Uma oração intercessória pela Igreja (75)

         7.3.1.4. A Sabedoria do Espírito em nossa cotidianidade (Continuação)

            Acreditamos que podemos conhecer a verdade – ainda que não exaustivamente ‒ porque nenhuma cosmovisão está acima de uma avaliação bíblica.

            Os bereanos se constituem em exemplo de uma avaliação criteriosa do que ouviram, primariamente, com atenção e interesse, independente de quem lhes ensinava, conforme narra Lucas: “Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando (a)nakri/zw) (“fazer uma pesquisa cuidadosa”, um “exame criterioso”, “inquirir”) as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”(At 17.11).

            O nosso desejo de servir a Deus não nos deve tornar presas fáceis de qualquer ensinamento ou doutrina. Precisamos cientificar-nos se aquilo que é-nos transmitido procede ou não de Deus. Para este exame, temos as Escrituras Sagradas como fonte de todo conhecimento revelado a respeito de Deus e do que Ele deseja de nós.

            O não investigar (Sl 10.4) é um mal em si mesmo. Um bom princípio é examinar o que se nos apresenta como realidade dentro de suas multifárias percepções,[1] não nos deixando seduzir e guiar por nossas inclinações ou pelas tendências massificantes.

            Em geral, quando nos faltam critérios objetivos, apelamos para o gosto como critério definitivo e solitário. Assim, somos conduzidos simplesmente por princípios que nos agradam sem verificar a sua veracidade. O fim disso pode ser trágico. Assim sendo, por mais autoeloquentes que possam se configurar aspectos da chamada realidade, precisamos examiná-los antes de os tomarmos como pressupostos para a aceitação de outras declarações também reivindicatórias.

            Quando nos omitimos deste exame, deste juízo crítico, sem percebermos, estamos contribuindo para que os ensinamentos hoje aceitos inconsistentemente, amanhã se tornem pressupostos que determinarão as nossas escolhas e avaliações.[2]

            As hipóteses de hoje poderão se tornar nas teorias de amanhã e as futuras leis do pensamento e da moral. Neste caso, já estarão acima de qualquer suspeita e discussão: tornaram-se verdade. A ciência é, com frequência, um refinamento das observações cotidianas.[3]

            Como escreveu Pearcey: “A questão importante é o que aceitamos como premissas básicas, pois são elas que moldam tudo o que vem depois”.[4] Há o perigo de, sem nos darmos conta, formar a nossa cosmovisão baseados em um mosaico de peças promíscuas, contraditórias e excludentes.[5]

            O homem não é a medida de todas as coisas como queria Protágoras (c. 480-410 a.C.)[6] e os Renascentistas ao revisitarem a sua frase.[7] No entanto, isto não significa a admissão de falta de um referencial, antes, na afirmação de que Jesus Cristo é a medida, o cânon da verdade e, portanto, de toda avaliação que fizermos da realidade que nos circunda.

            Os bereanos, como vimos, tinham um padrão de verdade. Eles criam na sua existência e acessibilidade. Examinaram o que Paulo dizia à luz das Escrituras, ou seja: o Antigo Testamento. Se não tivermos um referencial teórico claro, como poderemos analisar de modo coerente a realidade? Sem referências, tudo é possível dentro de um quadro interpretativo forjado conforme as circunstâncias e meus interesses. Todo absoluto envolve antíteses.

            Talvez, mesmo para nós cristãos, esteja faltando hoje, ainda que não de hoje, um pensamento cristão,uma mente cativa a Cristo que nos propicie o desenvolvimento de uma cosmovisão cristã.[8]

            Cosmovisão é um compromisso de fé e prática. Por isso, o nosso trabalho pastoral consiste na aplicação de nossa fé – criticamente avaliada a partir das Escrituras – às condições concretas de nossa existência. A fé é chamada a se materializar nos desafios que se configuram diante de nós em nossa história de vida.

