“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (27)


 4.2.3. A recepção e apego à verdade

Esta é a verdade que, brutal e insistentemente, é-nos lançada em rosto: “a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração” (Hb.4.12). Poderia alguém argumentar realmente que essa verdade pode ser mantida longe de nós só porque somos pós-modernos? – David F. Wells.[1]    

O evangelho é para ser recebido como o ensino autoritativo de Deus. Esta recepção envolve o nosso “andar” nele. A aceitação do evangelho tem implicações em todas as áreas de nossa vida, não é apenas algo intelectual. A verdade é para ser entendida, experimentada, testemunhada e proclamada. “O fim para o qual Deus deu a sua verdade não foi somente para a instrução de nossas mentes, mas muito mais para a transformação de nossas vidas”, exorta-nos Martin.[2]

          Aqui de forma indireta podemos ver a nossa responsabilidade como pregadores. A mensagem que transmitimos exige uma postura responsável, compatível com a sua gravidade e suas implicações. Paulo se refere aos irmãos da igreja de Corinto como aqueles que receberam o evangelho e nele perseveram: “Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes (paralamba/nw)[3] e no qual ainda perseverais” (1Co 15.1).

          Aos colossenses refere-se ao evangelho que foi ouvido e entendido e estava produzindo fruto:

Por causa da esperança que vos está preservada nos céus, da qual antes ouvistes pela palavra da verdade (a)lh/qeia) do evangelho, que chegou até vós; como também, em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo, tal acontece entre vós, desde o dia em que ouvistes e entendestes (e)piginw/skw)[4] a graça de Deus na verdade (a)lh/qeia). (Cl 1.5-6).

          Paulo dá graças a Deus pelo fato de os tessalonicenses terem recebido com discernimento a Palavra proclamada, procedente de Deus:

Outra razão ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido (paralamba/nw) a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes (de/xomai)[5] não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13/1Ts 1.6).[6]

          Os tessalonicenses ativamente “tomaram posse da Palavra” (paralamba/nw) que ouviram e, num ato subsequente, a receberam de forma prazerosa em seus corações (de/xomai). O receber pode ser um ato ou processo mais imediato, porém, o acolher envolve um processo de assimilação prazerosa, compreensão, aplicação e obediência.

Essa Palavra produz frutos naqueles que creem. O acolhimento da Palavra faz parte essencial do processo de santificação que se dá gradativamente conforme o evangelho for preservado, produzindo em nossas mentes, corações e mãos. Tiago instrui: “Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade (kaki/a), acolhei (de/xomai), com mansidão, a palavra em vós implantada (e)/mfutoj[7] = “semeada”), a qual é poderosa para salvar a vossa alma” (Tg 1.21).

          Paulo como embaixador do “ministério da reconciliação” (2Co 5.18,20) exorta aos coríntios para que o evangelho, “a palavra da reconciliação” (2Co 5.19) de Deus, não fosse recebido de modo vão, sem discernimento: “E nós, na qualidade de cooperadores com ele, também vos exortamos a que não recebais (de/xomai) em vão a graça de Deus” (2Co 6.1).

          A verdade de Deus vai revelando a sua eficácia em nossa vida gradativamente, conforme a formos praticando. Por isso a instrução de Paulo no sentido de que devemos seguir a verdade em amor para que possamos nos aperfeiçoar em Cristo: “Seguindo a verdade (a)lhqeu/w) em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Ef 4.15).

          Devemos viver a verdadeira fé em amor. A fé, por sua vez, deve estar associada à piedade. Paulo entende o seu apostolado partindo desta perspectiva: “Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover (kata/)[8] a fé que é dos eleitos (e)klekto/j)[9] de Deus e o pleno conhecimento da verdade (a)lh/qeia) segundo a piedade” (Tt 1.1).

          A genuína piedade bíblica (eu)se/beia) começa pela compreensão correta do mistério de Cristo, conforme nos diz Paulo: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16). Portanto, devemos indagar sempre a respeito de doutrinas consideradas evangélicas, se elas, de fato, contribuem para a piedade.

          A genuína ortodoxia será plena de vida e piedade. Paulo diz que é apóstolo da parte de Jesus Cristo comprometido com a fé que é dos eleitos de Deus. O seu ensino tinha este propósito – diferentemente dos falsos mestres que se ocupavam com fábulas e mandamentos procedentes da mentira (Tt 1.14)[10] –, promover a fé dos crentes em Cristo Jesus.

          A fé que é dos eleitos, portanto, deve ser desenvolvida no “pleno conhecimento (e)pi/gnwsij)[11] da verdade (a)lh/qeia). Ou seja, a nossa salvação se materializa em nosso conhecimento intensivo e qualitativamente completo da verdade. Contudo este conhecimento da verdade, longe de arrogante e autossuficiente, está relacionado com a piedade: “segundo a piedade (eu)se/beia).[12]

          O verdadeiro conhecimento de Deus é cheio de piedade. Piedade caracteriza a atitude correta para com Deus, englobando temor, reverência, adoração e obediência, bem como um relacionamento justo com o nosso próximo. Ela é a palavra para a verdadeira religião.[13]

          João diz que a sua maior alegria é saber que seus filhos andam na verdade:

Pois fiquei sobremodo alegre pela vinda de irmãos e pelo seu testemunho da tua verdade (a)lh/qeia), como tu andas (peripate/w)[14] na verdade (a)lh/qeia). Não tenho maior alegria do que esta, a de ouvir que meus filhos andam (peripate/w) na verdade (a)lh/qeia). (3Jo 3,4).

