A Pessoa e Obra do Espírito Santo (173)

5) Acomodação injustificável

A justificação é um presente gratuito à parte das obras, mas a graciosa imputação de Deus de Sua justiça e o perdão das transgressões não podem ser reais, se não forem acompanhadas de santidade. – Shedd (1929-2016).[1]

Eu creio, Senhor, na divina promessa,                 
Vitórias já tive nas lutas aqui.
Contudo, é mui certo que a gente tropeça;
Por isso, Senhor, eu preciso de ti – [2]

A justificação eterna e objetiva, conforme os propósitos de Deus em Cristo, e a justificação subjetiva,[3]recebida pela fé, se consumam em nossa união com Cristo,[4] em quem somente há a justiça perfeita exigida por Deus.

          A obra de Cristo envolve ambos os aspectos da mesma graça. Esta união se revela e se desenvolve em nossa obediência aos mandamentos de Deus que podemos chamar de justificação demonstrativa. “A justiça imputada para justificação e a justiça inerente para a santificação devem estar inseparavelmente unidas”, conclui Watson (c. 1620-1686).[5]

          Em linha semelhante, pontuou Whitefield (1714-1770): “Pela justificação de Cristo os crentes passam legalmente a ter vida; pela santificação são tornados espiritualmente vivos; pela primeira recebem, o direito à glória; pela segunda são tornados dignos da glória”.[6]

          Não fomos salvos porque Deus se agradou de nossas supostas obras de justiça, do nosso justo modo de viver, antes, ele nos declarou justos, nos perdoando os nossos pecados, aplicando em nós a justiça de Cristo, nos capacitando a viver em novidade de vida, conforme o nosso novo status. O preço de nossa justificação, gratuita para nós, custou o sangue de Cristo Jesus. A justificação, por envolver a regeneração,[7] é uma vocação incondicional à santificação conforme a vontade de Deus.[8]

          A justificação nos livra da condenação do pecado. Deus chama pecadores, todavia, não deseja que continuem assim, antes, infunde neles a justiça de Cristo, dando-lhes um novo coração, mudando as inclinações de sua alma, habilitando-os a toda boa obra (Ef 2.8-10)[9].[10] “Cristo a ninguém justifica, a quem ao mesmo tempo, não santifique”.[11] Todavia, a realidade do pecado ainda existe em nós, o justificado é simultaneamente justo e pecador (“Simul justus et peccator”) conforme expressão de Lutero (1483-1546).[12] Ele é declarado justo por Deus. Aqui não é o ponto final, antes, o início. As evidências de seu novo nascimento vão, gradativamente, se tornando mais claras por meio de sua obediência a Deus em santificação.

Anotações pontuais sobre a justificação pela graça

          A doutrina da justificação pela fé como um dos pilares da Reforma,[13] estabelece o caminho bíblico entre sacerdotalismo (fé mais obras), a anomia (justificados na eternidade e, portanto, já salvos pela graça, estamos livres para fazer o que bem entendermos), o legalismo (salvos pela observância da lei) e o galacianismo (salvos pela graça vivemos pela lei).

A visão Reformada aponta para o fato de nossa total incapacidade de nos salvar a nós mesmos. Ao mesmo tempo, enfatiza a livre graça de Deus que providencia a salvação para o seu povo. A salvação, portanto, está condicionada à fé em Cristo Jesus, recebendo os seus merecimentos, sendo transformados por Deus e, deste modo, declarados justos aos olhos de Deus.[14]

A justificação descortina diante de nós o caminho da glorificação. O Deus que nos justifica é o mesmo que nos glorificará (Rm 8.30). “A justificação é coroada com a glorificação”.[15]

          Sem a compreensão adequada da doutrina da justificação pela fé, não há Evangelho a ser anunciado.[16] Só há Evangelho se de fato houver a Boa Nova da perfeita justiça de Cristo que é-nos imputada pela graça. O Evangelho tem como uma de suas principais características, o anúncio da justificação pela fé.[17]

          Para nós Reformados, a justificação é o ato que faz parte do início de um processo que se iniciou na eternidade (eleição) e se consumará na eternidade (glorificação).[18] A justificação no tempo é real porque foi estabelecida por Deus na eternidade.[19]

          Cristo, com o seu próprio sangue, reconciliou-nos com Deus, sendo assunto aos céus, como nosso eterno e perfeito Mediador.[20]

Calvino faz um resumo magnífico de nosso privilégio em Cristo e, de nossa responsabilidade:

Assim, resta que, estando todos despidos de toda a ajuda das suas obras, são justificados pela fé somente. Pois bem, explicamos que essa justiça deve ser assim entendida: O pecador, tendo sido recebido à comunhão de Cristo, é reconciliado com Deus, por Sua graça; porquanto, tendo sido purificado por Seu sangue, obtém a remissão dos seus pecados; revestido então da justiça de Cristo, como da sua própria, pode subsistir diante do tribunal de Deus. Consumada a remissão dos pecados, as obras que se seguem não são avaliadas pelo que elas são, mas por um critério alheio a elas. Porque tudo o que é imperfeito é coberto pela perfeição de Cristo; tudo o que é impureza e mancha é lavado e purificado por Sua pureza, para não ser levado em conta. Depois que a culpa das transgressões é assim apagada e eliminada, o que impedia os homens de produzirem algo que agradasse a Deus, e, também, depois que os vícios e imperfeições que maculavam suas boas obras são soterrados, então sim as boas obras praticadas pelos crentes são consideradas justas, o que vale dizer, são imputadas para justiça.[21]

          Louvemos, portanto, ao Senhor:

O Grande Amor de Deus.[22]

1. A Deus demos glória, por seu grande amor,
O Filho bendito por nós todos deu,
E graça concede ao mais vil pecador,
Abrindo-lhe a porta de entrada no céu.

