Uma oração intercessória pela Igreja (1)

Introdução: Sobre pastores, teologias e a Igreja

Deus não os enviou [profetas, mestres] para tagarelarem sobre coisas desconhecidas ou duvidosas, mas os educa em sua escola para que transmitam a outros o que dele aprenderam pessoalmente.– João Calvino (1509-1564).[1]

Quão difícil é a obra de edificação da igreja de Deus e quão impossível é ser bem-sucedido em um dia ou em curto período. A obra é contínua, e a vida inteira de um homem não basta. Naturalmente, Deus poderia conduzir seu povo à perfeição se porventura quisesse fazê-lo, mas ele quer levar-nos por passos medidos — tudo com o fim de humilhar-nos e ajudar-nos a reconhecer nossas misérias e deplorá-las, de modo a caminharmos por este mundo sempre nos volvendo para ele. Pois sabemos que o que ele começou em nós nada é até que, como costumamos dizer, ele ponha um ponto final. E, visto que cada um de nós deve acima de tudo ser um templo do Santo Espírito, apliquemo-nos a esta obra de construção. − João Calvino.[2]

            Mesmo admitindo que o teólogo não seja necessariamente pastor, entendo com entusiasmo que todo pastor é teólogo. A teologia é um exercício integral envolvendo o ser humano por completo – intelecto, emoção e vontade – e, mesmo a teologia tendo uma relevância primária em nossa relação pessoal com Deus, não termina em meu deleite ainda que o envolva. A teologia sempre é pastoral!

            Como teólogos, intentamos compreender a unidade do pensamento de Deus em toda a Escritura procurando fazer jus à sua revelação. Aliás, sem a revelação, o que poderíamos conhecer a respeito de Deus de forma segura?

            Essa síntese teológica deve ser buscada com um intenso e humilde trabalho e espírito de submissão a Deus. A teologia não é um trabalho descompromissado ou um hobby para praticarmos nas “horas vagas”. Antes, é um labor sério[3] e reverente comprometido com o aprendizado, obediência e ensino.

            A teologia como uma sistematização do revelado na Palavra, objetiva tornar mais compreensível a plenitude da revelação.[4] A teologia, portanto, nada tem a dizer além das Escrituras. Ela não a substitui nem a completa, antes, deve ser a sua serva.

            A teologia brota dentro da intimidade da fé daqueles que cultuam a Deus e comprometem-se com a edificação da igreja. [5] A teologia tem a ver, portanto, com o nosso pensar, falar e viver. Desse modo, a teologia sempre será demonstrativa existencialmente.[6]    

A teologia como humilde serva, limitada e finita

            A nossa teologia é sempre limitada e finita. Limitação e finitude não são pecados mas, devem nos dar a consciência de nossa pequenez e de nossa condição de  criatura. Portanto, a teologia nunca é um edifício completo em todas as suas partes.[7] Antes, é uma tentativa humana de aproximação fiel das Escrituras, rogando a indispensável assistência do Espírito (Sl 119.18) e, por isso mesmo, sempre aberta à correção e aperfeiçoamento proveniente do estudo das Escrituras acompanhada pela essencialidade da iluminação do Espírito.[8]

Por isso, quanto mais  exegética, bíblica e teológica for, será mais profunda e relevantemente pastoral. As perguntas ao texto podem assumir configurações diferentes conforme as nossas indagações pessoais, sociais e acadêmicas. Todavia, sempre devem conduzir o povo a conhecer mais a Deus e a se relacionar com Ele em santo temor.

            Se não for assim, para que estudar teologia se isso terminar em mera reflexão sem relação alguma com a nossa ética? Qual a importância da teologia se não nos dispormos a glorificar a Deus no seu conhecimento e praticar a sua vontade, descobrindo a alegria da obediência aprendida?

Ainda que descendentes de Adão e Eva, já não estamos no Jardim do Éden, por isso, além do pecado que nos influencia, devemos nos lembrar que pensamos e vivemos teologia em meio a um mundo aguardando e gemendo por sua restauração.[9]

            “A teologia é serva da igreja”.[10] Este serviço será relevante se, antes, a teologia for serva da Palavra.[11] O teólogo deve ser um servo da Palavra (At 6.4), lutando contra o nosso orgulho natural, que rejeita este modelo, nos colocando como senhor.[12] (1Pe 5.1-4).

A grande virtude de quem serve é ser encontrado fiel (1Co 4.2). O teólogo não pode ter outro propósito do que o de glorificar a Deus por meio da compreensão fiel das Escrituras e no seu ensino ao povo de Deus. Somos responsáveis diante de Deus pelo que ensinamos.[13]

Biblicamente, a autoridade de quem ensina é derivada da fidelidade aos ensinos de Deus, não à sua criatividade independente da fidelidade ao ensino da Palavra (Dt 4.1,5,10,14;[14] 5.1,31; 6.1).

            “A teologia é a reflexão sobre o Deus que os cristãos cultuam e adoram”, sintetiza McGrath.[15] Por isso, o teólogo não é um transeunte em férias com uma agenda flexível, e sem maiores compromissos. Antes, podemos compará-lo a um peregrino em busca do melhor caminho que o conduza de forma mais adequada possível à glorificação do nome de Deus por meio de seu conhecimento, ensino e obediência.

