráter (em relação à Bate-Seba).

 Tem o sentido de rompimento de relacionamento, envolvendo a ideia de abandono de compromissos assumidos; uma quebra intencional de uma norma ou padrão; uma rebelião. É uma “afronta ostensiva dos homens à pessoa de Deus”.[3]

Iniquidade, neste texto (Sl 32), significa uma quebra proposital de um pacto e, consequentemente, de uma confiança depositada. É uma subversão proposital e consciente da Lei e do governo de Deus.[4] É como alguém que ergue o punho contra o padrão estabelecido por Deus.[5] É uma provocação aberta, explícita e descarada feita pelo homem a Deus.

A palavra tem um amplo emprego, sendo proveniente da esfera política (2Rs 1.1; 3.5,7; 8.20,22; 2Cr 21.10)[6] englobando o campo jurídico e familiar.

Davi quando poupou a vida de Saul pela primeira vez, mostrou-lhe a orla do seu manto que cortara, dizendo:

Olha, pois, meu pai, vê aqui a orla do teu manto na minha mão. No fato de haver eu cortado a orla do teu manto sem te matar, reconhece e vê que não há em mim nem mal nem rebeldia ((a$ep) (pesha’), e não pequei contra ti, ainda que andas à caça da minha vida para ma tirares (1Sm 24.11).

No entanto, ela se concentra de forma mais intensa na rebelião contra Deus.

Por meio de Isaías, Deus se refere deste modo ao povo de Israel: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados ((a$ep) (pesha’) contra mim” (Is 1.2).

“O sentido predominante de pesha’ é o de rebelião contra a Lei e a Aliança de Deus, e, por conseguinte, o termo é um substantivo coletivo que denota a totalidade de iniquidades e um relacionamento fraturado”, escreve Livingston.[7]

          Esta atitude gera um rompimento entre Deus e o homem. Sem que muitas vezes nos demos conta, a transgressão se constitui em um peso sobre nós. Este é o juízo condenatório de Deus: “A terra cambaleará como um bêbado e balanceará como rede de dormir; a sua transgressão ((a$ep) (pesha’) pesa sobre ela, ela cairá e jamais se levantará” (Is 24.20).

          Esta é a confissão do povo de Israel: “Porque as nossas transgressões ((a$ep) (pesha’) se multiplicam perante ti, e os nossos pecados testificam contra nós; porque as nossas transgressões ((a$ep) (pesha’) estão conosco, e conhecemos as nossas iniquidades” (Is 59.12).

Davi, carrega consigo a consciência de ter o seu pecado continuamente presente diante de seus olhos. O sentimento de culpa o corrói: “Pois eu conheço as minhas transgressões ((a$ep) (pesha’), e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

          A transgressão não é simplesmente um ato isolado. O seu desejo está arraigado no coração. O pecado não está simplesmente aonde vamos – ainda que haja lugares que estimulem mais a combustão pecaminosa –, mas, levamos conosco, para onde nos dirigimos e nos encontramos.

          O próprio Davi reconhece que o desejo de transgredir está no coração do ímpio. Ele alimenta isso no seu coração, no centro vital de sua existência.

A transgressão reflete a falta do temor de Deus: “Há no coração (ble) (leb) do ímpio a voz da transgressão ((a$ep) (pesha’); não há temor de Deus diante de seus olhos” (Sl 36.1).

A soberba é uma fonte de transgressão. Notemos que Davi  inicialmente sentiu-se seguro, pensando ter o controle total da situação. Ele julga ter um plano perfeito e não precisa prestar contas a ninguém. Conforme as circunstâncias foram se apresentando, ele tem o plano “b”, o “c” e quantos outros fossem necessários. Ele de fato se rebelou contra Deus; a soberba o dominou.

Já que Urias não cedeu, o melhor era eliminá-lo. Melhor ainda, cogitou: Fazê-lo pelas mãos dos inimigos em um combate; nada mais natural. Afinal, quantos morrem em uma guerra? Racionalizou apoiando pelo seu desejo concupiscente.

No salmo 19, Davi suplica a Deus: “Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão ((a$ep) (pesha’)(Sl 19.13).

Há sempre o perigo de nos sentirmos seguros demais, quando nos julgamos autossuficientes; quando podemos decidir sozinhos o que vamos fazer sem a orientação de Deus. Obviamente aqui as armadilhas e quedas múltiplas já estão armadas.

A nossa queda se avizinha quando nos julgamos seguros para fazer o que queremos, dando rédeas soltas aos nossos desejos independentemente de Deus e de sua Palavra.

No salmo 51 Davi confessa que sabe, tem consciência de suas transgressões:

Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade (desex) (hesed); e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões ((a$ep) (pesha’). (…) Pois eu conheço as minhas transgressões ((a$ep) (pesha’), e o meu pecado está sempre diante de mim (Sl 51.1,3).

