A Pessoa e Obra do Espírito Santo (64)

J. Justo e reto juiz

Justiça essencial  

Temos dito, com aproximações diferentes, que nome Yehovah denota o poder livre e soberano e a autoexistência de Deus: Deus existe por si só, não dependendo de ninguém, de nenhuma circunstância. O seu poder eterno emana de si mesmo, que é a sua fonte inesgotável. Deus mesmo disse a Moisés: “Eu Sou o que Sou”(Ex 3.14).

    A justiça é inerente ao conceito de Deus no Antigo Testamento, bem como ocupa um lugar central em todas as relações humanas. O padrão que deve reger nossas relações é o princípio de justiça estabelecido na Lei de Deus.[1]

    Sobre isso escreveu Von Rad (1901-1971):

Dentre os conceitos que designam as relações vitais do homem, o conceito de tzedâkâh [justiça] é o mais importante e o mais central de todo o Antigo Testamento. Constitui o critério das relações entre o homem e Deus, dos homens entre si, até nas disputas mais insignificantes, do homem com os animais e do homem com o ambiente natural em que ele se move. O tzedâkâh pode, simplesmente, ser apontada como o valor supremo da vida e o fundamento em que repousa toda a existência ordenada.[2]

Justo em si mesmo

    Deus é justo em sua própria essencialidade, mantendo-se contrário a toda e qualquer violação da sua santidade. A ira de Deus é uma expressão da sua justiça diante do pecado que consiste na quebra de sua Lei revelada.[3]

    A Escritura nos ensina que Deus é justo em si mesmo. É absolutamente justo e, por isso mesmo, justo em suas relações. A natureza santa de Deus é a lei, e, é a partir dela todas as demais leis devem ser avaliadas. O padrão da justiça de Deus é-nos revelado nas Escrituras.[4]

    O salmista exaltando a Deus que se revela na natureza e na Palavra, canta: “Os juízos do SENHOR (hw”hoy>) (Yehovah) são verdadeiros e todos igualmente, justos (qd;c’) (tsadaq)” (Sl 19.9).

Juízo discernidor

    O Senhor é justo em todas as suas expressões. Em seu juízo tem diante de si um conhecimento imediato, abrangente, exaustivo e criterioso de todas as coisas. Ele tem um conhecimento claro e distinto de toda a realidade porque, toda a realidade, em última instância, existe sob o seu poder:

4O SENHOR está no seu santo templo; nos céus tem o SENHOR seu trono; os seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam (!x;B’)(bahan) (= examinar, testar provar) os filhos dos homens. 5O SENHOR põe à prova (!x;B’)(bahan) ao justo e ao ímpio; mas, ao que ama a violência, a sua alma o abomina. (Sl 11.4-5/Sl 7.10; 17.3; 66.10; 139.23; Pv 17.3).

Deus conhece as coisas como são

    Deus conhece as coisas como elas de fato são, porque é ele quem as preserva. O seu critério de “avaliação” é minucioso, completo e verdadeiro.[5]

    A verdade revelada nas Escrituras é a realidade como Deus a percebe. Deus percebe as coisas como são. Somente Deus, e mais ninguém, tem um conhecimento objetivo, exaustivo e sempre presente da realidade.

    A verdade é uma expressão de Deus em si mesmo e na Criação. Deus é a verdade, opera por meio da verdade e nos conduz à verdade. A graça de Deus opera pela verdade e, nesta verdade que foi ouvida e compreendida, frutificamos (Cl 1.6).

    As coisas são como são porque de alguma forma Deus as sustenta. Antes de atribuirmos valor à verdade, ela já o tem porque foi Deus quem a criou e lhe confere significado.

    Nessa certeza, ora o salmista:

8O SENHOR julga os povos; julga-me, SENHOR, segundo a minha retidão e segundo a integridade que há em mim. 9 Cesse a malícia dos ímpios, mas estabelece tu o justo; pois sondas (!x;B’) (bahan) (examinar, testar provar) a mente e o coração, ó justo Deus. (Sl 7.8-9).

