Uma oração intercessória pela Igreja (52)

                4.2.2. Fé operosa

Louvo o fruto da boa obra, mas reconheço como raiz a fé. – Agostinho (354-430).[1]

Quando o ato jurídico do Deus triúno, a justificação, é anunciado à consciência, a fé se torna ativa e se expressa em obras. – Abraham Kuyper.[2]

                 Recapitulando, enfatizamos que a fé em Deus influencia a nossa cosmovisão e, consequentemente, o nosso comportamento.[3] A fé não é algo abstraído da realidade; os assuntos da fé têm relação com o nosso hoje existencial. Não podemos separar a fé do nosso testemunho, da nossa ética, da nossa forma de viver (Rm 1.17; 2Co 5.17; Gl 2.20).

                 A fé é um compromisso com Deus em resposta ao seu compromisso conosco manifestado de forma cabal na cruz.[4] Consequentemente a fé tem também compromissos existenciais irrevogáveis. A nossa cosmovisão consciente deve estar comprometida com a busca de coerência perceptiva e existencial.[5] Isto nós chamamos de integridade, o não esfacelamento condescendente e excludente daquilo que cremos, falamos e fazemos.

                 Ainda que não haja a ideia de orgulho meritório na fé,[6] ela é responsável pelo nosso agir e pensar. “A fé não concerne a um setor particular da vida denominado religioso, ela se aplica à existência em sua totalidade”, pontua Barth.[7] Contudo, a fé biblicamente orientanda não pode ser autorreferente. Ela não pode se contentar em uma suposta relação mística com Deus e uma ética construída a partir de suas preferências e gosto pessoal.

                A verdadeira fé parte da Palavra e para lá se direciona. A fé que se basta é uma contradição de termos visto que seria apenas uma boa obra humana produzida pela suposta capacidade autossuficiente de seu possuidor.[8]

            A obediência sincera é fruto da genuína fé. A obediência é a fé manifestada. A fé é a obediência oculta.  A verdadeira fé se evidencia no fato de tomarmos a Bíblia como a nossa norma de vida. Não podemos crer realmente em Deus se desconsideramos a sua Palavra e promessas. 

                 Por buscarmos a coerência do crer e viver ‒ daí a extrema importância de uma fé inquiridora ‒[9] há compromissos sérios entre o que cremos e como agimos. Um distanciamento consciente e docemente acalentado e justificado entre o crer e o fazer, produz uma esquizofrenia intelectual, emocional e espiritual cuja solução definitiva envolverá um destes caminhos: ou mudar a nossa crença ou abandonar a nossa práxis. Para o cristão, cosmovisão é compromisso de fé e prática. E, como diz Lloyd-Jones (1899-1981): “A fé cristã não é algo que se manifeste à superfície da vida de um homem, não é meramente uma espécie de camada de verniz. Não, mas é algo que está sucedendo no âmago mesmo de sua personalidade”.[10]

            Avaliando aspectos da influência social de Calvino, Hart escreve com precisão:

Se as reformas de Calvino desempenharam um papel central na história do Ocidente, elas o fizeram não por serem princípios de organização que moldaram desenvolvimentos políticos e econômicos, e sim por causa de suas exigências de que os crentes e as congregações conformassem, individualmente, sua vida à Palavra de Deus.[11]

            A Palavra de Deus oferece-nos o escopo de nosso pensar e agir. Por meio dela poderemos ter uma real visão de Deus, de nós mesmos e do mundo. Portanto, uma cosmovisão Reformada, por partir de uma perspectiva bíblica, é uma visão que se esforça por interpretar a chamada realidade pela ótica das Escrituras. Sem as Escrituras permanecemos míopes para distinguir as particularidades do real, tendo uma epistemologia desfocalizada.

