Teologia da Evangelização (74)

 2.4.4.3. Uma Proclamação poderosamente submissa e inteligente (Continuação)

O livro de Atos registra que Paulo por três semanas pregou, conforme seu costume, na sinagoga de Tessalônica. Lucas usa alguns termos muito interessantes para descrever a pregação de Paulo:

Tendo passado por Anfípolis e Apolônia, chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga de judeus. Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou (diale/gomai) com eles acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw) e demonstrando (parati/qhmi) ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. Alguns deles foram persuadidos (pei/qw) e unidos a Paulo e Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas distintas mulheres. (At 17.1-4).

          Analisemos os verbos usados por Lucas:

                    a) “Arrazoar” (diale/gomai).[1] No grego clássico a palavra tinha o emprego usual de “conversar” ou “discutir”. (Ver: Mc 9.34). A partir de Sócrates (469-399 a.C.) passou a ser usada com o sentido de persuasão por meio de perguntas e respostas.

          Em Aristóteles (384-322 a.C.), tem o sentido de investigação dos fundamentos últimos do conhecimento.[2] Daí o sentido de argumentar, conduzir uma discussão e discursar, envolvendo sempre a ideia de estímulo intelectual por intermédio do intercâmbio de  ideias.[3] Enfim, envolvia uma argumentação com o propósito de persuadir, sendo permitida à congregação fazer perguntas.[4]

          Paulo, portanto, passou três semanas fazendo perguntas, ouvindo indagações, respondendo, argumentando com respeito ao Antigo Testamento e à Pessoa de Cristo. A pregação do Evangelho envolve raciocínios e argumentos. Lucas registra também que em Corinto: “Todos os sábados [Paulo] discorria (diale/gomai)na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos”(At 18.4).

          Este era o método habitual de Paulo. Ele usou do mesmo recurso na sinagoga de Tessalônica (At 17.2);[5] na sinagoga de Atenas e na praça (At 17.17);[6] na sinagoga de Éfeso e na escola de Tirano durante dois anos (At 18.19; 19.8-10),[7] na igreja em Trôade (At 20.7,9)[8] e diante de violento Procurador Félix (At 24.25).[9]

          b) “Expor” (dianoi/gw).[10] “Abrir completamente”. Tem o sentido figurado de “explanar” e “interpretar”. Ou seja: pelo Espírito, a exposição de Paulo tornava a mensagem compreensível, “abria o significado” do texto, evidenciado a sua aplicabilidade ao contexto de seus ouvintes (Cf. Lc 24.31-32).[11] As pessoas poderiam não crer no que foi proclamado; contudo, não poderiam alegar falta de compreensão.

          c)“Demonstrar” (parati/qhmi).[12] “Colocar ao lado”, “colocar diante de”. Figuradamente tem o sentido de apresentar evidências; ou seja, provar com passagens bíblicas a veracidade de seu argumento. “Citar para provar”, “demonstrar”. Ou seja: Paulo argumentava biblicamente o que ensinava, demonstrando, por exemplo, o cumprimento das profecias em Cristo e, ao mesmo tempo, confrontava as teses de seus oponentes com textos bíblicos.

          d) “Persuadir” (pei/qw), que significa convencer despertando a confiança de alguém sobre o quê foi persuadido, “dar crédito” (At 27.11). Lucas também registra que alguns dos judeus e numerosa multidão de gregos – homens e mulheres distintas –, “foram persuadidos (pei/qw) e unidos a Paulo e Silas….” (At 17.4). Paulo esforçava-se por persuadir os seus ouvintes a respeito do Evangelho (At 13.43; 18.4;19.8,26; 26.28; 28.23-24; 2Co 5.11).[13]

“Paulo não procurava dar origem à fé no Deus único e, sim, persuadir os ouvintes quanto à graça que acabava de ser dada por meio de Cristo”, comenta Becker.[14] Seus ouvintes são seriam levados à fé simplesmente pela sabedoria humana. No entanto, devemos estar conscientes que a proclamação não exclui de forma alguma a nossa razão.[15]

          Mesmo havendo um tipo de linguagem que propiciava a persuasão, Paulo não se valia deste método. Diz aos coríntios: “A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva (peiqo/j) de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder” (1Co 2.4).