            Por conseguinte, o ministério pastoral é um serviço que prestamos a Deus por meio da igreja, do povo que Ele mesmo nos concedeu o privilégio de pastorear. Em fidelidade a nossa vocação não podemos perder de vista o nosso propósito: servimos a Deus dentro de nossas limitações e expectativas. A graça de Deus tão necessária é abundante e, por isso, suficiente.

            Tornamos à orientação de Paulo: Pondera (noe/w) (= atentar, compreender, pensar, entender) o que acabo de dizer, porque o Senhor (ku/rioj) te dará compreensão (su/nesij) (= entendimento, inteligência, discernimento) em todas as coisas” (2Tm 2.7).

            O que Paulo instrui a Timóteo é no sentido de que ele reflita sobre o que o Apóstolo lhe escreveu buscando a compreensão no Senhor. Pensamento e oração caminham juntos. “Um ministro que ora está no caminho para ter um ministério bem-sucedido”, declarou Shaw em 1752.[9] Contrariamente, a ausência de oração determinará de forma trágica a morte de toda a sua vitalidade espiritual.[10]

            Não podemos excluir Deus de nossas pesquisas. A piedade para tudo é proveitosa (1Tm 4.8). Não permitamos que a nossa fé nos afaste de uma pesquisa séria.[11] A nossa fé deve ser o transpirar de nossa teologia. “A fé cristã não é uma fé apática, uma fé de cérebros mortos, mas uma fé viva, inquiridora. Como Anselmo afirmou, a nossa fé é uma fé que busca entendimento”, resume Craig.[12]

            A nossa fé nunca pode ser algo ocioso.[13] Devemos, portanto, pensar sobre o pensar rogando a Deus a sua iluminação. As nossas mãos devem ser agentes daquilo que, por graça temos percebido. Deus mesmo, por graça, nos dará o discernimento sobre todas as coisas. Pense sobre isso. Ore, persevere em orar a respeito.

            Aos ministros de modo especial: Pregue a Palavra com fidelidade, profundidade, integridade e simplicidade.[14] Cumpra a sua vocação. Ouça o Espírito falando por meio da sua Palavra. Viva esta Palavra. Ensine à Igreja a Palavra do Espírito. Assim Deus será glorificado. Ele mesmo, o Senhor da Glória, haverá de abençoá-los suprindo todas e cada uma de suas necessidades.

 

Maringá, 13 de junho de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “A prova de que as coisas são apenas valores é óbvia; pegue-se uma coisa qualquer, transmita-lhe diferente sistema de valoração, e se terá outras tantas coisas diferentes em lugar de apenas uma. Compare-se o que é a terra para um lavrador e para um astrônomo: para o lavrador é suficiente pisar a rubra pele do planeta e arranhá-la com o arado; sua terra é um caminho, uns sulcos e umas messes. O astrônomo necessita determinar exatamente o lugar que o globo ocupa em cada instante dentro da enorme suposição do espaço sideral: o ponto de vista da exatidão o obriga a convertê-la em uma abstração matemática, em um caso da gravitação universal. O exemplo poderia continuar indefinidamente.

            “Não existe, portanto, essa suposta realidade imutável e única com a qual se pode comparar os conteúdos das obras artísticas; há tantas realidades quanto pontos de vista. O ponto de vista cria o panorama. Há uma realidade de todos os dias formada por um sistema de laxas relações, aproximativas, vagas o suficiente para os usos da vida cotidiana. Há uma realidade científica forjada em um sistema de relações exatas, impostas pela necessidade de exatidão. Ver e tocar as coisas não são, no fim das contas, senão maneiras de pensá-las” (Ortega y Gasset, Adão no Paraíso: In: Juan Escárnez Sánchez, Ortega y Gasset, Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 127).

[2]Veja-se: C.S. Lewis, A Abolição do Homem, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.

[3]Creio ser interessante ler o artigo: Taylor B. Jones, Por que uma visão bíblica da Ciência?: In: John MacArthur, ed. ger., Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, especialmente, p. 337-363.

