Uma oração intercessória pela Igreja (153)

         13) Sábio manejo da Palavra em seu anúncio perseverante  (Continuação)

            Escrevendo a Thomas Cranmer (1489-1556)[1] (jul/1552?) diz: “A sã doutrina certamente jamais prevalecerá, até que as igrejas sejam melhor providas de pastores qualificados que possam desempenhar com seriedade o ofício de pastor”.[2]

Considerando isso, a Igreja deve se deixar dirigir pelo seu pastor:

[Visto] que foi aos pastores incumbida a pregação da doutrina celeste; vemos que todos, a uma, estão sujeitos à mesma disposição, de sorte que se permitam ser dirigidos, com espírito brando e dócil, pelos mestres criados para esta função.[3]

            No dia 30 de julho de 1555, em sua série de sermões sobre Deuteronômio (6.15-19), dá o seu testemunho pessoal:

Deus prometeu que suas bênçãos estariam sobre as mãos daqueles que labutam (…). Se eu subisse ao púlpito sem nem olhar para um livro, e levianamente dissesse a mim mesmo: ‘Bem, quando eu for pregar, Deus vai me dar o que dizer’, e viesse aqui sem me dar ao trabalho de ler ou pensar sobre o que devo declarar, e sem considerar cuidadosamente como devo aplicar as Sagradas Escrituras para a edificação do povo, então eu seria um tolo arrogante!.[4]

            Como vimos, a Escritura Sagrada foi-nos dada com propósitos específicos. Dentro destes propósitos ela é suficiente e eficaz. Sabemos, por exemplo, que a Bíblia não tem a pretensão de fazer ciência; ela não é um manual científico que pretenda ensinar-nos a respeito de Química, Física, Biologia, Botânica, Astronomia etc. Entretanto, cremos que o que ela diz no campo científico, como em qualquer outro, é a verdade do ponto de vista fenomenológico,[5] não havendo divergência real entre a genuína ciência e a correta interpretação da Bíblia,[6] já que Deus é o Senhor de toda a verdade.[7]

            Portanto, a nossa compreensão bíblica é determinada pela própria Revelação de Deus contida na Bíblia. Não interpretamos a Bíblia simplesmente à luz da história, ou de seus condicionantes políticos, sociais, econômicos e culturais; antes, olhamos a história a partir da perspectiva das promessas divinas.[8]

            Pedro diante do abandono de alguns “discípulos temporários” e a pergunta do Senhor se ele e os demais não queriam seguir o mesmo caminho de fuga, responde: “Senhor, para quem iremos? tu tens as palavras da vida eterna” (Jo 6.68).

            Anos depois, o próprio Pedro escreveria às igrejas lembrando o chamado daqueles irmãos: “Pois fostes regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente” (1Pe 1.23). Do mesmo modo, Paulo escrevera aos crentes romanos: “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16).

            Deus opera o nosso novo nascimento espiritual por meio da Palavra. Este é o testemunho que Paulo dá aos coríntios: “Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus” (1Co 4.15).

            Portanto, manejar bem a Palavra significa proclamá-la conclamando os homens ao arrependimento e à fé em Jesus Cristo, instruindo os crentes no sentido de crescerem espiritualmente rumo ao modelo perfeito que é Jesus Cristo (Rm 8.29).

            Dessa forma, a pregação envolve necessariamente a compreensão e transmissão de sua mensagem primária e a devida aplicação ao nosso tempo e, sempre que possível, ao contexto histórico mais específico de nossos ouvintes.

            A aplicação sem compreensão gera superficialidade e exercício apenas de nossas opiniões. A compreensão sem aplicação propicia apenas informações que, por mais ricas e detalhadas que sejam, não edificam.

            O ensino da Palavra é um privilégio responsabilizador; consiste em partilhar com o nosso próximo as riquezas que o Espírito tem nos concedido.

Maringá, 15 de setembro de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Arcebispo de Canterbury, que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração cristã.

