Uma oração intercessória pela Igreja (100)

                7.4.3.4. A Riqueza final: Veremos a Deus

Ninguém pode ser herdeiro do reino celestial sem que antes seja conformado ao Filho Unigênito de Deus. – João Calvino.[1]

O nosso presente conhecimento é deveras obscuro e débil em comparação com a gloriosa visão que teremos de Cristo em seu último aparecimento. – João Calvino.[2]

            Um dos nossos principais órgãos dos sentidos, é a visão. A visão é o meio mais importante de contato e interpretação da realidade. Em nossa linguagem coloquial por vezes ela assume até a condição de outro órgão quando, por exemplo, provamos determinado alimento ou sentimos uma flagrância e, um tanto decepcionados ou de forma crítica, dizemos: “não vimos nada de mais naquele perfume ou naquele prato”.

            Juntamente com a visão, a Escritura enfatiza o ouvir. A salvação vem por meio do ouvir a Palavra; os discípulos de Cristo são aqueles que ouvem a sua Palavra (Rm 10.17/Jo 10.27).[3] Deus abre os nossos ouvidos e entendimento para que possamos entender a Escritura, que pode ser pregada ou lida (At 16.14; Tg 1.18; 1Pe 1.23). Por vezes temos uma conexão estreita entre o ouvir e ver. No encontro do Cristo ressurreto com os incrédulos discípulos no caminho de Emaús, lemos:

30E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; 31 então, se lhes abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. 32 E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras? (…) 44 A seguir, Jesus lhes disse: São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco: importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. 45 Então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras. (Lc 24.30-32; 44-45).

            No Sermão do Monte, Jesus Cristo instrui e faz uma promessa aos Seus discípulos: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mt 5.8).

            O desejo de ver a Deus deve ser da mesma intensidade do desejo de sermos puros, ter um coração íntegro, sem ambiguidades de interesses e de palavras. O fundamento de nossa integridade não pode depender simplesmente de nossas intuições, antes, da Palavra de Deus. A nossa sinceridade não pode se autorreferendar como critério avaliativo de verdade, se justificando a si mesma. Como Hendriksen nos lembra, “os de coração limpo” no Salmo 73.1, estão entre aqueles que com sinceridade são guiados pelo Conselho de Deus (Sl 73.24) e que “a fé sem hipocrisia” (1Tm 1.5) adere à “sã doutrina” (1Tm 1.24).[4]

            Os puros verão a Deus. Nesta bem-aventurança Jesus não está se referindo a uma simples pureza física ou ritual, antes à pureza de coração, do centro vital de nossa existência, o homem essencial – conforme comentamos acima – o centro de nossa personalidade, de onde partem nossos conceitos, nossos sentimentos e nossa vontade. Daí o salmista dizer: Guardo (}apfc) (çãphan) no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti” (Sl 119.11. Vejam-se: Sl 37.31;119.2,57,69; Pv 2.10-12).[5]

            O verbo guardar (= “esconder”, “ocultar”, “entesourar”, “armazenar”), tem o sentido de guardar com atenção, levando-a em consideração no seu agir. Portanto, guardar a Palavra no coração significa considerá-la em todo o nosso ser, sendo ela a norteadora do nosso sentir, pensar, falar e agir. O lugar da Palavra deve ser sempre no cerne essencial do homem.

            A Palavra é guardada em nosso coração quando está presente continuamente, não meramente como um preceito exterior, mas, sim, como um poder interno motivador, que se opõe ao nosso pensar e agir egoístas.[6] A santidade inicia-se no coração, imbuída de um espírito agradecido, e tem como motivação final agradar a Deus.[7]

            No Novo Testamento, Paulo recomenda à Igreja de Colossos:“Habite ricamente em vós a palavra de Cristo; instrui-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos e hinos e cânticos espirituais, com gratidão em vossos corações” (Cl 3.16).

            Quanto à perspectiva puramente ritualística criada, adaptada e incrementada pela tradição, Jesus Cristo mostra que a nossa pureza deve ser primeira e primordialmente interior − nosso coração, pensamentos e intenções. As nossas palavras refletem o que de fato somos, pensamos e sentimos. Não estamos com um “eu dividido”,[8] tentando servir a Deus e, ao mesmo tempo mantermos uma atitude “politicamente correta”. O fato é que a pureza de coração só se torna possível a um coração justificado e santificado por Deus.[9]

            O salmista Davi, ora então a Deus: “Ensina-me, Senhor o teu caminho, e andarei na tua verdade; dispõe-me o coração para só temer o teu nome”(Sl 86.11). Aquele que entrega o seu coração a Deus (Pv 4.23; 23.26), entregou na realidade não apenas um “órgão” ou parte do seu ser, mas toda a sua vida. Quem assim procede, é continuamente ensinado por Deus, Aquele que é o seu senhor – senhor do seu coração.

            Deus nos limpa pela Palavra. A pureza da Igreja reside no fato de pertencer a Cristo e, ao mesmo tempo, infere-se que a preservação ética dessa pureza deve estar associada ao apego a esta mesma palavra purificadora: “Vós já estais limpos (kaqaro/j) (= puros) pela palavra que vos tenho falado” (Jo 15.3).

Quando pecamos, nos arrependemos e confessamos os nossos pecados a Deus, podemos ter a certeza de seu perdão amparados na obra remidora de Cristo: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar (kaqari/zw) de toda injustiça” (1Jo 1.9).

            O caminho da visão de Deus é o da santificação. É justamente aqui que se insere a oração de Paulo para que os efésios fossem santificados, crescessem espiritualmente e, tivessem uma dimensão mais clara da “riqueza da glória da sua herança nos santos”.

Maringá, 16 de julho de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]João Calvino, Exposição de Romanos,São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.29), p. 296.

[2] João Calvino, Exposição de Segunda Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.18), p. 79.

[3]“E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.17). “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (Jo 10.27).

[4] William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 5.8), p. 387.

[5]Sobre a importância do conceito de coração na antropologia bíblica, veja-se: Hermisten M.P. da Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.

[6]Cf. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, [s.d.], v. 5, (Sl 119.11), p. 246. Veja-se também, Albert Barnes, Notes on the Old Testament Explanatory and Practical, 10. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1973, (Psalms, v. 3), (Sl 119.11), p. 181b.

[7] Veja-se: J.I. Packer, O que é santidade e por que ela é importante?: In: Bruce H. Wilkinson, ed. ger. Vitória sobre a Tentação, 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 31-32.

[8]Devo esta expressão a Tasker. Veja-se: R.V.G. Tasker, Mateus: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1980, p. 50.

[9]Cf. R.C.H. Lenski, Commentary on the New Testament: The Interpretation of St. Matthew’s Gospel, Peabody, Mass.: Hendrickson Publishers, 1998, (Mt 5.8), p. 192.

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