            Calvino usa de uma figura que continua atual:

Exatamente como se dá com pessoas idosas, ou enfermas de olhos, e quantos quer que sofram de visão embaçada, se puseres diante deles até mui vistoso volume, ainda que reconheçam ser algo escrito, mal poderão, contudo, ajuntar duas palavras; ajudadas, porém, pela interposição de lentes, começarão a ler de forma mais distinta. Assim a Escritura, coletando-nos na mente conhecimento de Deus de outra sorte confuso, dissipada a escuridão, mostra-nos em diáfana clareza o Deus verdadeiro.[12]

            O crescimento e fortalecimento da nossa fé é demonstrado por meio da nossa operosidade (1Ts 1.3,8),[13] agindo sempre em amor (Gl 5.6; Ef 1.15; 6.23; Cl 1.4/1Co 13.2). “Nossa fé é ancorada na obra do Deus trino e chega ao nosso próximo em amor”, resume Horton.[14]

            A fé não é algo simplesmente contemplativo. Ela se manifesta em atos. A palavra empregada por Paulo, traduzida por “operosidade” (e)/rgon) (1Ts 1.3), tem o sentido tanto de trabalho ativo, como de resultado do trabalho feito.

            Paulo diz ter sido confortado com as notícias trazidas por Silas concernentes ao fato de que os tessalonicenses mesmo sob forte tribulação permaneciam firmes na fé (1Ts 2.14/1Ts 3.7). De passagem, vemos que o nosso trabalho deve ser guiado pela fé e, a fé, se concretiza no trabalho. A Igreja de Corinto era fruto do trabalho de Paulo (1Co 9.1).[15]

                 A fé dos tessalonicenses era tão ativa, que já se repercutira nas regiões da Macedônia e Acaia (1Ts 1.7-9).[16] Um fato que se tornou notório foi a sua conversão a Deus e o abandono da idolatria (1Ts 1.9).

                 O mesmo aconteceria posteriormente com a Igreja de Roma. Paulo então escreveu: “Dou graças a meu Deus mediante Jesus Cristo, no tocante a todos vós, porque em todo mundo é proclamada a vossa fé” (Rm 1.8).

            Tiago diz que “a fé sem obras é morta”(“h( pi/stij xwri\j e)/rgwn nekra/ e)stin”) (Tg 2.26). Ou seja, a fé bíblica se manifesta em atos de obediência. A fé operosa é aquela que obedece aos mandamentos de Deus. A fé é mãe da obediência.

            Desse modo, de forma coerente, temos a recomendação de Paulo aos coríntios: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra (e)/rgon)do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho (ko/poj)não é vão”(1Co 15.58).

            Do mesmo modo, instrui a Tito quanto ao que deveria ensinar:

Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças afirmação, confiadamente, para que os que têm crido (oi( pepisteuko/tej) em Deus sejam solícitos na prática de boas obras(kalw=n[17] e)/rgwn). Estas coisas são excelentes e proveitosas aos homens (Tt 3.8).

Paulo enfatiza que para isso mesmo todos fomos eleitos, sendo regenerados para as boas obras: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras(e)/rgoij a)gaqoi=j[18]), as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).

            Nessa prática, como temos visto, agradamos a Deus, “….frutificando em toda boa obra (e)/rgw a)gaqw=) e crescendo no pleno conhecimento de Deus” (Cl 1.10).

            É interessante observar que no Apocalipse, repetidamente, quando Deus fala às sete igrejas da Ásia, diz: “conheço as tuas obras” (Ap 2.2,19; 3.1,8,15) – mostrando que o juízo é conforme as obras de cada um, procedentes da fé (Ap 18.6; 20.12,13; 22.12).

            Uma das maiores evidências da fé salvadora, é um testemunho que reflita uma vida transformada pelo poder de Deus que age por intermédio da Palavra. Contra isso não há argumentos. Podemos argumentar contra uma teoria, mas não contra uma vida digna (Vejam-se: 1Sm 12.1-5; Jo 8.46; 2Co 5.21).[19]

            Ainda que nenhum obra humana possa ser meritória, a salvação pela graça resultam em muitas obras. Tudo isso é graça operante.

            A fé envolve a nossa mente, aquece o nosso coração e se plenifica em nossas mãos. A Palavra de Deus age eficazmente em nós produzindo frutos. Por isso, o fundamento de nossa integridade espiritual está no apego incondicional à poderosa Palavra de Deus (Cl 1.4-6; 1Ts 2.13/Js 1.8; Sl 1.2; Tg 1.22-25).