          Há sempre o risco de substituir o poder de Deus pela “técnica”, pela capacidade de convencer os nossos ouvintes. Neste caso, substituiríamos o conteúdo pelo sucesso; a soberania de Deus pelo poder de nossos argumentos.[16]

          É preciso um cuidado especial neste ponto. Calvino se detêm especialmente nesta questão: “Para que possa haver eloquência, devemos estar sempre em alerta a fim de impedir que a sabedoria de Deus venha sofrer degradação por um brilhantismo forçado e corriqueiro”.[17] A eloquência “é um dom muito excelente, mas que, quando se vê divorciado do amor, de nada serve para alguém obter o favor divino”.[18]

          A questão está em não usar desses meios como sendo a força do Evangelho, esquecendo-nos de sua simplicidade que é-nos comunicada pelo Espírito.

Calvino comenta:

Não devemos condenar nem rejeitar a classe de eloquência que não almeja cativar cristãos com um requinte exterior de palavras, nem intoxicar com deleites fúteis, nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave melodia, nem mergulhar a Cruz de Cristo em sua vã ostentação.[19]
O Espírito de Deus também possui uma eloquência particularmente sua.[20] A eloquência que está em conformidade com o Espírito de Deus não é bombástica nem ostentosa,[21] como também não produz um forte volume de ruídos que equivalem a nada. Antes, ela é genuína e eficaz, e possui muito mais sinceridade do que refinamento.[22]

Maringá, 27 de setembro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] A palavra tem o sentido de “dissertar” (At 17.17; 19.8; 24.25); “discorrer” (At 18.4; 19.9; Hb 12.5); “pregar” (At 18.19); “exortar” (At 20.7); “discursar” (At 20.9); “discutir” (At 24.12); “disputar” (Jd 9).

[2]Ver: Gottlob Schrenk, diale/gomai: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 2, p. 93.

[3]Cf. A.T. Robertson, “Word Pictures in the New Testament, Volume 3 – Acts,” The Master Christian Library, (CD-ROM), Version 8 (Rio, Wi: Ages Software, 2000),in loc.

[4]Cf. D. Furst, Pensar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 515.

[5] “Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com (diale/gomai) eles acerca das Escrituras” (At 17.2).

[6]“Por isso, dissertava (diale/gomai) na sinagoga entre os judeus e os gentios piedosos; também na praça, todos os dias, entre os que se encontravam ali” (At 17.17).

[7]“Chegados a Éfeso, deixou-os ali; ele, porém, entrando na sinagoga, pregava (diale/gomai) aos judeus” (At 18.19). “Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dissertando (diale/gomai) e persuadindo com respeito ao reino de Deus. Visto que alguns deles se mostravam empedernidos e descrentes, falando mal do Caminho diante da multidão, Paulo, apartando-se deles, separou os discípulos, passando a discorrer (diale/gomai)diariamente na escola de Tirano. Durou isto por espaço de dois anos, dando ensejo a que todos os habitantes da Ásia ouvissem a palavra do Senhor, tanto judeus como gregos” (At 18.8-10).

[8]“No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os (diale/gomai)e prolongou o discurso até à meia-noite. (…) Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado numa janela, adormecendo profundamente durante o prolongado discurso (diale/gomai)de Paulo, vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo e foi levantado morto” (At 20.7,9).

[9]Dissertando (diale/gomai)ele acerca da justiça, do domínio próprio e do Juízo vindouro, ficou Félix amedrontado e disse: Por agora, podes retirar-te, e, quando eu tiver vagar, chamar-te-ei” (At 24.25).

[10]A palavra tem o sentido de “expor” (Lc 24.32) e, especialmente, de “abrir”: abrir o ventre (Lc 2.23); abrir o céu (At 7.56). No sentido figurado: abrir os ouvidos (Mc 7.34-35); abrir os olhos para que compreenda (Lc 24.31/Gn 3.5,7); abrir o coração (At 16.14); abrir a mente (Lc 24.45).

[11]Comentando At 16.14, onde a mesma palavra é empregada, Stott escreve: “Percebemos que a mensagem era de Paulo, mas a iniciativa salvadora vinha de Deus. A pregação de Paulo não era efetiva em si mesma; o Senhor operava através dela. E a obra do Senhor não era direta em si; Ele preferiu operar por intermédio da pregação de Paulo. Sempre é assim” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da Terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 16.13-15), p. 296).

[12] Significa “propor” (Mt 23.24,31); “distribuir” (Mc 6.41; 8.6-7); oferecer (Lc 10.8; 11.6); confiar (Lc 12.48); entregar (Lc 23.46); encomendar (At 14.23; 20.32; 1Pe 4.19); “pôr diante de” (1Co 10.27); “encarregar” (1Tm 1.18); transmitir (2Tm 2.2).

