A Pessoa e Obra do Espírito Santo (37)

6.1.6. O Deus que se revela fidedignamente   (Continuação)

As Escrituras não são especulativas

As Escrituras não se perdem em especulações. Isso por dois motivos óbvios: Deus como senhor de todo o conhecimento e verdade, de nada precisa saber. Todo o saber lhe pertence; nada lhe é derivado.[1] O segundo motivo é que Ele não deseja que o seu povo se perca em especulações de assuntos não revelados, que são de sua exclusiva autoridade.

Guiar-se por especulações significa desejar ir além do que Deus revelou e, ao mesmo tempo, perder-se em hipóteses e teorias frívolas já que pretendem “decifrar” o que Deus sábia e soberanamente não nos quis dar a conhecer. “Nossas especulações não podem servir de medida para nosso Deus”, acentua Packer (1926-2020).[2]

A Bíblia é um livro descritivo e extremamente prático. Ela não discute, por exemplo, sobre a existência de Deus ou faz abstrações de sua natureza e essência, antes, parte do pressuposto da existência do Deus Todo-Poderoso que se revela criando com sabedoria e poder todas as coisas. Portanto, mais do que uma teoria ou abstração, as Escrituras nos põem em contato com o Deus vivo e pessoal, que age e fala.[3] É o Deus que se relaciona e cuida de seu povo.

A história do povo de Israel é de certa forma a história da revelação concreta de Deus na História: no tempo e no espaço, conduzindo o seu povo. “A Escritura, em sua totalidade, é o próprio livro da providência de Deus”, resume Bavinck (1854-1921).[4]

            Schaeffer (1912-1984), argumentando em prol da genuinidade da revelação de Deus em forma de proposição e história, escreve:

Deus inseriu a revelação da Bíblia na História; Ele não a forneceu (como poderia ter feito) em forma de livro-texto teológico. Localizando a revelação na História, que sentido teria para Deus ter-nos fornecido uma revelação cuja história fosse falsa? Também o homem foi inserido neste universo que, como as Escrituras mesmo dizem, fala de Deus. Que sentido, então, teria para Deus ter nos oferecido a sua revelação em um livro cheio de falsidades acerca do universo? A resposta para ambas as questões deve ser “nada disso faria qualquer sentido!”

Está claro, portanto, que, do ponto de vista das Escrituras em si, podemos observar uma unidade por todo o campo do conhecimento. Deus falou, numa forma linguística e proposicional, verdades sobre si mesmo e verdades sobre o homem, a sua história e o universo.[5]

Deus é o Senhor eterno antes e independentemente de sua Criação. “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”, escreveu Moisés (Sl 90.2).

            Moisés por revelação direta de Deus, registra de forma inspirada (2Pe 1.20-21), narrando os atos criadores de Deus, sem se preocupar em falar com mais detalhes a respeito daquele que mediante a sua Palavra, faz com que do nada surja a vida, criando o universo, estabelecendo suas leis próprias, as preservando e, avaliando a sua criação como boa.

   Ele apenas apresenta o Deus Todo-Poderoso exercitando o seu poder de forma criadora, segundo o seu eterno propósito. Deus existe – este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus cria segundo a sua Palavra e isto nos enche de admiração e reverente temor: a Palavra de Deus é o verbo criador que manifesta a determinação e o poder de Deus (Gn 1.1,26,27; Sl 33.6,9; Jo 1.1-3; Hb 11.3), o qual criou as coisas com sabedoria (Pv 3.19).

Deus infinito-pessoal que se revela

            As Escrituras nunca tratam de Deus de forma impessoal ou abstrata, mas, como o Deus infinito-pessoal que se revela[6] e se relaciona misericordiosamente com os seus.

            As Escrituras evidenciam o valor metafísico da realidade, contudo, não se limitam a isso, por mais importante que seja e, de fato é. Elas tratam dessa questão em termos ontológicos, normativos e existenciais. A metafísica está relacionada diretamente com a Lei absoluta de Deus e com os efeitos disso em nossa vida. Isso explica, por exemplo, porque grande parte das Escrituras consiste em narrativa histórica, onde esses aspectos são realçados na vida do povo de Deus em sua obediência ou não, no lócus temporal, ao Deus soberano.

            Obviamente, o Deus das Escrituras não é um deus criado pela imaginação do homem projetando em sua criação seus desejos e vícios,[7] o que facilmente conduziria da idolatria ao ateísmo.[8] Aliás, o ateísmo não deixa de ser uma forma de idolatria, visto que o homem passa a adorar a criatura, no caso, a sua suposta poderosa mente, em lugar do Criador (Rm 1.25).