São Paulo, 24 de maio de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]St. Agostinho, Comentário aos Salmos,São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/1), 1997, v. 1, Sl 31, “II. Sermão ao Povo”, p. 352.

[2]Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 391.

[3]“A estrutura da fé, uma vez apreendida, nos concede uma nova maneira de ver o mundo e encontrar sentido em nosso lugar no esquema maior das coisas” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 15).

[4]Vejam-se: Alister E. McGrath, Creio: Um estudo sobre as verdades essenciais da fé cristã no Credo Apostólico, São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 23-24; John MacArthur Jr., O Evangelho segundo os apóstolos – O papel da fé e das obras na vida cristã, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 54-56.

[5] “Todo indivíduo tem uma visão de mundo. A visão de mundo dá respostas às quatro perguntas essenciais perguntas que dizem respeito à origem, ao sentido, à moralidade e à esperança que garante um destino. Essas respostas devem ser verdadeiras e coerentes como um todo” (Ravi Zacharias, A Morte da Razão: uma resposta aos neoateus, São Paulo: Vida, 2011, p. 25).

[6]“Não existe orgulho na fé. Fé é simplesmente a crença de que nada podemos fazer para nos salvar, mas que confiamos plenamente na graça de Deus” (Peter Jones, Verdades do Evangelho x Mentiras pagãs, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 34).

[7]Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 24.

[8]“Se Deus tem derramado sobre nós um dom excelente, e se, porém, imaginamos que ele mesmo se deve a nosso próprio mérito, acabaremos insuflados de orgulho” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,São Paulo: Novo Século, 2000, p. 34).

[9]“A fé cristã não é uma fé apática, uma fé de cérebros mortos, mas uma fé viva, inquiridora. Como Anselmo afirmou, a nossa fé é uma fé que busca entendimento” (William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 29. De igual modo: Garrett J. DeWeese; J.P. Moreland, Filosofia Concisa, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 158).

[10] David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 89.

[11]D.G. Hart, O Reformador da Fé e da vida. In: Burk Parsons, ed. João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 77. Veja-se: Philip Benedict, Christ’s Churches Purely Reformed: A Social History of Calvinism, New Haven: Yale University Press, 2002, p. 543.

[12]João Calvino, As Institutas, I.6.1.

[13]“Recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da vossa fé, da abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo (…) 8 Porque de vós repercutiu a palavra do Senhor não só na Macedônia e Acaia, mas também por toda parte se divulgou a vossa fé para com Deus, a tal ponto de não termos necessidade de acrescentar coisa alguma” (1Ts 1.3,8).

[14]Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 27.

[15]“Não sou eu, porventura, livre? Não sou apóstolo? Não vi Jesus, nosso Senhor? Acaso, não sois fruto do meu trabalho no Senhor?” (1Co 9.1).

[16]7 de sorte que vos tornastes o modelo para todos os crentes na Macedônia e na Acaia. 8 Porque de vós repercutiu a palavra do Senhor não só na Macedônia e Acaia, mas também por toda parte se divulgou a vossa fé para com Deus, a tal ponto de não termos necessidade de acrescentar coisa alguma; 9 pois eles mesmos, no tocante a nós, proclamam que repercussão teve o nosso ingresso no vosso meio, e como, deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1.7-9).

[17]Kalo/j, “bom”, “útil” A palavra grega indica algo que é essencialmente bom, formoso – a ideia de beleza estética está classicamente presente nesta palavra – útil e honroso.

[18] a)gaqo/j, denota o que é moral e praticamente bom.A vontade de Deus é boa (a)gaqo/j) (Rm 12.2) porque Ele é bom. (Lc 18.19).

[19]Na literatura grega, encontramos o testemunho de Xenofonte (c. 430-355 a.C.), historiador e general grego, a respeito de seu mestre, Sócrates (469-399 a.C.), talvez o mais admirável filósofo da Antiguidade. Xenofonte escreveu: “Sei que Sócrates era para seus discípulos modelo vivo de virtuosidade e que lhes administrava as mais belas lições acerca da virtude e o mais que ao homem concerne” (Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 2), 1972, I.2.17. p. 44).

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