Uma fé que investiga e uma ciência que crê (4)


1.1. Altíssimo

Uma expressão usada por vezes para se referir a Deus é Altíssimo. Deus está acima de todas as coisas. Esta é uma forma poética de dizer que Deus é o Senhor soberano sobre todas as coisas. Ele é o Altíssimo eternamente. Ele não se confunde com as outras divindades tribais, locais ou associada aos elementos da terra – tal como, montanhas, fogo, mares etc. – criadas pela imaginação humana.

            Antes, Ele é o Altíssimo sobre todos os poderes e sobre a criação, obras de suas mãos. Ele antecede e se distingue de sua criação.

            Este foi o ponto que assustou os marinheiros diante do profeta Jonas que se identifica como alguém que teme ao Senhor, criador de todas as coisas: “Sou hebreu e temo ao SENHOR, o Deus do céu, que fez o mar e a terra” (Jn 1.9/Jn 1.16).[1]

            Nos salmos lemos: “Eu, porém, renderei graças ao SENHOR, segundo a sua justiça, e cantarei louvores ao nome do SENHOR Altíssimo (!Ayl.[,) (elyon)(Sl 7.17). “Pois o SENHOR Altíssimo (!Ayl.[,) (elyon) é tremendo, é o grande rei de toda a terra” (Sl 47.2).

            Nos Salmos 83 e 92 temos a combinação dos nomes: Senhor e Altíssimo, enfatizando a sua realeza sobre todas as coisas e todos os deuses. (Veja-se: Sl 97.9): “E reconhecerão que só tu, cujo nome é SENHOR, és o Altíssimo (!Ayl.[,) (elyon) sobre toda a terra” (Sl 83.18). “Tu, porém, SENHOR, és o Altíssimo (~Arm’) (marom) (= alto, elevado) eternamente” (Sl 92.8).[2]

            Na relação cultual com Deus, é comum a ideia de que o povo deve subir ao templo. A questão não é apenas topográfica, mas, de natureza essencial: Deus é o Senhor altíssimo, perfeito em toda a sua natureza e relações; nós somos criaturas dependentes de suas misericórdias. Ele habita o alto e o sublime. Davi então ora: “A ti, SENHOR, elevo (af’n”) (nasa’) a minha alma” (Sl 25.1).

            Mesmo sabendo que as armadilhas estão embaixo, o salmista olha continuamente para cima, porque somente o Senhor o pode livrar: “Os meus olhos se elevam continuamente ao SENHOR, pois ele me tirará os pés do laço (tv,r,) (resheth) (rede)[3](Sl 25.15). O salmista tem a certeza de que o cuidado de Deus é mais efetivo do que o seu olhar fixo para as possíveis armadilhas. De fato, a vida cristã vai nos mostrando aos poucos que Deus cuida de nós muito além de nossa percepção ou mesmo da percepção dos perigos. É uma tentação comum racionalizar demais a nossa vida, nos esquecendo de que temos um Deus que cuida de nós em todos os momentos e circunstâncias. O nosso Deus não nos é indiferente e, também, não dorme nem cochila (Sl 121.3-4). O “turno” de Deus é ininterrupto: De dia, de noite  e para sempre (Sl 121.5,6,8) e, cuida integralmente de nós (Sl 121.5-7).

            O Altíssimo é onipotente, ainda que o ímpio não creia, ou até mesmo os servos de Deus em momento de fraqueza diante de circunstâncias adversas, poderem cair em um ateísmo prático, negando o seu poder.

Os arrogantes, em sua visível e decantada prosperidade, motejam de Deus. Os fiéis, por sua vez, ainda que por um momento, se encantam com o sucesso de seu caminho sem Deus. Essa foi a experiência do salmista ao se fascinar com o visível progresso do ímpio em meio à sua arrogância e perceptível impunidade:

3 Pois eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos. (…) 8 Motejam e falam maliciosamente; da opressão falam com altivez.  9 Contra os céus desandam a boca, e a sua língua percorre a terra.  10 Por isso, o seu povo se volta para eles e os tem por fonte de que bebe a largos sorvos.  11E diz: Como sabe Deus? Acaso, há conhecimento no Altíssimo (!Ayl.[,) (elyon)? (Sl 73.3.8-11).