Estamos cientes de que o nosso conhecimento pode ser adequado, porém, limitado. Na glória conheceremos perfeitamente dentro das categorias possíveis de nossa condição de criaturas.[16] Portanto, devemos continuar progredindo no conhecimento de Deus.[17]

A instrução de Pedro permanece com real intensidade para a igreja de Deus em todas as épocas: “Antes, crescei na graça e no conhecimento (gnw=sij)de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 3.18). A graça sempre antecede e possibilita o real conhecimento do Senhor.

            Nesse propósito, como igreja militante,  ela elabora uma “teologia de peregrinos”,[18] como uma direção humilde para os peregrinos que vivem no mundo de Deus buscando compreender e vivenciar de forma autêntica as etapas de sua jornada,[19] caminhando juntos em procissão[20] até que cheguem ao seu destino (Rm 8.29-30)[21] e, o Senhor Jesus volte para nos conduzir em absoluta segurança para o lugar que Ele mesmo foi-nos preparar. (Jo 14.1-6). No céu, na Cidade de Deus então, teremos uma “teologia dos benditos”.[22] Estaremos de volta à nossa terra natal.

São Paulo, 27 de março de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.11),  p. 125-126.

[2]João Calvino, Sermões sobre Tito,  Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 56). (Edição Kindle).

[3] Aquino (1225-1274) deu uma ênfase correta ao falar sobre o labor teológico: “Ninguém pode entregar-se à pesquisa da verdade divina sem muito trabalho e diligência. Este trabalho, muito poucos estão dispostos a assumi-lo por amor à ciência, embora Deus tenha colocado este desejo no mais profundo do coração humano” (Tomás de Aquino, Súmula Contra os Gentios,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 8), 1973, IV, p. 67).

[4] “A teologia representa a tentativa humana de colocar ordem nas ideias das Escrituras, organizando-as e ordenando-as para que a relação mútua entre elas possa ser melhor entendida” (Alister McGrath, Teologia para Amadores, São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 32). “A teologia consiste em associar muitas passagens sobre diversos assuntos e organizá-las em um conjunto inteligível” (Gordon H. Clark, Em defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 20). “A tarefa imperativa do teólogo dogmático é pensar os pensamentos de Deus de acordo com ele e estabelecer sua unidade. Sua tarefa não termina até que ele tenha absorvido mentalmente essa unidade e a tenha demonstrado em uma dogmática. Sendo assim, ele não vai à revelação de Deus com um sistema pronto para, da melhor forma que puder, forçar o conteúdo da revelação a encaixar-se  dentro dele. Pelo contrário, até mesmo em seu sistema, a única responsabilidade do teólogo é pensar os pensamentos de Deus de acordo com ele e reproduzir a unidade que está objetivamente presente nos pensamentos de Deus e foi registrada para o olhar da fé na Escritura. Essa unidade que existe no conhecimento de Deus contido na revelação não está aberta a dúvidas: recusar-se a reconhecê-la seria cair no ceticismo, na negação da unidade de Deus” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 44). Vejam-se algumas observações críticas quanto a esse tipo de definição em John Frame, Teologia Sistemática,  São Paulo: Cultura Cristã, 2019, v. 1, p. 55-59.

[5] Cf. John Frame, Teologia Sistemática,  São Paulo: Cultura Cristã, 2019, v. 1, p. 57-59.

[6] “Se você me disser: ‘Oh, não me preocupo com isso [aplicação da doutrina], sou um teólogo, eu me amarro nas grandes doutrinas’, minha resposta será: ‘Mas, meu caro amigo, a questão é: como é que você está vivendo?’ Péssimo teólogo, se negar toda a doutrina com o seu comportamento. Se você é rude com sua esposa ou com seus filhos com os seus vizinhos de porta de parede, você é um negador do evangelho, todo o seu conhecimento não tem nenhum valor. A pessoa completa está envolvida no novo nascimento, e, portanto, precisamos receber ajuda e instrução em todos e cada um dos pontos” (D. Martyn Lloyd-Jones, Romanos: Exposição sobre Capítulo 12 – O comportamento cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,  2003, p. 19).

[7] “A teologia deve sempre ser submetida à reforma. O entendimento humano é imperfeito. Embora as construções sistemáticas de alguma geração ou grupo de gerações possam ser arquitetônicas, sempre há a necessidade de correção e reconstrução de modo que a estrutura possa vir a uma aproximação mais íntima das Escrituras e a reprodução possa vir a ser uma transcrição ou reflexo mais fiel do exemplar divino” (John Murray, O Pacto da Graça: Um Estudo Bíblico-Teológico,  São Paulo: Editora Os Puritanos, 2001, p. 8). “A melhor teologia nos ajuda a transformar nossa mente. Teologia é um resumo do ensino da Bíblia sobre vários assuntos. Nós aprendemos teologia da própria Bíblia, é claro. E a Bíblia é a única fonte escrita infalível para tal ensino. Devemos usar a Bíblia enquanto peneiramos as ideias boas das más nos escritos humanos” (Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 77).

