A Pessoa e Obra do Espírito Santo (129)

6.3.2. A eleição de Deus: considerações bíblico-teológicas

          Analisaremos aqui de forma esquemática, as características da Eleição.

6.3.2.1. É um ato da vontade livre e soberana de Deus

Lutero (1483-1546), comentando o Cântico de Maria (Magnificat) (1521), escreve:

“Creio em Deus-Pai, Todo-poderoso”. Ele é todo-poderoso, de modo que em todos e através de todos e sobre todos reina exclusivamente seu poder. (…) Este é um artigo muito elevado e que encerra muita coisa; ele põe por terra toda arrogância e petulância, todo orgulho, glória, falsa confiança e enaltece somente a Deus; sim, ele indica a razão porque se deve enaltecer somente a Deus.[1]

    O apóstolo Paulo descrevendo as contínuas bênçãos de Deus sobre o seu povo, pontifica na predestinação e seu propósito:

Nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, (…) 11 nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. (Ef 1.5,11).

Um dos aspectos fundamentais da soberania é a independência. Quando a nossa independência depende de algo alheio ao nosso controle, a nossa suposta capacidade de decidir livremente está ameaçada ou sofre de limitações que podem ser bastante comprometedoras. Na realidade, somente em Deus há a autonomia total e absoluta.

Spurgeon (1834-1892) enfatiza corretamente: “Deus é independente de tudo e de todos. Ele age de acordo com Sua própria vontade. Quando Ele diz: ‘Eu farei’, o que quer que diga será feito. Deus é soberano, e sua vontade, não a vontade do homem, será feita”.[2]

    A soberania de Deus se manifesta no fato dele poder fazer tudo o que faz (poder ordenado)e mesmo aquilo que não realiza, visto que não determinou fazê-lo (poder absoluto). O poder absoluto de Deus envolve o seu poder ordenado.[3] Deus exerce o seu poder no cumprimento do que decretou e nas obras da providência.

    Se o homem pudesse antecipar-se à graça de Deus com algo que fosse agradável a Deus, a liberdade de Deus estaria condicionada ao feito humano, não haveria, portanto, na escolha divina, a manifestação da sua graça soberana.

Calvino indaga:

Caso pudesse o homem fazer algo para antecipar a graça de Deus, e a eleição cessaria de ser um apanágio divino, ainda que o direito e o poder dela sejam-lhe expressamente atribuídos. (…) Pode imaginar-se alguma razão por que não chamaria a todos igualmente, exceto o fato de que sua soberana eleição faz distinção entre uns e outros?.[4]  

Deus nos elegeu conforme a sua sábia, amorosa e eterna vontade. A escolha de Deus não sofre nenhum tipo de constrangimento no seu exercício. Por isso, não podemos, nem devemos tentar buscar razões para a nossa eleição fora do beneplácito de Deus. Deus não tem razões fora de si mesmo para fazer o que fez ou faz (Mt 11.25,26; Jo 15.16,19; Rm 9.10-18; Ef 1.5-11; 2Tm 1.9).[5]

Como é natural, pensamos em categorias mais ou menos lógicas, dentro de nossa racionalidade limitada, envolta em sentimentos e, além disso, o que é terrível, sob influência do pecado. Ou seja, a nossa limitação, que não é em si pecaminosa, já nos  proporcionaria uma visão elementar de Deus. Com o pecado, a limitação se tornou em distorção das realidades espirituais. Desse modo, mesmo Deus, conforme vimos, adequando à nossa compreensão a sua revelação, o homem a distorce para adequá-la à sua construção intelectual pecaminosa.

Por isso, que é mais fácil para nós buscar uma razão para sermos escolhidos, sermos amados e salvos. A nossa mente em suas elaborações, carece de uma explicação de causa e efeito, de tal forma que, digamos, diminuiria a graça e, enfatizaria a previsão de Deus a respeito do grande negócio que seria o homem.  Absurdo, não?.

          Mas, parece que a nossa mente tende a funcionar assim até mesmo em nossas relações humanas. Vejam o caso dos amigos de Jó. Eles queriam determinar  a todo custo um motivo para os intensos e prologados sofrimentos de seu amigo.

          Da mesma forma, os discípulos vendo um homem cego de nascença, partem do pressuposto de que ele ou alguém da família pecou. Para eles, isso era algo determinado. Partindo dessa certeza acima de qualquer suspeita, perguntam:  “Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” (Jo 9.1).

          A resposta do Senhor revela que há razões que escapam totalmente à nossa compreensão: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9.3).

          Talvez possamos sorrir para esses dois exemplos, achando um tanto ridículos os amigos de Jó e os discípulos em sua imaturidade. Mas, não é assim que também estruturamos o nosso pensamento? Deixe-me ilustrar com coisas mais simples tentando refletir o que seja, por vezes, a nossa lógica empírica:

          A moça linda namora um rapaz desprovido de beleza física porque percebeu que tem futuro ou senão, ela tem uma baixa autoestima.  

          A mulher  ou o homem maduro conseguiu casar-se com uma pessoa bem mais jovem porque tem muito dinheiro.

          O irmão fulano enriqueceu porque, certamente, teve que fazer muitas concessões e pisar em muita gente. Ou: O irmão foi bem em seus negócios porque Deus o abençoou.

