A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (19)

5.5. Para resistir ao Diabo

Uma das artimanhas do diabo é manter-nos na ignorância da Palavra de Deus. Podemos até ter contato com ela, entender intelectualmente sua mensagem, no entanto, não faz sentido espiritual. Não conseguimos visualizar significativamente o Senhor da glória, a essência do Evangelho (2Co 4.1-6).  Aliada a esta estratégia, satanás, partindo de uma hermenêutica mentirosa amplamente adequável aos seus interesses, procura torcer os ensinamentos de Deus para gerar indecisão e confusão, semeando a discórdia (Gn 3.1-7; Mt 4.5-6; 13.24-25,38-39).

 

Lloyd-Jones (1899-1981) expressou bem esta questão, dizendo: “A mente é o dom mais elevado do homem e, por isso, o diabo concentra os seus ataques nas mentes dos homens”.[1]

 

Paulo fala dos desígnios (no/hma)[2] de Satanás (2Co 2.11) – indicando a ideia de que ele tem metas definidas, estratégias elaboradas, um programa de ação com variedades de técnicas e opções a serem aplicadas conforme as circunstâncias.[3]   Satanás “fará qualquer coisa para conseguir vantagem sobre nós, diz o apóstolo, fará qualquer coisa para derrubar-nos, para fazer-nos parecer ridículos e para pôr em desgraça o nome de Deus”.[4]

 

Ele emprega toda a sua “energia” para realizar os seus propósitos. Esta ação é notória entre aqueles que ainda não conhecem a Cristo. Para que não entendam a Palavra de Deus, Satanás age obscurecendo o seu entendimento. Paulo diz que “… O deus deste século cegou os entendimentos (no/hma) dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4). (Vejam-se: Ef 4.17-18; Cl 1.21).

 

Na realidade, é possível – e creio que conhecemos bem isso – criar uma atmosfera contrária à fé cristã, uma má vontade para com a verdade, uma estrutura de pensamento totalmente secularizada onde não há lugar para Deus, valores e conceitos transcendentes e objetivos. O pecado afeta a totalidade do homem, inclusive o seu intelecto.[5] Assim, criamos um universo de valor privado onde a verdade é de cada um dentro dos significados subjetivos circunstanciais. Ou seja, meu desejo e interesse determinam as circunstâncias.

 

Aos judeus que não entendiam a mensagem de Cristo, Ele diz: “Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem (lalia/)[6]? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra (lo/goj).[7] Vós sois do diabo que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos (…). Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso não me dais ouvidos, porque não sois de Deus” (Jo 8.43,44,47).

 

A insensibilidade de Seus ouvintes não estava ligada à suposta obscuridade da mensagem de Cristo ou à Sua linguagem, mas sim à incapacidade espiritual de Seus ouvintes de entenderem o que Jesus lhes falara; havia um clima de total má vontade e descaso para com o Evangelho por Ele anunciado. No entanto, aqueles que são de Deus ouvem a Palavra de Deus, entendem salvadoramente a Sua mensagem e, portanto, são salvos. Deus é o Mestre que com sua didática celestial aponta para o filho: “Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus (didaktoi. qeou/). Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim” (Jo 6.45/Jo 10.27-29).

 

Calvino comenta:

 

Deus trata conosco de uma forma tão clara e isenta de ambiguidade que Sua Palavra é com razão denominada de luz. Seu brilho, contudo, é ofuscado por nossas trevas. Isso sucede em parte por causa de nosso embotamento e em parte por causa de nossa leviandade. Apesar de sermos mais do que obtusos em nosso entendimento da doutrina de Deus, há ainda que adicionar a esse vício a depravação de nossas afeições. Aplicamos nossa mente mais à vaidade do que à verdade de Deus. Somos continuamente impedidos, ou por nossa rebelião, ou pelos cuidados deste mundo, ou pela luxúria de nossa carne.[8]

 

Às igrejas perseguidas, Pedro exorta:

 

Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar; resisti-lhe firmes na fé, certos de que sofrimentos iguais aos vossos estão se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mundo. (1Pe 5.8-9).

