A Pessoa e Obra do Espírito Santo (381)

6.4.9.1.5. Na disciplina (Continuação)

Obviamente, a disciplina é aplicada aos membros da igreja, não aos estranhos à fé. Da mesma forma, deve ser entendido que nenhuma comunidade pode sobreviver se ela for obrigada a manter em sua membresia aqueles que negam explicitamente os seus princípios e ideais. Para tanto a Igreja foi investida de autoridade para tal prática em harmonia com as Escrituras.[1]

Portanto, aqueles que a desprezam, conscientemente, ou não, trabalham em prol da decadência da Igreja visível e contribuem, de forma inconsequente, para  dar rédeas soltas às suas próprias paixões pecaminosas: “Aqueles que têm desprezado a correção, e se têm empedernido contra a instrução, preparam-se para precipitar-se a todo excesso que o desejo corrupto ou o mau exemplo possa sugerir”, admoesta-nos Calvino.[2] Além disso, estão mutilando a Igreja de Cristo que zela por um só batismo, uma só doutrina e um só Espírito de santidade, e, do mesmo modo, profanando a Ceia do Senhor por meio da qual o Senhor nos alimenta cuidado de nosso crescimento, pureza e santidade.[3]

          Quanto àquele que foi disciplinado, a atitude tão frequente de rebelar-se contra a sentença disciplinatória, ou buscar atenuantes para os seus pecados, envolvendo outras pessoas, tentando eximir-se de seus erros por meio de generalizações, ou alegando circunstâncias “especiais”, apresenta, em geral, forte sintoma de um não verdadeiro arrependimento.

          O pecador arrependido não está preocupado com os pecados de outros, se as circunstâncias são agravantes ou atenuantes, se outros são mais pecadores do que ele. Ele não sente prazer em publicar o seu pecado antes, com a profunda tristeza pelo seu pecado busca humildemente na graça de Deus o perdão e a consciência do perdão. 

          A disciplina visa nos conduzir ao arrependimento e o retorno à comunhão de Cristo, trazendo de volta ao redil de Cristo a ovelha extraviada (Mt 18.15; 1Co 5.5; Gl 6.1; 1Tm 1.20; Tg 5.20).

          Há um equívoco fragrante no pensamento de muitos crentes que se configura assim: “Depois de tudo o que ele passou devido aos seus erros, já foi castigado pela vida, ele não precisa mais de disciplina eclesiástica”.

          Entendamos bem isso: a disciplina da igreja não é simplesmente autodisciplina, não sou eu quem me disciplino no sentido de apresentar a minha sentença para o meu pecado e pronto. Cabe, no caso do sistema presbiteriano, aos Concílios julgar e disciplinar visando ao bem do irmão que errou e ao bem da comunidade.

          Calvino enfatiza: “Os que pecam publicamente devem ser castigados também publicamente, na extensão em que se envolva a Igreja. O propósito visa a que seu pecado não venha, ao permanecer impune, prejudicar mediante seu exemplo”.[4]

          Em outro lugar, ressaltando a importância da disciplina na preservação da vida da Igreja, faz algumas analogias:

Nenhuma casa que contenha sequer modesta família, se não pode suster em reta condição sem disciplina, muito mais necessária é ela na Igreja, cuja condição importa seja a mais ordenada possível. Portanto, assim como a doutrina salvífica de Cristo é a alma da Igreja, assim também a disciplina é-lhe como que a nervatura, mercê da qual acontece que os membros do corpo entre si se liguem, cada um em seu lugar. (…) A disciplina é, portanto, como um freio com que sejam contidos e domados aqueles que se embravecem contra a doutrina de Cristo, ou como um acicate com que sejam estugados os de pouca disposição.[5]

          Aos coríntios, Paulo ensina que a disciplina de Deus é restauradora visando à nossa salvação: “Mas, quando julgados, somos disciplinados (paide/uw) pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (1Co 11.32).

          Portanto, a disciplina aplicada pela Igreja deve ser com moderação e amor, ainda que isto não exclua a severidade quando necessária:

 Nota-se aqui [1Co 4.21] o padrão de comportamento que um bom pastor deve seguir, pois ele deve estar espontaneamente mais disposto a ser delicado a fim de atrair pessoas para Cristo do que a sucumbi-las com demasiada energia. Ele deve manter esta docilidade até onde for possível, e não lançar mão da severidade, a não ser que a isso seja forçado. Mas quando há necessidade de tal expediente, ele não deve poupar a vara, porque, enquanto se deve usar de mansidão com os que são dóceis e maleáveis, faz-se necessário a autoridade no trato com os obstinados e insolentes.[6]        
Os que pecam realmente devem ser reprovados, e às vezes é necessário usar de severidade e dureza. Portanto, é correto reprimi-los com repreensão, mesmo ao ponto de descortesia; mas o vinagre deve ser temperado com azeite.[7]

