A Pessoa e Obra do Espírito Santo (297)

8) Apto para ensinar (Continuação)

Os falsos mestres, privados da verdade,[1] procuram desviar-nos dela pervertendo os ensinamentos da Palavra.

          Paulo cita dois de seu tempo, Himeneu[2] e Fileto, que, seguindo ensinamentos gnósticos, com uma linguagem corrosiva, eliminavam a esperança na ressurreição futura, pervertendo a fé de alguns:

Além disso, a linguagem deles corrói como câncer (ga/ggraina);[3] entre os quais se incluem Himeneu e Fileto. Estes se desviaram da verdade (a)lh/qeia), asseverando que a ressurreição já se realizou, e estão pervertendo (a)natre/pw = “arruinar”, “virar”[4]) a fé a alguns. (2Tm 2.17-18).  

          Por causa dos falsos mestres o caminho da verdade será infamado. Pedro, alertando a igreja quanto aos falsos ensinamentos os quais deveriam ser verificados à luz da Palavra, demonstra que assim como houve falsos profetas, surgiriam na igreja, seus sucessores, uma versão atualizada: os falsos mestres que introduziriam heresias, arrastando após si muitos crentes:

Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas (yeudoprofh/thj),[5] assim também haverá entre vós falsos mestres (yeudodida/skaloj), os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. E muitos seguirão as suas práticas libertinas (a)se/lgeia), e, por causa deles, será infamado (blasfhme/w)[6] o caminho da verdade. (2Pe 2.1-2).

Pedro diz que o presbítero, enquanto pastor do rebanho, deve estar em condições de alimentá-lo com a Palavra e, também, saber combater àqueles que tentarão seduzir os fiéis com “palavras fictícias (plasto/j) (2Pe 2.3).

           Contudo, o ponto básico da questão está no conteúdo. Mais do que conhecer teoricamente bem a Palavra, o que difere aquele que é “apto para ensinar” (didaktiko/j) dos “falsos mestres” (yeudodida/skaloj) não é a técnica de ensino em si, mas o conteúdo do que é ensinado.

O falso mestre é aquele que ensina a mentira, o engano: cria imagens que nada são para corromper seus ouvintes, conduzindo-os a negar o próprio Senhor Jesus Cristo e, também, à viverem libertinamente (a)se/lgeia), ou seja, de modo dissoluto e lascivo.[7] Por causa disso, o caminho do evangelho seria caluniado, reprovado, “blasfemado”. 

A mensagem desses falsos mestres consiste numa corrupção do evangelho.

Plasto/j parece ter o sentido aqui de palavras artisticamente elaboradas, moldadas, sugestivas, porém, falsas, forjadas em seu próprio proveito, e, que por isso mesmo estão em oposição à verdade. Curiosamente este é o termo de onde vem a nossa palavra “plástico”.[8] O ensino cristão envolve arte, mas não “arte plástica” para com a verdade.

Como cristãos, precisamos treinar os nossos ouvidos, provar o que ouvimos antes de nos saborear com o que não convém: “Porque o ouvido prova (!x;B’)(bahan)(examina, testa) as palavras, como o paladar, a comida” (Jó 34.3/Jó 12.11).

          Fazendo uma digressão acentuamos que o biógrafo de Calvino, Wileman  (1849-1941), escreveu: “Como expositor da Escritura, a Palavra de Deus era tão sagrada para ele como se a tivesse ouvido dos lábios de seu Autor”.[9]

Na introdução das Institutas (1541), referindo-se às Escrituras e aos que a ensinam, Calvino escreveu:

Portanto, o ofício dos que receberam mais ampla iluminação de Deus que os outros consiste em dar aos simples o que lhes é necessário neste assunto e em saber estender-lhes a mão para os conduzir e os ajudar a encontrar a essência do que Deus nos quer ensinar em Sua Palavra. Ora, a melhor maneira de fazer isso é com as passagens que tratam dos assuntos principais e, por conseguinte, as que estão contidas na filosofia cristã.[10]

          Os presbíteros devem ter consciência da graça de Deus em seu ministério. Eles são servos como os demais, tendo, contudo, uma tarefa especial:

Ministros são aqueles que colocam seus serviços à disposição de Cristo, para que alguém possa crer nele. Além do mais, eles não possuem nada propriamente seu do quê se orgulhar, visto que também não realizam nada propriamente seu, e não possuem virtude para excelência alguma exceto pelo dom de Deus, e cada um segundo sua própria medida; o que revela que tudo quanto um indivíduo venha a possuir, sua fonte se acha em outrem. Finalmente, ele os mantém todos juntos como por um vínculo comum, visto que tinham necessidade do auxílio mútuo.[11]

          O ensino da Palavra é um privilégio responsabilizador; consiste em partilhar com o nosso próximo as riquezas que o Espírito tem nos concedido:

Quando o Senhor nos abençoa, também nos convida a seguirmos seu exemplo e a sermos generosos para com o nosso próximo. As riquezas do Espírito não são para serem guardadas para nós mesmos, mas sempre que alguém as recebe deve também passá-las a outrem. Isto deve ter uma aplicação especial aos ministros da Palavra, mas também tem uma aplicação geral a todos os homens, a cada um em sua própria esfera.[12]

Maringá, 17 de setembro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade (a)lh/qeia), supondo que a piedade é fonte de lucro” (1Tm 6.5).

[2] Paulo se referira a este como alguém que naufragou na fé (1Tm 1.19-20).

[3]Esta palavra só ocorre aqui em todo o Novo Testamento. É deste termo que provém palavra gangrena.

[4] A palavra é usada no sentido literal Jo 2.15: “Em tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou (a)natre/pw) as mesas”.

[5] Jesus Cristo já nos alertara sobre eles. Vejam-se: Mt 7.15; 24.11,24; Lc 6.26. O apóstolo João falaria mais tarde de sua realidade presente (1Jo 4.1).

[6] O verbo Blasfhme/w, que tem o sentido de “injuriar”, “difamar”, “insultar”, “caluniar”, “maldizer”, “falar mal”, “falar para danificar”, etc., é formado de duas palavras, Bla/yij derivada de Bla/ptw = “injuriar”, “prejudicar” (* Mc 16.18; Lc 4.35) e Fhmi/ = “falar”, “afirmar”, “anunciar”, “contar”, “dar a entender”. A Blasfêmia tem sempre uma conotação negativa, de “maldizer”, “caluniar”, “causar má reputação”, etc., contrastando com Eu)fhmi/a (“boa fama” * 2Co 6.8) e Eu)/fhmoj (“boa fama” * Fp 4.8) (Eu)/ & fh/mh). No Fragmento 177 de Demócrito, lemos: “Nem a nobre palavra encobre a má ação, nem é a boa ação prejudicada pela má palavra (Blasfhmi/a)”. Paulo diz que o mal testemunho dos judeus contribuía para que os gentios blasfemassem o nome de Deus (Rm 2.24, citando Is 52.5). Compare este fato com a orientação de Paulo, 1Tm 6.1; Tt 2.5.

            A falsa doutrina propicia a prática da blasfêmia (1Tm 6.3,4), bem como os falsos mestres (2Pe 2.1-2,10-12).

[7]A)se/lgeia ocorre nos seguintes textos do Novo Testamento: Mc 7.22; Rm 13.13; 2Co 12.21; Gl 5.19; Ef 4.19; 1Pe 4.3; 2Pe 2.2,7,18; Jd 4.

[8]A palavra grega plastiko/j é derivada do verbo pla/ssw, cujo advérbio utilizado por Pedro é plasto/j. A nossa palavra plástico vem do grego (plastiko/j) passando pelo latim (plasticus), sempre de forma transliterada, significando aquilo “que tem propriedade de adquirir determinadas formas sensíveis, por efeito de uma ação exterior”.

[9] William Wileam, “John Calvin. His Life, His Teaching & Influence,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 100.

[10]  João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, p. 33.

[11] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.5), p. 102-103. “Não lograremos progresso a menos que o Senhor faça próspera a nossa obra, os nossos empenhos e a nossa perseverança, de modo a confiarmos à sua graça a nós mesmos e tudo o que fazemos” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.7), p. 106).

[12] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1995, (2Co 1.4), p. 17.

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