    Deve ser dito logo de início que Davi não reivindicava a sua impecabilidade, contudo, considerava-se limpo e, por isso, injustiçado em relação às acusações que lhe faziam (Sl 7.8). Como sabemos, nenhum de nós retrata de forma perfeita a justiça de Deus, portanto, não há um justo sequer (Rm 3.9-12/Sl 14.1-3).[6]

Dificuldade humana em julgar

    Uma das difíceis tarefas que enfrentamos é a de julgar. Diariamente, talvez sem perceber, exercemos a nossa capacidade de julgar. Quando, por exemplo, escolhemos a roupa com a qual vamos trabalhar, se vamos levar agasalho ou não, se é melhor fazer determinadas tarefas pela manhã ou deixá-las para mais tarde, ler essas notas ou deixar para depois ou mesmo, fazer outra atividade, etc.

    Em certa ocasião, como tinha que ajudar meu filho a fixar alguns armários em sua loja, me vesti mais à vontade ao me dirigir à padaria para tomar o meu café matinal. Antes disso só minha devocional. Enquanto caminhava, começou a chuviscar. Um chuvisco indeciso é verdade. Contudo, depois de caminhar uns 150 metros, não tive dúvida. Voltei ao Seminário, peguei o guarda-chuva, calcei a bota própria até para neve, e fui feliz tomar o meu café. Fui e voltei sem abrir o guarda-chuva. Julguei mal. A única neve que vi, foi a de espuma do “lava a jato” perto do Seminário.

Paixões interferem em nossos juízos

Contudo, nem todas as nossas escolhas são tão rotineiras como as mencionadas acima. Além de nossas paixões que obstruem a visão mais objetiva da realidade e, consequentemente de nossos juízos, um dos agravantes para nós é que mesmo estando com o desejo puro e honesto de sermos justos, faltam-nos elementos; não temos todas as informações, somos enganados pelas pequenas e, paradoxalmente, intensas impressões que temos; não conseguimos ter uma visão mais ampla da realidade ou mesmo, clara do que temos.

    Ilustro: Em certa ocasião (janeiro de 2010) assisti a uma reportagem na qual a Polícia Civil de SP prendeu uma gangue que iludia as pessoas com a possibilidade de ganhar dinheiro localizando a bolinha dentro de uma das três forminhas que o “jogador” manipulava em um tabuleiro improvisado. Em determinado momento, um senhor que fora preso foi entrevistado e ele disse que era aposentado, estava de passagem indo comprar remédio; aquilo tudo era um engano. Por alguns segundos fiquei solidário com aquele senhor, até que a reportagem exibiu uma gravação que o mostrava durante dias seguidos sendo um dos agentes da gangue. Percebi logo o meu equívoco e como o meu sentimento me enganou.

    Maringá, 26 de novembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Na Lei de Deus nos é apresentado um padrão perfeito de toda a justiça que pode, com razão, ser chamada de vontade eterna do Senhor. Deus condensou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que Ele requer de nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, Ele prescreve qual é o culto agradável à Sua majestade. Na segunda tábua, Ele nos diz quais são os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a Lei, portanto, e veremos que ensinamentos devemos tirar dele e, similarmente, que frutos devemos colher dela” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 8, p. 21).

[2]Gerhard Von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: ASTE, 1986 (Reedição), v. 1, p. 353. Veja-se:  A.H. Leitch, Justiça: In: M.C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 3, p. 807.

[3]“Intimamente relacionada com a santidade de Deus está a sua ira, a qual é, de fato, a sua reação santa ao mal” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Vida, 1991, p. 93). “Ira e furor do Senhor não são perturbação da mente e sim força vindicativa, inteiramente justa, pois serve-o submissa toda a criação.  (…) A ira de Deus, portanto, é a comoção da alma, conhecedora da lei de Deus, ao ver o pecador transgredir a mesma lei” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulinas, 1997, (Patrística, 9/1), v. 1, (Sl 2.4), p. 26).

[4]Veja-se Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 77-78.

[5] Do mesmo modo: Jr 11.20; 12.3; 20.12.

[6]9Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; 10como está escrito: Não há justo, nem um sequer, 11não há quem entenda, não há quem busque a Deus; 12todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12).

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