            Deus não se deixa invadir pela razão humana, ou mesmo pela fé. Ele se dá a conhecer livre, fidedigna e explicitamente. Deus se revela a si mesmo como Senhor.[9] E “Senhorio significa liberdade”, pontua Barth (1886-1968).[10]

            Conhecer a Deus é um privilégio da graça que tem o seu início sempre no Deus Trino (Mt 11.27;1Co 12.3). Deus sabe tudo a nosso respeito, nos conhece mais do que nós mesmos. Nada que lhe digamos é inusitado. Nós, só o conhecemos à medida em que se revela, fala de si mesmo (Sl 139.1-4; 33.13-15; Jo 1.47-48; 2.25).

            A consciência do mistério inescrutável de Deus a temos pela revelação.  O conhecimento de nossa limitação não é inato, antes é precedido pela revelação. 

            “Quanto mais conhecemos Deus, mais compreendemos, e sentimos que seu mistério é inescrutável”, comenta Brunner (1889-1966).[11] A douta ignorância faz parte essencial da fé genuína e sincera.[12] O conhecimento de nossa limitação não é inato, antes é precedido pela revelação. Sem a revelação de Deus não há teísmo, ateísmo nem agnosticismo. É no encontro significativamente pessoal com Deus que tomamos conhecimento de nossas limitações.[13]

            Sem revelação nada sei a respeito de Deus. Com a graça objetiva da revelação e o guiar interior do Espírito, é que passo a saber e a descobrir que não sei. É no conhecimento intensivo e experimental de Deus que vamos ampliando reverentemente o nosso conhecimento e descobrindo o quanto ignoramos.

            Sem a revelação, o homem passaria toda a sua vida e estaria na eternidade sem o menor conhecimento de Deus por mais engenhosos que fossem os seus métodos, por mais sistemáticas que fossem as suas pesquisas, por mais que evoluísse a ciência… O homem nunca conseguiria chegar a Deus, ou mesmo à sua ideia: ignoraria eternamente a própria ignorância! Entretanto, Deus continuaria sendo o que sempre foi: o Senhor![14] Todavia, graças a Deus, porque Ele soberanamente se revelou a si mesmo, para que possamos conhecê-lo e render-lhe toda a glória que somente a Ele é devida. Em Cristo, nós somos confrontados com o clímax e plenitude da revelação de Deus (Jo 14.9-11; 10.30; Cl 1.19; 2.9; Hb 1.1-4). “Tudo quanto diz respeito ao genuíno conhecimento de Deus constitui um dom do Espírito Santo”, declara Calvino.[15]

Maringá, 02 de novembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “A verdade das criaturas, por exemplo, seria sem sentido sem a verdade de Deus, mas a verdade de Deus não depende do mundo que ele criou. Ele conhece todas as coisas por si mesmo, conhecendo sua natureza e seu plano eterno, e cria a verdade sobre o mundo real por meio de suas obras de criação e providência. Nosso conhecimento depende do dele (Sl 36.9), mas o dele não depende de nada, a não ser dele mesmo” (John M. Frame,  A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 455).

[2] J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20.

[3] Veja-se: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 175.

[4]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 607.

[5] Francis A. Schaeffer, O Deus que intervém, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 146.

[6] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 113.

[7]Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Princípios bíblicos de adoração cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[8] “A perda total de significado implícita no ateísmo é de mais para que muitos suportem. As pessoas precisam de alguns valores, alguns padrões, algumas maneiras para orientar suas vidas. Entre essas pessoas, aqueles que continuam a resistir à crença no verdadeiro Deus tornam-se inconsistentes quanto ao seu ateísmo, ou tornam-se idólatras. Se não querem o verdadeiro Deus, terão de procurar outro” (John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 150).

[9]  Ver: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 181,186ss.

[10] K. Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, I/1, p. 306.

[11] Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156.

[12]  Ver: João Calvino, As Institutas,III.21.2; III.23.8. Na edição de 1541, escrevera: “E que não achemos ruim submeter neste ponto o nosso entendimento à sabedoria de Deus, aos cuidados da qual Ele deixa muitos segredos. Porque é douta ignorância ignorar as coisas que não é lícito nem possível saber; o desejo de sabê-las revela uma espécie de raiva canina” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006,v. 3 (III.8), p. 53-54).

[13] Ver: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 157, 159ss.

[14] “Ainda que o mundo inteiro fosse incrédulo, a verdade de Deus permaneceria inabalável e intocável” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 48-49).

[15]  João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 12.3), p. 373.

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