[2]Calvin to Cranmer, “Letter,” John Calvin Collection,[CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), 18. Do memo modo, Letters of John Calvin,Selected from the Bonnet Edition, p. 141-142.

[3] João Calvino, AsInstitutas, IV.1.5.

[4] I. Calvini, Sermon Dt 6.15-19: In: Herman J. Selderhuis, ed. Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 26), Colunas  473-474.

[5] Strong, de forma irônica, pergunta a respeito da descrição do texto de Gn 24.63: “Seria preferível, no Antigo Testamento, se o texto dissesse: ‘Quando a revolução da terra sobre o seu eixo fez com que os raios do luminário solar impingissem horizontalmente sobre a retina, Isaque saiu para meditar’?” (August H. Strong, Systematic Theology, 35. ed. Valley Forge, PA.: The Judson Press, 1993, p. 223). Vejam-se, também: John H. Gerstner, A Doutrina da Igreja Sobre a Inspiração Bíblica: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 26-27; R.C. Sproul, Razão Para Crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 15-25; Bruce K. Waltke, Gênesis, São Paulo:Cultura Cristã, 2010, p. 87-88 (especialmente); Francis A. Schaeffer, Nenhum conflito final: a Bíblia sem erro em tudo o que ela afirma, Brasília, DF.: Monergismo, 2017, p. 29-33; Alan Richardson, Genesis I-XI Introduction and Commentary, London: SCM Press, 1953, p. 35-38 (especialmente). A referência a este último autor é feita com cautela. Ele parte dos pressupostos da hipótese documental, interpretando inclusive, os 11 primeiros capítulos de Gênesis como “parábola” (Cf. Alan Richardson, Introdução à Teologia do Novo Testamento, São Paulo: ASTE, 1966, p. 247; Alan Richardson, Genesis I-XI Introduction and Commentary, London: SCM Press, 1953, p. 27-34. Para uma visão crítica desta posição, veja-se: G.L. Archer Jr., Merece Confiança o Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1974, p. 225. Para uma crítica mais recente a essa e outras posições que negam a literalidade de Gênesis 1-11, consulte: Walter Kaiser, Documentos do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 49-76).

[6] Tomás de Aquino, com acuidade, comentou: “Já que a palavra de Deus ultrapassa o entendimento, alguns acreditam que ela esteja em contradição com ele. Isto não pode ocorrer” (Tomás de Aquino, Súmula Contra os Gentios, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 8), 1973, VII, p. 70). Veja-se: A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, p. 7.

[7]Vejam-se: John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), v. 1, (Gn 1.14-15), p. 84-86; John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Calvin’s Commentaries, v. 6/4), 1996 (Reprinted), (Sl 136.7), p. 184-185; João Calvino, As Institutas, I.14.4. Curiosamente Tomás de Aquino (1225-1274) havia usado argumento semelhante ainda que com propósitos diferentes, referindo-se aos leitores de Moisés como “ignorantes”, daí a sua condescendência. Após tratar de Gn 1.6, acrescenta: “Deveríamos antes considerar que Moisés estava a falar para gente ignorante, e que condescendendo à sua fraqueza só lhes apresentou coisas tais que fossem aparentes aos sentidos. Ora, mesmo os menos instruídos podem perceber pelos seus sentidos que a Terra e a água são corpóreas, embora não seja evidente para todos que o ar também é corpóreo (…). Moisés, então, embora mencionasse expressamente a água e o ar, não faz qualquer menção explícita do ar pelo nome, para evitar apresentar a pessoas ignorantes algo que estava para além do seu conhecimento” (Thomas Aquina, “Summa Theologica,” The Master Christian Library,Verson 8.0 [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 2000), v. 1, Primeira Parte, Questão 68, Argumento 3, p. 819. Ver no mesmo volume: Questão 61, p. 724 e Questão 66, p. 791-792; Charles Hodge, Systematic Theology,Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing Co. 1986, v. 1, p. 3. (Ver também: Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 680).

[8] Veja-se: David M. Lloyd-Jones, Do Temor à Fé, Miami, Florida: Vida, 1985, passim

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