 

Satanás está ativamente feroz contra nós, desejando encontrar uma fresta, uma brecha pela qual ele possa entrar. Pedro nos diz que devemos resistir-lhe “firmes na fé”.

 

Esta resistência na fé significa: não lhe permitir o acesso, opor-se às suas sugestões malignas.

 

Somente podemos resistir-lhe com fé firmados no fundamento da fé, que é a Palavra de Deus. É Deus mesmo quem nos fortalece, nos firma até o fim.

 

     Às mesmas igrejas sofredoras, Pedro consola e estimula: “O Deus de toda a graça, que em Cristo vos chamou (kale/w) à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por um pouco, ele mesmo vos há de aperfeiçoar, firmar, fortificar e fundamentar” (1Pe 5.10).  

 

Notemos que a nossa resistência ao diabo encontra a sua base em Deus: É Ele Quem nos capacita a perdoar, nos dá a sua armadura, nos protege com a Sua presença e nos sustenta na fé que Ele mesmo produziu em nós.

 

Cipriano de Cartago (c. 210-258), referido por Agostinho (354-430), como “doutor suavíssimo”,[9] comentando o Pai Nosso, nos consola e estimula:

 

Tendo dito ‘livra-nos do mal”, nada mais resta que se deva pedir, pois já pedimos, numa só voz, a proteção de Deus contra o mal. Conseguida essa proteção, estamos seguramente guardados contra as maquinações do diabo e do mundo. Com efeito, que medo do mundo poderia existir para quem, no século, tem a Deus por guarda?[10]

 

De fato, sem Deus, nada podemos fazer (Jo 15.5). Entretanto, pesa sobre nós a responsabilidade de utilizar os meios fornecidos por Deus para que possamos cumprir o imperativo: “Resisti ao diabo”.

 

Pela fé, podemos resistir ao diabo em todas as suas armadilhas: A fé é o conhecimento convicto e confiante de Deus e da Sua vontade (1Pe 5.8,9/1Jo 5.4,5).

 

Maringá, 05 de março de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa

 


 

[1]  D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 76.

[2]A palavra traduzida por “desígnio” (no/hma) (nóêma) ocorre cinco vezes no NT., sendo utilizada apenas por Paulo: 2Co 2.11; 3.14; 4.4; 10.5; 11.3; Fp 4.7, tendo o sentido de “plano” (Platão, Política, 260d), “intenção maligna”, “intrigas”, “ardis”. Com exceção de Fp 4.7, a palavra sempre é usada negativamente no NT. No/hma é o resultado da atividade do nou=j (mente). (J. Behm; E. Wurthwein, nou=j, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 4, p. 960). “É a faculdade geral do juízo, que pode tomar decisões e pronunciar certos ou errados os vereditos, conforme as influências às quais tem sido expostas” (J. Goetzmann, razão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 4, p. 32).

[3] “Satanás não tem propósitos construtivos; suas táticas são simplesmente para contrariar a Deus e destruir os homens” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP. Fiel, 1994, p. 82-83).

[4]D. M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 90.

[5] “O diabo de tal maneira enfeitiça as mentes dos homens que eles se apegam obstinadamente aos erros que em tempos passados assimilaram” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 193). Calvino também observa que os “incrédulos se encontram tão intoxicados por Satanás, que, em seu estupor, não têm consciência de sua miséria” (J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.26), p. 247).

[6]Lalia/ (lalia) (* Mt 26:73; Jo 4.42; 8.43), parece indicar, mais do que o “dialeto”, a estrutura do pensamento de Jesus; eles não conseguiam acompanhar o seu raciocínio.

[7]Aqui significa a mensagem em si, o seu conteúdo.

[8]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.11), p. 139.

[9] Santo Agostinho, A doutrina cristã, São Paulo: Paulus, 2002 (Patrística; 17), II.61, p. 145.

[10]São Cipriano, A oração do Senhor, São Paulo: Paulus, 2016, (Coleção Patrística), 27. p. 194-195.

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