          Fulano é bem sucedido em seus empreendimentos porque tem alguém bancando, etc.

          Essas construções são naturais, ainda que não desejáveis e, por vezes, se revelam corretas.

          Porém, não nos esqueçamos que estamos falando do Deus majestoso e eterno, acima de nossa classificação, compreensão, lógica  e definição.

Coenen escreve:

Perguntando-se quais são os princípios que subjazem a escolha feita por Deus, a única resposta positiva que se pode dar é que Ele concede Seu favor aos homens, e os vincula a Si mesmo, unicamente com base em Sua própria decisão livre e no Seu amor que independe de quaisquer circunstâncias temporais.[6]

Desejar ultrapassar estes limites, além de se constituir numa atitude iníqua e estéril, significa tentar a Deus, diminuindo a sua liberdade soberana e, ao mesmo tempo supor pecaminosamente, que a vontade de Deus não seja por si só motivo suficiente para Deus fazer todas as coisas como faz (Sl 115.3; 135.3-6; Is 46.10).

Calvino (1509-1564), insiste neste ponto: Procurar relacionar a nossa eleição a causas externas, é tentar a Deus. A vontade de Deus deve ser suficiente para nós.[7] Nas Institutas ele interpreta como uma tentação maligna buscar a origem da nossa eleição fora da Palavra:

Nenhuma tentação do Diabo é mais perigosa para abalar os fiéis do que quando, fazendo com que os inquiete a dúvida quanto à sua eleição, provoca neles o estulto desejo de buscar essa certeza fora do caminho. Chamo buscar fora do caminho a atitude na qual o pobre homem se esforça para penetrar nos segredos incompreensíveis da sabedoria divina, e, para saber o que a respeito dele foi ordenado no juízo de Deus, quer ir ao princípio da eternidade em sua busca. Nessa tentativa ele se precipita como que num imenso e profundo golfo em que se afoga; enrosca-se como que em laços de armadilha dos quais jamais conseguirá se desembaraçar; e entra numa espécie de abismo de trevas do qual nunca poderá sair. Porque com justa razão a presunção do entendimento humano é assim punido com horrível desgraça, quando tenta elevar-se por seu poder ao altíssimo nível da sabedoria divina. Agora, a tentação que acabo de mencionar vê-se tanto mais perniciosa quanto é fato que quase todos nós somos inclinados a cair nela. Porque são bem poucos os que não se deixam tocar no coração por este pensamento: Donde vem que você obtém a salvação somente pela eleição de Deus? E como se revela essa eleição? Uma vez que esse pensamento encontre guarida no homem, ou lhe causará assombroso tormento, ou o fará sucumbir de espanto. Não pretendo ter argumento mais próprio para mostrar quão perversamente esse tipo de gente imagina a predestinação. Porque o espírito do homem não pode ser infeccionado por erro mais virulento que quando a consciência é destituída da sua tranquilidade e paz, que lhe cabe ter com Deus. Esta questão é como um mar, no qual, se tememos perecer, tenhamos cuidado acima de tudo com o rochedo que, se não for evitado, só nos causará desgosto. Entretanto, embora se considere a discussão sobre a predestinação um mar perigoso, a navegação é segura e calma, e até alegre, se não acontecer que alguém queira por vontade própria meter-se em perigo. Pois, assim como aqueles que, desejando ter certeza da sua eleição, invadem o conselho eterno de Deus sem a Sua Palavra, precipitam-se e afundam num abismo mortal, assim também, por outro lado, os que buscam certeza corretamente, e segundo a ordem revelada na Escritura, recebem singular consolação. Portanto, seja este o caminho que sigamos em nossa busca: começar pela vocação de Deus e terminar nela. Pois o Senhor quer que ela seja para nós como um marco ou um sinal para nos certificar de tudo o que nos é lícito saber do Seu conselho.[8]

 Maringá, 9/10 de março de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Martinho Lutero, Magnificat: In: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1996, v. 6, p. 50-51.

[2]C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 42-43.

[3]Ver: Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two Volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 2, p. 12.

[4] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 65.4), p. 611.

[5] Veja-se, Cânones de Dort,I.10.

[6] L. Coenen, Eleger: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1982, v. 2, p. 35.

[7] Vejam-se: J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.15), p. 331-333;João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 74; João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 37-38. “Não busquemos a causa em parte alguma, senão na vontade divina. Notemos particularmente as expressões de quem quer e a quem lhe apraz. Paulo não permite que avancemos além disto” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.18), p. 337). Jorge Fisher acentua que “no calvinismo considerado como sistema teológico e em contraste com outros tipos da teologia protestante, se vê um princípio característico e elevado, a saber, o da soberania de Deus, não só de seu governo ilimitado dentro da esfera intelectual e material, senão também que a vontade divina é a causa última da salvação de alguns e do abandono de outros à perdição” (Jorge P. Fisher, Historia de la Reforma, Barcelona: CLIE., (1984), p. 231-232). Aquino, séculos antes de Calvino, já havia escrito: “Só a divina vontade é a razão da eleição de uns para a glória e da reprovação de outros” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2. ed. Porto Alegre, RS.; Caxias do Sul, RS.: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Livraria Sulina Editora; Universidade de Caxias do Sul, 1980, v. 1, I, Q. 23, Art. 5, p. 238).

[8]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 60.

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