Uma oração intercessória pela Igreja (105)

         2) O poder de Deus em nossa conversão (Continuação)

             O pecado nos domina completamente. Na linguagem do profeta Isaías, “toda a cabeça está doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6).

            O pecado só poderá ser compreendido em sua abrangência quando tivermos uma visão correta se seu total domínio sobre o nosso coração, envolvendo o nosso pensar, sentir e agir.[1]

            Calvino interpretando Rm 8.7, diz:

Nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto; e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira divina. Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão.[2]

            O homem foi criado essencialmente como ser social.[3] O pecado alienou-nos de Deus, de nós mesmos, do nosso semelhante e da natureza.[4] Com a queda o pecar tornou-se “humano” e isso, biblicamente, é desumano. Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos.

            A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem. Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico):[5] Apesar de o pecado ter sido devastador para o homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompida,[6] alienando-o, assim, de sua identidade divina original.

            O pecado acarretou a perda do aspecto ético da imagem de Deus.[7] A nossa vontade, como agente de nosso intelecto,[8] agora, é oposta à vontade de Deus. O propósito divino de santidade para nós foi contraposto pelo desejo pecaminoso do homem de seguir seu próprio caminho à revelia de Deus e de seus mandamentos. A vontade humana, tornou-se totalmente avessa à vontade de Deus.[9]

            A Confissão de Westminster (1647), capítulo IV, seção 2, declara:

Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-os de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria vontade, que era mutável. Além dessa escrita em seus corações receberam o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obedeceram a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.

            A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de satanás. [10] O homem está eticamente sob o domínio dele.[11]

            Calvino é enfático ao retratar a depravação humana:

Portanto, que os homens reconheçam que, conquanto são nascidos de Adão, são criaturas depravadas, e por isso só podem conceber pensamentos pecaminosos, até que se tornem nova feitura de Cristo, e sejam formados por seu Espírito para uma nova vida. E não se deve nutrir dúvida de que o Senhor declara que a própria mente do homem é depravada e totalmente infectada com pecado; de modo que todos os pensamentos que procedem daí são maus. Se tal é o defeito na própria fonte, segue-se que todos os afetos humanos são maus e suas obras cobertas com a mesma poluição, visto que, necessariamente, têm laivos de seu original. Porquanto Deus não diz meramente que os homens às vezes pensam mal; mas a linguagem é sem fronteira, circunscrevendo a árvore com seus frutos. (…) Pois visto que sua mente seja corrompida com descaso de Deus, com orgulho, amor-próprio, ambição, hipocrisia e fraude, ela não pode proceder de outra forma, senão que todos os seus pensamentos se acham contaminados com os mesmos vícios. Além disso, não podem tender para um fim correto; donde sucede devam ser julgados como sendo o que realmente são: pervertidos e perversos. Pois tudo quanto há em tais homens, que nos deleita sob o matiz de virtude, é como o vinho deteriorado pelo odor do tonel. Porque (como já se disse) as próprias afeições da natureza, que em si mesmas são louváveis, contudo estão viciadas pelo pecado original, e, em razão de sua irregularidade, têm se degenerado de sua natureza peculiar; tal é o amor mútuo de pessoas casadas, o amor de pais para com seus filhos, e daí por diante. E a cláusula adicionada, ‘desde sua mocidade’, declara mais plenamente que os homens já nascem maus; a fim de mostrar que, tão logo atingem a idade em que começam a formar pensamentos, já revelam a corrupção radical da mente. (…) Devemos, pois, aquiescer ao juízo de Deus, o qual pronuncia o homem como estando tão escravizado pelo pecado, que não pode produzir nada são e sincero. Todavia, ao mesmo tempo devemos recordar que não se deve lançar nenhuma culpa sobre Deus por aquilo que tem sua origem na defecção do primeiro homem, pela qual a ordem da criação foi subvertida. E, além do mais, deve-se notar que os homens não são isentados de culpa e condenação mediante o pretexto desta servidão; porque, embora todos se apressem para o mal, contudo não são impelidos por qualquer força extrínseca, e sim pela inclinação direta de seus próprios corações; e, por fim, pecam não de outro modo, senão voluntariamente.[12]

            Por intermédio de Isaías, Deus faz uma analogia extremamente forte para ilustrar a nossa situação. Ele toma dois animais difíceis de trato: o boi e o jumento. Mostra que a obtusidade, a teimosia e a dificuldade de condução destes animais dão-se pela sua própria natureza. No entanto, assim mesmo, eles sabem reconhecer os seus donos, aqueles que lhes alimentam.