          O caminho da transgressão é uma loucura que nos faz sofrer: “Os estultos, por causa do seu caminho de transgressão ((a$ep) (pesha’) e por causa das suas iniquidades, serão afligidos” (Sl 107.17).

Contudo, quando estamos dominados, enlaçados por um espírito transgressor, não percebemos; antes, vemos sempre além, um novo passo para a consecução de nossos planos. A transgressão nos enlaça. No exercício desta suposta liberdade prestamos um serviço escravo ao pecado que domina de forma cada vez mais intensa a nossa mente e se manifestará em nossos lábios, nos enlaçando:

Pela transgressão ((a$ep) (pesha’) dos lábios o mau se enlaça, mas o justo sairá da angústia (Pv 12.13).
No muito falar não falta transgressão ((a$ep) (pesha’), mas o que modera os lábios é prudente (Pv 10.19).
a transgressão ((a$ep) (pesha’) do homem mau, há laço, mas o justo canta e se regozija (Pv 29.6).

          Quando a injustiça prevalece por meio dos atos iníquos dos transgressores, parecendo não haver justiça, precisamos ter paciência e, nos firmar na verdade para que não corramos o risco de sermos seduzidos. O fim deles é evidente. Deus tem o absoluto controle sobre todas as coisas: “Quando os perversos se multiplicam, multiplicam-se as transgressões ((a$ep) (pesha’), mas os justos verão a ruína deles” (Pv 29.16).

          Pode parecer demorado, contudo, o caminho da transgressão é autodestruidor: “Quanto aos transgressores ((a$ep) (pesha’), serão, à uma, destruídos; a descendência dos ímpios será exterminada” (Sl 37.38). “Os estultos, por causa do seu caminho de transgressão ((a$ep) (pesha’) e por causa das suas iniquidades, serão afligidos” (Sl 107.17).

Por isso, o salmista roga a Deus que o livre de suas transgressões: “Livra-me de todas as minhas iniquidades ((a$ep) (pesha’); não me faças o opróbrio do insensato” (Sl 39.8).“Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões ((a$ep) (pesha’) (Sl 51.1).

O antídoto contra a transgressão é perseverar no reto caminho do Senhor. Por intermédio de Oséias Deus convoca o povo de Israel ao arrependimento, antes que seja tarde demais. Conclui então: “Quem é sábio, que entenda estas coisas; quem é prudente, que as saiba, porque os caminhos do SENHOR são retos, e os justos andarão neles, mas os transgressores ([v;P’) (pasha) neles cairão” (Os 14.9).

O transgressor não sabe andar por caminhos retos; ele gosta da aventura da transgressão, da sinuosidade. O que é reto é uma tentação ao deslize. Como ele carrega dentro de si o desejo pela transgressão, nada que seja justo, reto e puro está imune ao seu desejo de transigir, se rebelar, torcer, contaminar.

          Davi suplica: “Livra-me de todas as minhas iniquidades ((a$ep) (pesha’); não me faças o opróbrio do insensato” (Sl 39.8).

          Na velhice Davi clama pela misericórdia de Deus: “Não te lembres dos meus pecados (hf)f+Ah) (hatã’â) da mocidade, nem das minhas transgressões ((a$ep) (pesha’). Lembra-te de mim, segundo a tua misericórdia (desex) (hesed), por causa da tua bondade, ó SENHOR” (Sl 25.7).

          Todas as vezes que conscientemente quebramos a Lei de Deus −, desobedecemos a sua Palavra, desconsideramos o seu mandamento −, cometemos transgressão. A rebelião é contra o Senhor que nos instrui por meio de sua Palavra. Nestes casos, o sentimento de culpa é uma manifestação amorosa de Deus para com os seus filhos quando pecam. Precisamos reconsiderar o nosso caminho, confessar o nosso pecado e suplicar pelo perdão de Deus.

          Davi tinha plena compreensão de sua transgressão. Por isso mesmo, ele não se vale de expressões amenas para atenuar os seus pecados. Ele sabe que livre e conscientemente se revoltou contra Deus e contra a sua Palavra.

Maringá, 14 de maio de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Sl 5.10; 19.14; 25.7; 36.2.

[2]“Porém Moisés respondeu: Por que transgredis o mandado do SENHOR? Pois isso não prosperará” (Nm 14.41).“Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz” (1Sm 15.24).

[3]Alex Luc, Ps‘ In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 703.

[4]Veja-se: Jay E. Adams, Teologia do Aconselhamento Cristão, Eusébio, CE.: Editora Peregrino, 2016, p. 206-207.

[5]Cf. Bruce K. Waltke, James M. Houston e Erika Moore, Os Salmos como adoração cristã: um comentário histórico, São Paulo: Shedd Publicações, 2015, p. 493.

[6]“Depois da morte de Acabe, revoltou-se ((a$ep) (pesha’) Moabe contra Israel” (2Rs 1.1).

[7] G. Herbert Livingston, Pesha’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1247.

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