          Andar na verdade significa viver em obediência aos mandamentos de Deus; proceder conforme seus ensinamentos: “Fiquei sobremodo alegre em ter encontrado dentre os teus filhos os que andam (peripate/w) na verdade, de acordo com o mandamento que recebemos da parte do Pai” (2Jo 4).

          A verdade é a alegria do amor: “(O amor) não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade (a)lh/qeia)”(1Co 13.6). Não há crimes de amor. O amor se apraz na justiça e na verdade.

          Como evidência de nosso novo nascimento espiritual, devemos falar a verdade. “Por isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade (a)lh/qeia) com o seu próximo, porque somos membros uns dos outros” (Ef 4.25). O compromisso com a verdade deve ser uma característica da igreja. Como povo gerado pelo próprio Deus, devemos amar a verdade, nos comprometer com ela, quer em nossas atitudes, quer em nossas palavras.

          Num mundo de mentiras, nada é mais relevante do que nosso testemunho de fé e compromisso com a verdade. Tullian, resume: “Somos uma comunidade fundada na verdade e modelada pela verdade”.[15]A ciência e a verdade se revelam em piedade. Dito de outro modo, cito Gisbertus Voetius (1589-1676): “Piedade deve ser unida à ciência”.[16]

Maringá, 25 de fevereiro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]David F. Wells, Coragem para ser protestante, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 81.

[2]Albert N. Martin, As Implicações práticas do Calvinismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 9-10.

[3] Tem o sentido pessoal de tomar para si, levar consigo, tomar posse. É o próprio Senhor quem escolhe três discípulos para Se revelar (Mt 17.1; 20.17; 26.37/Mc 5.40). Ele mesmo, o Senhor Jesus nos receberá no céu (Jo 14.3/Mt 24.40).

[4]Indica o reconhecimento consciente, imediato e intenso do evangelho.

[5] Tem também o sentido de “receber”, “aceitar”, “aprovar”. Estevão sendo apedrejado ora: “Senhor Jesus, recebe (de/xomai) o meu espírito!” (At 7.59).

[6] “Com efeito, vos tornastes imitadores nossos e do Senhor, tendo recebido (de/xomai) a palavra, posto que em meio de muita tribulação, com alegria do Espírito Santo” (1Ts 1.6).

[7] Esta palavra só ocorre neste texto em todo o Novo Testamento.

[8]Kata/ quando estabelece relação, tem o sentido de “de acordo com a”, “com referência a”. No texto, pode ter o sentido de “segundo a fé que é dos eleitos”, “no interesse de”, “promover” etc. (Mc 7.5; Lc 1.9,38; 2.22,24,29; Jo 19.7; At 24.14; Cl 1.25,29; 2Tm 1.1,8,9; Hb 7.5).

[9] *Mt 22.14; 24.22,24,31; Mc 13.20,22,27; Lc 18.7; 23.35; Rm 8.33; 16.13; Cl 3.12; 1Tm 5.21; 2Tm 2.10; Tt 1.1; 1Pe 1.1; 2.4; 1Pe 2.6,9; 2Jo 1,13; Ap 17.14.

[10] “E não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da verdade” (Tt 1.14).

[11] * Rm 1.28; 3.20; 10.2; Ef 1.17; 4.13; Fp 1.9; Cl 1.9,10; 2.2; 3.10; 1Tm 2.4; 2Tm 2.25; 3.7; Tt 1.1; Fm 6; Hb 10.26; 2Pe 1.2,3,8; 2.20.

[12]*At 3.12; 1Tm 2.2; 3.16; 4.7,8; 6.3,5,6,11; 2Tm 3.5; Tt 1.1; 2Pe 1.3,6,7; 3.11.

[13]Ver: William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988 (reimpressão), p. 73-80.

[14] Além do sentido literal de “andar”, “caminhar”, tem, como neste caso, o sentido de proceder, viver. O Novo Testamento utiliza a palavra de modo figurado indicando como deve ser o nosso comportamento:

            1) Positivamente:

a) “Em novidade de vida” (Rm 6.4)

b) Às claras; na luz (Rm 13.13; 1Jo 1.7)

c) Em amor fraternal (Rm 14.15; Ef 5.2; 2Jo 6)

d) Por fé (2Co 5.7)

e) No Espírito (Gl 5.16)

f) Segundo as obras de Deus (Ef 2.10)

g) Conforme os mandamentos de Deus: a verdade (2Jo 4; 3Jo 3-4)

h) Como filhos da luz (Ef 5.8)

i) Com sabedoria (Cl 4.5)

j) Segundo o modelo e ensino apostólico (Fp 3.17-18; 2Ts 3.6)

k) Dignamente (Ef 4.1; Cl 1.10; 1Ts 2.12; 4.12)

l) Conforme Cristo (Cl 2.6; 1Jo 2.6)

m) Visando agradar a Deus (1Ts 4.1)

            2) Negativamente:

 a) Segundo a carne (Rm 8.4/Cl 3.5-7)

 b) Segundo o homem (1Co 3.3)

c) Segundo o mundo (2Co 10.2-3; Ef 2.2)

d) Vaidade de seus pensamentos (Ef 4.17)

e) Desordenadamente (2Ts 3.6,11)

f) Trevas: odiando seu irmão (1Jo 1.6; 2.11)

[15] William G. Tullian Tchividjian, Fora de Moda, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 118.

[16]Apud Willemien Otten, Religion as exercitatio mentis: A case for theology as a Humanism discipline: In:  Alasdair A. MacDonald, et. al. eds. Christian Humanism: Essays in Honour of Arjo Vanderjagt, Leiden: Brill Academic Pub., 2009, p. 60.

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