[4]Nancy Pearcey, Verdade Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, p. 44.

[5]Veja-se: Nancy Pearcey, Verdade Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, p. 48.

[6]Apud Platão, Teeteto, 152a: In: Teeteto-Crátilo, 2. ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, 152a; 160c. Citado também em Platão, Crátilo, 385e. Aristóteles, diz: “O princípio (…) expresso por Protágoras, que afirmava ser o homem a medida de todas as coisas (…) outra coisa não é senão que aquilo que parece a cada um também o é certamente. Mas, se isto é verdade, conclui-se que a mesma cousa é e não é ao mesmo tempo e que é boa e má ao mesmo tempo, e, assim, desta maneira, reúne em si todos os opostos, porque amiúde uma cousa parece bela a uns e feia a outros, e deve valer como medida o que parece a cada um” (Metafísica, XI, 6. 1 062). (Para consultar uma edição bilingue, grego-português, veja-se: Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Loyola, 2002. Disponível em: https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1332285/mod_resource/content/1/Aristoteles-Metafisica-Edicoes%20Loyola%20%282002%29.pdf) (Consultado em 13.06.2023). Platão diferentemente de Protágoras, entendia que a medida de todas as coisas estava em Deus. “Aos nossos olhos a divindade será ‘a medida de todas as coisas’ no mais alto grau” (Platão, As Leis, Bauru, SP.: EDIPRO, 1999, IV, 716c. p. 189).

[7] “Vivemos em uma cultura que procura nos convencer de que o homem é a medida de todas as coisas ‒ cada um é o próprio capitão de seu destino e o senhor de sua alma” (W. G. Tullian Tchividjian, Fora de Moda, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 44).

[8] “Nossas igrejas estão cheias de pessoas que são espiritualmente nascidas de novo, mas que ainda pensam como não cristãs” (William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 14).

[9] John Shaw, The Character of a Pastor According to God’s Considered, 2. ed. Morgan, Pa.: Soli Deo Gloria, 1998, p. 10.

[10] “A oração é a conversa da alma com Deus. (…) Um homem sem oração é necessária e totalmente irreligioso. Não pode haver vida sem atividade. Assim como o corpo está morto quando cessa sua atividade, assim a alma que não se dirige em suas ações a Deus, que vive como se não houvesse Deus, está espiritualmente morta” (Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,1976 (Reprinted),v. 3, p. 692).

[11] “Torne sua vida ‒ especialmente sua vida de estudos ‒ uma vida de constante comunhão com Deus em oração. O aroma de Deus não permanece por muito tempo sobre uma pessoa que não se demora em sua presença (…). Somos chamados ao ministério da Palavra e da oração, porque sem oração o Deus de nossos estudos será o Deus que não assusta, que não inspira, oriundo de uma prática acadêmica ardilosa” (John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 57).

[12]William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 29. De igual modo: Garrett J. DeWeese; J.P. Moreland, Filosofia Concisa, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 158.  Veja-se também: Leo Strauss; Eric Voegelin, Fé e filosofia política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin, São Paulo: É Realizações, 2017, p. 169.

[13]Veja-se: João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 134.

[14] “O uso de uma linguagem mais difícil pode ser a forma correta em determinadas situações, mas não é a forma correta na pregação. Pregações são feitas verbalmente. Têm como objetivo o ser compreendido. Se, ocasionalmente, é necessário o uso de palavras incomuns, elas são explicadas. Pregadores que não usam palavras do dia-a-dia em suas mensagens não estão ministrando como o seu Mestre” (Stuart Olyott, Ministrando como o Mestre: Aprendendo com os métodos de Jesus, São José dos Campos, SP.: Fiel, © 2005, 2010 (Reimpressão), p. 12). “A pregação de hoje deve ser feita em uma linguagem de comunicação social; caso contrário, haverá um obstáculo ao entendimento” (Francis A. Schaeffer, A Arte e a Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 63).

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