O homem, por sua vez, como coroa da criação,[13] cedendo ao pecado perdeu totalmente o seu discernimento espiritual. Já não reconhecemos nem mesmo o nosso Criador, antes lhe voltamos as costas e prosseguimos em outra direção:[14]

O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai desta nação pecaminosa, povo carregado de iniquidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o Senhor, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás. (Is 1.3-4).

            A nossa confissão do Senhorio de Cristo pela fé, foi operada poderosamente em nós pelo Espírito. Isto é fruto da maravilhosa e eficaz graça. É isso que Paulo diz aos coríntios: “…. ninguém pode (du/namai) dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo” (1Co 12.3).

Maringá, 17 de julho de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A depravação (…) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração, mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John MacArthur, Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81).

[2] João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 8.7), p. 266-267.

[3]“O homem foi formado para ser um animal social” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), v. 1, (Gn 2.18), p. 128). Em outro lugar: “O homem é um animal social de natureza, consequentemente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, observamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas,II.2.13).

[4]“Pelo pecado estamos alienados de Deus” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.9), p. 32). “Tão logo Adão alienou-se de Deus em consequência de seu pecado, foi ele imediatamente despojado de todas as coisas boas que recebera” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.5), p. 57). “Como a vida espiritual de Adão era o permanecer unido e ligado a seu Criador, assim também o dele alienar-se foi-lhe a morte da alma” (João Calvino, As Institutas, II.1.5). Vejam-se também: Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem,São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 46-47; John W. R. Stott, O Discípulo Radical, Viçosa, MG.: Ultimato, 2011, p. 43.

[5]Podemos também chamar de aspecto “lato”, “estrutural” ou “formal”. (Para uma visão panorâmica do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101).

[6]Vejam-se: João Calvino, As Institutas,I.15.4; II.1.5; Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, (Ef 4.24), p. 142; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 169; v. 2, (Sl 62.9), p. 579.

[7]Podemos também chamar de aspecto “estrito”, “funcional” ou “material”. (Para uma visão panorâmica do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101). “Ele é a criatura que, inicialmente, foi criada à imagem e semelhança de Deus, e essa origem divina e essa marca divina nenhum erro pode destruir. Contudo ele perdeu, por causa do pecado, os gloriosos atributos de conhecimento, justiça e santidade que estavam contidos na imagem de Deus. Todavia, esses atributos ainda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua criação; essas reservas são suficientes não somente para torná-lo culpado, mas também para dar testemunho de sua primeira grandeza e lembrá-lo continuamente de seu chamado divino e de seu destino celestial” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 17-18). Vejam-se: João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999,v. 2, (Sl 51.5), p. 431-432; John Calvin, Commentaries on the Epistle of James, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Calvin’s Commentaries, v. 22), (Tg 3.9), p. 323; As Institutas, I.15.8; II.2.26,27; Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 211ss.; W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 27; Herman Dooyeweerd, No Crepúsculo do Pensamento, São Paulo: Hagnos, 2010, p. 260-261; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 591; Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 88; Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, p. 30, E-book  Posição  448 de 715.

[8]Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 111. Agostinho (354-430), comentando o Salmo 148, faz uma analogia muito interessante: “Como nossos ouvidos captam nossas palavras, os ouvidos de Deus captam nossos pensamentos. Não é possível agir mal quem tem bons pensamentos. Pois as ações procedem do pensamento. Ninguém pode fazer alguma coisa, ou mover os membros para fazer algo, se primeiro não preceder uma ordem de seu pensamento, como do interior do palácio, qualquer coisa que o imperador ordenar, emana para todo o império romano; tudo o que se realiza por meio das províncias. Quanto movimento se faz somente a uma ordem do imperador, sentado lá dentro? Ao falar, ele move somente os lábios; mas move-se toda a província, ao se executar o que ele fala. Assim também em cada homem, o imperador acha-se no seu íntimo, senta-se em seu coração; se é bem e ordena coisas boas, elas se fazem; se é mau, e ordena o mal, o mal se faz” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 93), 1998, v. 3, (Sl 148.1-2), p. 1126-1127).

[9]Veja-se: João Calvino, Exposição de Romanos,São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.7), p. 267.

[10]“Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a imagem de Satanás, e não a de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caído no pecado como ‘filho do diabo’. (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1Jo 3.8)” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 67). “Tampouco é absurdo dizer que a imagem em parte se perdeu e em parte se conservou, e que no mesmo sujeito há a imagem de Deus e a do diabo em diferentes aspectos” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 588).

[11]Cf. Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, 190.

[12]John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), v. 1, (Gn 8.21), p. 284-286.

[13]“Não é arrogância humana acreditar que seja a coroa, o alvo da criação. Ela o é, não apenas porque seja a última numa série ascendente, mas porque, pela sua natureza, foi estabelecida para isso” (Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 99).

[14]Lloyd-Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Veja-se: D. M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, p. 43-46.

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