Uma oração intercessória pela Igreja (69)

          7.3.1.2. A nulidade e loucura da sabedoria humana nas questões espirituais

          Milosz (1911-2004), escritor Russo, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1980), escreveu de forma provocante:

Religião, ópio do povo! Para aqueles que sofrem de dor, humilhação, doença e servidão, prometeu uma recompensa na vida após a morte. E agora estamos passando por uma transformação. Um verdadeiro ópio para as pessoas é a crença em nada após a morte – o grande consolo em pensar que não somos julgados por nossa traição, ganância, covardia e homicídio.[1]

            Paulo, com toda a sua genialidade iluminada pelo Senhor, inclusive por causa disso, percebe as limitações próprias de nosso intelecto. O apóstolo, por isso mesmo, suplica pela sabedoria de Deus porque, nós, por nossa própria sabedoria jamais poderemos compreender salvadoramente o que Deus nos tem revelado. E mais: se pudéssemos por nós mesmos fazê-lo, não haveria graça, mas, mérito humano.[2] Assim, não haveria porque louvar o Deus da graça que a derramou abundantemente sobre nós (Ef 1.5-8). A grandeza estaria no homem e em sua capacidade de bem conduzir a sua razão.

            Porém, como sabemos, a razão humana, por si só, não assistida pela graça, não pode chegar às verdades espirituais.[3] O fato, portanto, é que o Evangelho permaneceria oculto a todos nós se Deus não O manifestasse e não nos concedesse o Espírito de sabedoria para entendê-lo.[4]

            É por isso que a pregação de Paulo a judeus e gentios não poderia ser outra do que “a Cristo, poder de Deus e sabedoria (sofi/a) de Deus” (1Co 1.24). (Do mesmo modo: 1Co 1.30).

            A sabedoria do homem sem Deus, em seus devaneios autônomos, o tornou louco, afetando todos os domínios do seu coração, pretendendo passar por sábio autônomo,[5] rejeitou a Deus e a Sua revelação, tornando-se enlouquecidamente escravo de toda sorte de paixões idólatras. Paulo escreve sobre isso aos Romanos:

18 A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; 19 porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. 20 Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21 porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. 22 Inculcando-se por sábios (sofo/j), tornaram-se loucos (mwrai/nw) 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis (Rm 1.18-23).

            A idolatria torna os homens cativos de uma forma viciada de pensar. O produto de nossos raciocínios torna-se nulo em sua própria elaboração. As evidências da revelação são sempre ocultadas em seus corações dominados por uma forma rotineira de pensar e determinantemente horizontal, tendo como fim os seus interesses (Rm 1.19-21).

            Schaeffer (1912-1984) comenta:

Quando a Escritura fala do homem sendo deste jeito tolo, não significa que ele é apenas religiosamente tolo. Antes, significa que ele aceitou uma posição que é intelectualmente tola, não somente com respeito ao que a Bíblia diz, mas também em relação àquilo que existe – o universo e sua forma, e a humanidade do homem. Ao se afastar de Deus e da verdade que ele deu, o homem ficou tolamente tolo em relação ao que o homem é e ao que o universo é. Ele é deixado em uma posição com a qual ele não consegue viver, e ele é pego numa multidão de tensões intelectuais e pessoais.[6]

            Ao que parece a idolatria, já como resultado da obscuridade espiritual, elimina boa parte de nossa sensibilidade espiritual, brutalizando-nos, amortecendo certas faculdades nossas. Por isso, é que a idolatria nunca vem sozinha, ela sempre está acompanhada de outras práticas irracionais e pecaminosas.

            O salmista comparando a grandeza de Deus com os ídolos feitos pelos homens, arremata: “Como eles se tornam os que os fazem, e todos os que neles confiam”(Sl 135.18). Os homens que se projetam em seus ídolos não têm alternativa possível, senão tornarem-se semelhantes à sua imagem que adoram, afinal, seus ídolos, nada lhes propõem, que já não seja da natureza de seus criadores.

            Este conceito encontramos também em Oséias, quando relembrando o pecado do povo de Israel no deserto, diz:         “…. mas eles foram para Baal-Peor, e se consagraram à vergonhosa idolatria, e se tornaram abomináveis como aquilo que amaram” (Os 9.10). A idolatria apenas forneceu as bases justificadoras da prática que desejavam.

          Como a idolatria é a construção de um deus que se harmonize com seus desejos, nada mais natural de que esta construção humana termine por se tornar no seu modelo de vida e comportamento. Há aqui um círculo vicioso: Crio meus deuses com características semelhantes às minhas a fim de que ele se torne um modelo para que eu continue sendo o que sou, reforçando assim a minha prática.

            Vemos aqui a pertinência da crítica grega ao hábito de forjar seus deuses conforme os seus próprios vícios. Nestas críticas, destacamos: Xenófanes (c. 570-c.460 a.C.), Heráclito (c. 540-480 a.C.) e Empédocles (c. 495-455 a.C.).

            Xenófanes faz uma crítica perspicaz a Homero e Hesíodo:

Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.

Como contavam dos deuses muitíssimas ações contrárias às leis: roubo, adultério, e fraudes recíprocas.

Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles.

Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo a sua própria forma.

Os etíopes dizem que os seus deuses são negros e de nariz chato, os trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos.[7]

            Xenófanes propunha uma visão aparentemente próxima ao monoteísmo[8] ou pelo menos, um “politeísmo não antropomórfico”,[9] mas, ainda assim, cosmológico, identificando, conforme pontua Aristóteles, o uno, ou seja, o universo,[10] como sendo Deus.[11] Xenófanes escreve: “Um único deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais”.[12] Na realidade, Xenófanes destaca um deus supremo acima dos demais deuses e dos homens.[13]

            Reale (1931-2014) e Antiseri acentuam que “depois das críticas de Xenófanes, o homem ocidental poderá nunca mais conceber o divino segundo formas e medidas humanas”.[14]

            Heráclito – a quem, juntamente com Sócrates, Justino considera cristão antes de Cristo[15] – ridiculariza o antropomorfismo e a idolatria da religião contemporânea, dirigindo a sua crítica à prática do sacrifício como meio de purificação, e às orações feitas às imagens: “Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vítimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem também suas orações a estátuas, como se fosse possível conversar com edifícios, ignorando o que são os deuses e os heróis”.[16] Todavia devemos ressaltar que ele não era irreligioso, apenas discordava da prática religiosa que via.[17]

            Empédocles fala do privilégio de se conhecer a Deus, que é um ser espiritual:

Bem aventurado o homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina; desgraçado o que guarda uma opinião obscura sobre os deuses.

Não nos é possível colocar (a divindade) ao alcance de nossos olhos ou de apanhá-la com as mãos, principais caminhos pelos quais a persuasão penetra o coração do homem.

Pois o seu corpo (da divindade) não é provido de cabeça humana; dois braços não se erguem de seus ombros, nem tem pés, nem ágeis joelhos, nem partes cobertas de cabelos; é apenas um espírito; move-se, santo e sobre-humano, e atravessa todo o cosmos com rápidos pensamentos.[18]

Maringá, 13 de junho de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Czeslaw Milosz, Diskreter Charme des Nihilismus.  In:  New York Times Revies of Books,  19 de novembro de 1998 (https://www.nybooks.com/articles/1998/11/19/discreet-charm-of-nihilism/) (Consulta feita em 13.06.2023). 

[2]“Se todo homem fosse capaz de crer e ter fé de moto próprio, ou a pudesse obter por algum poder de si mesmo, o louvor disso não teria que ser dado a Deus” (João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 132).

[3]Veja-se: John MacArthur, Deus: Face a face com sua majestade, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 67.

[4] “O Evangelho só pode ser entendido por meio da fé – não pela razão, nem pela perspicácia do entendimento humano, porque de outro modo ele seria algo oculto de nós” (João Calvino, Colossenses: In: Gálatas – Efésios – Filipenses – Colossenses, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, (Cl 2.1-5), p. 531).

[5]“A forma extrema da idolatria é o humanismo, que vê o homem como a medida de todas as coisas” (R.C. Sproul, O que é a teologia reformada: seus fundamentos e pontos principais de sua soteriologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 33).

[6]Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade,São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.

[7]Xenófanes, Fragmentos, 11-16. In: Gerd A. Bornheim, org. Os Filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 32. Mais tarde, um escritor cristão do segundo século, fazendo uma apologia do Cristianismo – que estava sendo severamente perseguido durante o reinado de Adriano (117-138 AD), a quem destina o seu escrito – critica o politeísmo grego (Veja-se, em especial: Aristides de Atenas, Apologia,I.8-9. In: Padres Apologistas,São Paulo: Paulus, 1995, p. 43-45).

[8]Kenny denomina a posição de Xenófanes de “monoteísmo sofisticado e austero” e “sofisticado monoteísmo” (Anthony Kenny, Uma Nova História da Filosofia Ocidental. Volume I – Filosofia Antiga, 2. ed. São Paulo, Loyola, 2011, p. 36 e 334).

[9] W.K.C. Guthrie, Os Sofistas,São Paulo: Paulus, 1995,p. 211.

[10]Ver: Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, São Paulo: Paulus, 1990, v. 1, p. 49.

[11] Aristóteles, Metafísica,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.5, p. 223.

[12] Xenófanes, Frag.,23.

[13] Cf. Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 55.

[14]Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, v. 1, p. 48.

[15]Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 46.3. p. 61-62.

[16]Heráclito, Frag., 5. Veja-se também: Frag., 14. Sobre Heráclito, Bréhier comenta: “A sabedoria de Heráclito despreza o que ao vulgo se refere: a começar pela religião popular, a veneração das imagens e, particularmente, os cultos misteriosos, órficos ou dionisíacos [Frags., 5,14,15], com suas ignóbeis purificações pelo sangue, os traficantes de mistérios, que alimentam a ignorância dos homens sobre o além” (É. Bréhier, História da Filosofia, São Paulo: Mestre Jou, 1977, I/1, p. 53).

[17]Heráclito, Frags., 14/67.

[18]Empédocles, Fragmentos, 132-134. In: Gerd A. Bornheim, org. Os Filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 80-81.

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