[13]“Despedida a sinagoga, muitos dos judeus e dos prosélitos piedosos seguiram Paulo e Barnabé, e estes, falando-lhes, os persuadiam (pei/qw) a perseverar na graça de Deus” (At 13.43). “E todos os sábados discorria na sinagoga, persuadindo (pei/qw) tanto judeus como gregos” (At 18.4). “Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dissertando e persuadindo (pei/qw) com respeito ao reino de Deus” (At 19.8). Demétrio insuflando o povo: “e estais vendo e ouvindo que não só em Éfeso, mas em quase toda a Ásia, este Paulo tem persuadido (pei/qw) e desencaminhado muita gente, afirmando não serem deuses os que são feitos por mãos humanas” (At 19.26). “Então, Agripa se dirigiu a Paulo e disse: Por pouco me persuades (pei/qw) a me fazer cristão” (At 26.28). “Havendo-lhe eles marcado um dia, vieram em grande número ao encontro de Paulo na sua própria residência. Então, desde a manhã até à tarde, lhes fez uma exposição em testemunho do reino de Deus, procurando persuadi-los (pei/qw) a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas. Houve alguns que ficaram persuadidos (pei/qw) pelo que ele dizia; outros, porém, continuaram incrédulos” (At 28.23-24). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos (pei/qw) os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça” (2Co 5.11).

[14]O. Becker, Fé: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 2, p. 214.

[15] Veja-se o excelente tópico do livro de Stott: John R.W. Stott, Crer é também Pensar, São Paulo: ABU., 1984 (2ª impressão), p. 45-51.

[16] Packer desenvolve este tema de forma pertinente:

            “Se considerarmos que nossa tarefa consiste não simplesmente em apresentar Cristo, mas realmente em produzir convertidos – evangelizando não apenas fielmente, mas também com sucesso – então nossa maneira de evangelizar tornar-se-á pragmática e calculista. Terminaríamos por concluir que nosso equipamento básico, tanto para tratar pessoalmente como para pregar publicamente, deve ser duplo. Precisaríamos possuir não apenas uma compreensão clara do significado e aplicação do evangelho, mas igualmente uma técnica irresistível capaz de induzir os ouvintes a aceitá-lo. Assim sendo, precisaríamos nos esforçar por experimentar e desenvolver tal técnica. E deveríamos avaliar toda evangelização, tanto a nossa como a de outras pessoas, não pelo critério da mensagem pregada, mas também dos resultados visíveis. E, se nossos próprios esforços não estivessem produzindo frutos, concluiríamos que nossa técnica ainda precisa de melhoramentos. E caso estivessem produzindo fruto, concluiríamos que isso justifica a técnica usada. Se assim fosse, deveríamos considerar a evangelização como uma atividade que envolve uma batalha de vontades entre nós mesmos e aqueles para quem pregamos, uma batalha cuja vitória dependeria de havermos detonado uma barragem suficiente de efeitos calculados. Dessa maneira, nossa filosofia de evangelização tornar-se-ia terrivelmente semelhante à filosofia da lavagem cerebral. E já não poderíamos mais argumentar, quando tal semelhança fosse aceita como fato, que essa não é a concepção certa de que seja evangelizar. Pois seria um conceito apropriado de evangelização, se a produção de convertidos fosse responsabilidade nossa.

“Isso nos mostra o perigo de esquecermos as implicações práticas da soberania de Deus” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 22-23). Veja-se também: John MacArthur, Abrir mão do lucro: Todas as coisas para todas as pessoas: In: John MacArthur, el. al.,  Evangelismo: compartilhando o evangelho com fidelidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012. p. 95ss.

[17]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 2.13), p. 91.

[18]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 13.1), p. 394.

[19]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 55. “Deus quer que sua Igreja seja edificada com base na genuína pregação de sua Palavra, não com base em ficções humanas. (…) Nesta categoria estão questões especulativas que geralmente fornecem mais para ostentação – ou algum louco desejo – do que para a salvação de homens” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.12), p. 112). “A pregação de Cristo é nua e simples; portanto, não deve ela ser ofuscada por um revestimento dissimulante de verbosidade” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 54). “(A) fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábulas” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.14), p. 320). “Se porventura desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” (João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320).

[20] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56.

[21]“Pois ninguém é mais radical do que os mestres desses discursos bombásticos, quando fazem pronunciamentos precipitados sobre coisas das quais nada sabem” (João Calvino, As Pastorais,(1Tm 1.7), p. 34).

[22]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56.

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