Exultai! Exultai! Vinde todos louvar

A Jesus, Salvador, a Jesus, Redentor!
A Deus demos glória, porquanto do céu
Seu Filho bendito por nós todos deu!

2. Oh, graça real! Foi assim que Jesus,
Morrendo, Seu sangue por nós derramou.
Herança nos céus, com os santos em luz,
Legou-nos Aquele que o preço pagou.

3. Tal prova de amor nos persuade a confiar
Nos merecimentos do Filho de Deus!
E quem, a Jesus, pela fé se entregar,
Vai vê-lo na glória eterna dos céus.

(F.J. Crosby – J. Jones)

Maringá, 25 de abril de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Russell P. Shedd, A Justificação: A resposta de Deus para uma vida cristã autêntica, 2. ed. rev.São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 28. À frente, enfatiza: “A ausência de boas obras, então, é a prova concreta de que qualquer justificação alegada é imaginária” (Russell P. Shedd, A Justificação: A resposta de Deus para uma vida cristã autêntica, 2. ed. rev.São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 30).

[2] Primeira estrofe do Hino “Necessidade”, nº 68 do Hinário Presbiteriano Novo Cântico. Hino composto pelo pastor metodista, Antônio de Campos Gonçalves (1899-1983) (letra) e Henriqueta Rosa Fernandes Braga (1909-1983)(música).

[3] Vejam-se: L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 520-521; Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 203ss.; 222ss.; Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 383-384.

[4]“A justiça que nos justifica, portanto, não deve ser separada da pessoa de Cristo. Ela não consiste de um dom material ou espiritual que Cristo nos concede fora de Si mesmo, ou que nós podemos aceitar e receber sem que aceitemos e recebamos a pessoa de Cristo. Não há possibilidade de se desfrutar dos benefícios de Cristo sem que haja comunhão com a pessoa de Cristo e a comunhão com Cristo invariavelmente traz consigo os benefícios de Cristo. Para ser aceito diante de Deus, para ser livre de toda culpa e punição e para desfrutar da glória de Deus e da vida eterna, nós temos que ter Cristo, não algo dele, mas o próprio Cristo” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP.,2001, p. 499).

[5]Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 266.

[6]George Whitefield, Cristo: Sabedoria, Justiça, Santificação, Redenção, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 8.

[7] “A regeneração é inseparável de seus efeitos, e um destes efeitos é a fé” (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 119).

[8]“É certamente verdade que somos justificados em Cristo tão somente pela misericórdia divina, mas é igualmente verdade e correto que todos quantos são justificados são chamados pelo Senhor para que vivam uma vida digna de sua vocação. Portanto, que os crentes aprendam abraçá-lo, não somente para a justificação, mas também para a santificação, assim como ele se nos deu para ambos os propósitos, para que não venham a mutilá-lo com uma fé igualmente mutilada” (João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.13), p. 274). Ver também: João Calvino, Efésios, (Ef 2.10), p. 63.

[9]8Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9 não de obras, para que ninguém se glorie. 10 Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).

[10] “A justificação é unicamente pela fé. A santificação não é unicamente pela fé. A totalidade da vida cristã é uma vida de fé, porém na santificação temos que agir, e desenvolver, despir-nos e vestir-nos; como o apóstolo nos diz em todos esses pormenores que nos oferece aqui. (Ef 4)” (D.M. Lloyd-Jones, As Trevas e a Luz,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1995, p. 130).

[11] João Calvino, As Institutas,III.16.1.

[12] Vejam-se: G.C. Berkouwer, Faith and Sanctification, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1952, p. 71ss.; R.C. Sproul, A natureza forense da justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual a Igreja: Justificação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 34.

[13] “A justificação foi a doutrina que acendeu a Reforma” (John F. MacArthur, Jr., Muito Antes de Lutero: Jesus e a Doutrina da Justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação pela Fé Somente,São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 15).

[14] “A visão reformada da justificação forense se fundamenta no princípio de que pela imputação da justiça de Cristo o pecador é agora feito formalmente, mas não materialmente, justo aos olhos de Deus” (R.C. Sproul, Justificação pela Fé Somente: a natureza forense da justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação pela Fé Somente,São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 33).

[15] Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 265.

[16]“Um entendimento correto sobre a justificação pela fé constitui o fundamento do Evangelho” (John F. MacArthur, Jr., Muito Antes de Lutero: Jesus e a Doutrina da Justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação pela Fé Somente,São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 24).

[17]“As igrejas e denominações que se firmam em sola fide permanecem evangélicas. Aquelas dispostas a ceder nesse ponto inevitavelmente se rendem ao liberalismo, revertem ao sacerdotalismo ou adotam formas até piores de apostasia. O evangelicalismo histórico, portanto, sempre encarou a justificação pela fé como sendo uma doutrina central – se não aquela doutrina mais importante a ser bem compreendida. Não foge à verdade definir os evangélicos como sendo os que creem na justificação somente pela fé” (John F. MacArthur, Jr., Muito Antes de Lutero: Jesus e a Doutrina da Justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 11).

[18]Veja-se, conforme já citado: Confissão de Westminster,XI.4. “A justificação é o ponto de convergência de um vastíssimo princípio e de um vastíssimo fim. É o ponto em que se encontram duas eternidades: a do passado e a do futuro” (T. Austin Sparks, O Evangelho Segundo o Apóstolo Paulo, (s. cidade): (s. editora), (s. data), p. 11).

[19] Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 219.

[20]Veja-se João Calvino, Exposição de Hebreus,(Hb 10.22), p. 268.

[21] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.6), p. 246-247.

[22] Hino nº 42 do Hinário Novo Cântico, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991.

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