Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (2)

No campo espiritual, por vezes, gostamos de afirmar supostas verdades objetivas sem termos a certeza de que aquilo se coaduna com a nossa situação ou, a tenhamos experimentado.

 

            Há muitos que afirmam com a intimidade própria daqueles que creem no que asseveram: “Deus é pai”, “Deus é fiel”, ou: “O Senhor é o meu pastor”.

 

A partir daí inferem uma série de expectativas quanto à suposta ação que Deus, como pai, deve fazer a nosso favor. As perguntas que, por exemplo, antecedem à primeira declaração deveria ser: Deus é Pai de quem? Dos seus filhos, é claro. Mas, quem são os filhos de Deus? Eu preencho o critério divino de filiação? (Jo 1.12; Gl 3.26). Tenho procurado me comportar como filho de Deus? (Rm 8.14). Esta certeza tão real em mim tem sido confirmada pelo Espírito? (Rm 8.16). Há em meu testemunho evidências concretas de minha filiação?

 

Essas questões nos conduzem ao Salmo 23. Sem dúvida ele é o mais conhecido salmo das Escrituras. Também é um dos mais amados, memorizados e recitados. Certamente, juntamente com o a Oração do Pai Nosso, é uma das passagens mais lembradas da Bíblia.

 

Na Antiguidade o nome pastor é empregado de forma literal e figurada. White explica de forma simples: “Uma vez que, desde tempos remotos, a ocupação comum na Palestina era o pastoreio, o termo é fundamental para a descrição das pessoas do campo em todos os períodos da história”.[1]

 

De fato, esta metáfora é bastante usada para sacerdotes, príncipes e reis no Antigo Testamento, por vezes indicando a sua infidelidade (2Sm 5.2; Jr 3.15; 23.1-4; 25.32-38; Ez 34.1-9; Zc 11.17; 13.7). Em passagem extremamente curiosa, Deus se refere ao rei pagão, Ciro, que iria ser agente no cumprimento de sua vontade, como pastor: “Ele é meu pastor e cumprirá tudo o que me apraz; que digo também de Jerusalém: Será edificada; e do templo: Será fundado” (Is 44.28).

 

Nesses casos, a metáfora era associada ao governante como aquele que deve cuidar, guiar e proteger os que estão sob o seu comando. Tal utilização não se restringia à Palestina.

 

Conforme atesta Homero, esse é um emprego comum também entre os gregos, que por vezes se referem aos líderes como “pastor do povo”.[2]

 

Maringá, 24 de agosto de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 


[1] Willian White, Rã‘â: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1438.

[2] “Pois já eu com homens mais valentes que vós me dei — e nunca esses me desconsideraram. De resto nunca homens assim eu alguma vez verei: homens como Pirítoo e Driante, pastor do povo; Ceneu e Exádio e o divino Polifemo” (Homero, Ilíada, São Paulo: Companhia das Letras (Penguin), 2013, I.260-264).

“Por seu lado se levantaram e obedeceram ao pastor do povo os reis detentores de cetro; e por seu lado se apressava o povo” (II.85-86).

“Hermes soberano, que o deu a Pélope, condutor de cavalos; por sua vez de novo o deu Pélope a Atreu, pastor do povo” (II.104-105).

“Assim falou Tersites, insultando Agamêmnon, pastor do povo” (II.243)

“Mas ele encontrava-se junto das naus recurvas, preparadas para o alto-mar, encolerizado contra Agamêmnon, pastor do povo, filho de Atreu” (II. 771-773).

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