          Bem ao seu estilo, Calvino apresenta alguns princípios para que possamos exercer a disciplina na Igreja de forma proveitosa:

Os mestres precisam aprender que esse gênero de moderação deve ser sempre usado nos atos de reprovação, para que não se firam os brios dos homens no uso de excessiva austeridade. (…) Mas, acima de tudo, devem tomar cuidado para não parecer que escarnecem daqueles a quem estão a reprovar, nem sentir-se prazerosos com seu infortúnio. Não! Ao contrário, devem esforçar-se para que fique evidente que a sua intenção não é outra senão a promoção de seu bem-estar. (…) Portanto, se desejamos fazer algo de positivo, ao corrigirmos as falhas das pessoas, é saudável esclarecer-lhes que as nossas críticas são oriundas de um coração amigo.[8]

Toda vez que a punição visar à vingança, ali se manifestará a ira e a maldição de Deus, as quais nunca são dirigidas contra os Seus fiéis. Por outro lado, a disciplina é bênção de Deus e um testemunho do Seu amor, como diz a Escritura.[9]

E assim somos admoestados quanto ao fato de que é um exercício muitíssimo proveitoso evocar amiúde à memória os castigos com que Deus nos aflige em decorrência de nossos pecados.[10]

          Analisemos um pouco a disciplina imposta ao rei Davi.

          No Salmo 32, confessa: 3 Enquanto calei os meus pecados, envelheceram (hl’B’) (balah)[11] os meus ossos pelos meus constantes gemidos (hg”a’v.) (sheagah) todo o dia. 4 Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim, e o meu vigor se tornou em sequidão de estio” (Sl 32.3-4).

          Neste salmo Davi expressa o seu pecado acompanhado de algumas de suas consequências, mas, também, a bem-aventurança do perdão. Sem dúvida, Davi em seu grave pecado, se tornou para muitos de seus contemporâneos em motivo de desprezo para com Deus e para com a sua Palavra.

          Aqui podemos observar a força do pecado, como escreveu Lloyd-Jones: “A Bíblia nos diz que o poder do pecado é tão grande e terrível como isso – que mesmo um homem admirável e maravilhoso como Davi, o rei de Israel, pode cair no caminho que eu já descrevi”.[12]

          Agora, no entanto, quando retrata a sua vida após o seu arrependimento e confissão, serve de estimulo e consolo para todos aqueles que buscam o perdão de Deus, encontrando nele, a bem-aventurança divina.

          Parece que quando as coisas caminham bem aos nossos olhos torna-se muito difícil, quase impossível tomarmos consciência de nossos pecados. Por vezes o pecado só se torna pecado quando fracassamos. Parece que os defeitos ficam com os derrotados. Os vencedores carregam consigo todas as virtudes. Ledo engano.

É por isso que as aflições, vezes sem conta, são meios pedagógicos dos quais Deus se vale para nos disciplinar, nos conduzindo ao despertar de nossa consciência quanto ao pecado cometido, e ao arrependimento, buscando o seu perdão.[13]

          A disciplina de Deus, é, portanto, uma expressão de sua graça para com seus filhos.

  Maringá, 16 de janeiro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Aliás, visto que a igreja é uma sociedade sacra e religiosa, instituída por Cristo, ninguém pode negar que ela recebeu do próprio Cristo todo o poder que possui, bem como todas as demais coisas, pois o mesmo que quis estabelecê-la no mundo a mune com todas as coisas que são necessárias à sua preservação” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 362).

[2]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 50.17-20), p. 415.

[3] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 358-359.

[4] João Calvino, Gálatas, (Gl 2.14), p. 65.

[5]João Calvino, As Institutas,IV.12.1. Da mesma forma argumenta Turretini. (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 358).

[6]João Calvino,Exposição de 1 Coríntios, (1Co 4.21), p. 151.

[7]João Calvino, Gálatas, (Gl 6.1), p. 174.

[8]João Calvino,Exposição de 1 Coríntios, (1Co 4.14), p. 142.

[9]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 175.

[10]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 1999, v. 2, (Sl 38), p. 176.

[11] Aplica-se à roupa envelhecida (Dt 8.4; 29.5; Js 9.5; Sl 102.26), sandália gasta (Dt 29.5; Js 9.5,13).

[12] David M. Lloyd-Jones, O Clamor de um Desviado: Estudos sobre o Salmo 51,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 16.

[13]“Os homens são incapazes de sentir seus pecados a menos que sejam levados pela força a conhecer-se por si mesmos. Por isso, vendo que a prosperidade nos embriaga de tal maneira, e que quando estamos em paz cada um se adula em seus pecados; temos que sofrer pacientemente as aflições de Deus. Porque a aflição é a autêntica mestra que leva os homens ao arrependimento para que se condenem eles mesmos diante de Deus e, sendo condenados, aprendam a odiar aqueles pecados nos quais anteriormente se banhavam” (Juan Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p. 226).

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