[8] “Nenhuma tradição teológica é perfeita. Pecados e caminhos errôneos afloram dentro de qualquer tradição histórica”  (Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 82).

[9] Cf. Joel R. Beeke; Paul M. Smalley,  Teologia Sistemática Reformada,  São Paulo: Cultura Cristã, 2020, v. 1, p. 52.

[10]Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 16.

[11] Ver: Alister E. McGrath, Teologia para Amadores, São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 32.

[12]Veja-se: John M. Frame, A Doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 97.

[13] “Não há dúvida de que a ignorância tem causado muita confusão, mas nós afirmamos que um guia que negligencia o exame das estradas antes de empreender um trabalho de condutor de viajantes é indigno de seu título. Um ministro da Palavra é um guia espiritual, nomeado pelo Senhor Jesus para conduzir os peregrinos que viajam para a Jerusalém celestial  através dos Alpes da fé, onde as comunicações comuns da vida terrena cessaram de um ao outro platô da montanha. Dessa forma, ele é indesculpável quando, meramente supondo a localização da cidade celestial, aconselha seus peregrinos a tentarem o caminho que parece ir naquela direção. Em virtude de seu posto, ele deve ter como seu objetivo principal conhecer qual é o caminho mais curto, mais seguro e mais certo e, então, dizer-lhes que esse, e não outro, é o caminho a seguir. Antigamente, quando os vários caminhos ainda não tinham sido examinados, era até certo ponto recomendável tentar todos, mas, agora, visto que o seu caráter enganador é tão bem conhecido, tornou-se imperdoável tentá-los novamente” (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 392).

[14]1Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos (jP’v.mi) (mishpat) que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o SENHOR, Deus de vossos pais, vos dá. (…) 5 Eis que vos tenho ensinado estatutos e juízos (jP’v.mi) (mishpat), como me mandou o SENHOR, meu Deus, para que assim façais no meio da terra que passais a possuir.  (…)  10 Não te esqueças do dia em que estiveste perante o SENHOR, teu Deus, em Horebe, quando o SENHOR me disse: Reúne este povo, e os farei ouvir as minhas palavras, a fim de que aprenda a temer-me todos os dias que na terra viver e as ensinará a seus filhos (…)14 Também o SENHOR me ordenou, ao mesmo tempo, que vos ensinasse estatutos e juízos, para que os cumprísseis na terra a qual passais a possuir” (Dt 4.1,5,10,14).  “Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o SENHOR, teu Deus, se te ensinassem, para que os cumprisses na terra a que passas para a possuir” (Dt 6.1).

[15]Alister E. McGrath, Teologia Histórica: Uma Introdução à História do Pensamento Cristão, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 15. Da mesma forma em: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: Uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 175.“A teologia cristã é a doutrina acerca de Deus, como Ele é conhecido e adorado para a sua glória e para a nossa salvação” (Johannes Wollebius, Compêndio de Teologia Cristã, Eusébio, CE.: Peregrino, 2020, p. 23).

[16]Veja-se: João Calvino, Exposição de Segunda Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.18), p. 79.

[17] “Verdadeiramente sábio é aquele que sabe quão longe se acha do perfeito conhecimento. Mas devemos progredir em nossa cultura, a fim de não ficarmos sempre no conhecimento rudimentar. (…) É mister que nos esforcemos para que nosso progresso corresponda ao tempo que nos é concedido. (…) No entanto, poucos são aqueles que se disciplinam a fazer um balanço do tempo passado, ou que se preocupam com o tempo por vir. Portanto, somos justamente castigados por nossa negligência, visto que a maioria de nós dissipa sua vida nos estágios elementares, como crianças” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.12), p. 140). Veja-se também: João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.16), p. 40.

[18] Wollebius (1586-1629) denomina a teologia elaborada pelos fiéis que militam ainda nessa vida, de “teologia dos peregrinos” (Johannes Wollebius, Compêndio de Teologia Cristã,  Eusébio, CE.: Peregrino, 2020, p. 23).

[19] “A esfera da História e da matéria não é uma prisão da qual  devemos fugir pela contemplação da realidade imutável, mas o teatro da glória de Deus” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 48).

[20]Veja-se: Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 35.

[21] “O objetivo da boa teologia é humilhar-nos diante do Deus trino de majestade e graça. (…) Os antigos teólogos da Reforma e da pós-Reforma estavam tão convictos que suas interpretações estavam muito distantes da majestade de Deus que eles chamavam seus resumos e sistemas de ‘nossa humilde teologia’ e ‘uma teologia para peregrinos no caminho’” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 15). Vejam-se: João Calvino, Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.6), p. 93; John M. Frame, A Doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 97; Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 45. “O pensamento que me governa é que eu sou um peregrino e um estrangeiro indo para Deus, de modo que, necessariamente, eu passo o tempo pensando em minha alma e em meu destino” (D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 2), p. 34).

[22] Cf. Johannes Wollebius, Compêndio de Teologia Cristã,  Eusébio, CE.: Peregrino, 2020, p. 30.

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