No Salmo 97 temos um convite a louvar o Senhor, que é o Altíssimo sobre toda a criação e sobre todos os deuses criados pelos homens:

1Reina o SENHOR. Regozije-se a terra, alegrem-se as muitas ilhas. 2 Nuvens e escuridão o rodeiam, justiça e juízo são a base do seu trono. 3 Adiante dele vai um fogo que lhe consome os inimigos em redor. 4 Os seus relâmpagos alumiam o mundo; a terra os vê e estremece. 5 Derretem-se como cera os montes, na presença do SENHOR, na presença do Senhor de toda a terra. 6 Os céus anunciam a sua justiça, e todos os povos vêem a sua glória. 7 Sejam confundidos todos os que servem a imagens de escultura, os que se gloriam de ídolos; prostrem-se diante dele todos os deuses. 8 Sião ouve e se alegra, as filhas de Judá se regozijam, por causa da tua justiça, ó SENHOR. 9 Pois tu, SENHOR, és o Altíssimo (!Ayl.[,) (elyon) sobre toda a terra; tu és sobremodo elevado acima de todos os deuses. (Sl 97.1-9).

            Saucy, esclarecendo por que não podemos apresentar uma “definição rigorosa da ideia de Deus”, lança luz sobre o conceito de definição: “Definir, que significa limitar, envolve a inclusão do objeto dentro de certa classe ou proposição universal conhecida e a indicação dos seus aspectos distintivos comparados com outros objetos daquela mesma classe”.[4]

De fato, Deus não pode ser definido nem comparado. As comparações bíblicas são formas humanas concedidas pelo próprio Deus Criador, a fim de que possamos ter um conhecimento adequado de sua natureza.[5] As nossas analogias podem se tornar extremamente perigosas porque não fatíveis de erros, distorções e esvaziamento da plenitude do revelado. Parece-me um bom princípio limitarmo-nos às figuras bíblicas e, dentro do seu propósito estrito. Fora disso, é caminhar por um caminho muito escorregadio e arriscado.

Deus se acomoda à nossa linguagem

            Calvino (1509-1564) corretamente entende que a revelação de Deus é um ato de condescendência.[6] Deus, na sua Palavra, “se acomodava à nossa capacidade”,[7] “balbuciando” a sua Palavra a nós como as amas fazem com as crianças.[8] Deus se vale de analogias, recorrendo a metáforas – comparando-se a um leão, ao urso e ao homem – visando ser entendido por nós. “Deus não pode se revelar a nós de nenhuma outra maneira do que não por meio de comparações com coisas que conhecemos”, insiste Calvino.[9]  Em outro lugar: “Deus, acomoda-se ao nosso modo ordinário de falar por causa de nossa ignorância, às vezes também, se me é permitida a expressão, gagueja”.[10]  

            Por isso, insistimos, torna-se  perigoso estabelecer analogias estranhas à Palavra para falar de Deus. É prudente ater-nos às figuras que o próprio Senhor usou em sua Palavra.

            A Escritura reconhece que Deus não tem comparação nem pode ser sondado. Ele é incomparável e insondável.

            Não há com que ou com quem comparar Deus. Ele está muito além de nossas referências. A sua grandeza é inexaminável e indecifrável. Não temos parâmetros para decifrá-la ainda que de forma aproximada.[11] Assim se expressaram os salmistas:

Grande (lAdG”) (gadol) é o SENHOR e mui digno de ser louvado; a sua grandeza (hL’WdG>) (gedullah) é insondável (rq,xe !yIa;) (ayin cheqer). (Sl 145.3).

Ó SENHOR, Deus dos Exércitos, quem é poderoso como tu és, SENHOR, com a tua fidelidade ao redor de ti?! (Sl 89.8).

Com efeito, eu sei que o SENHOR é grande e que o nosso Deus está acima de todos os deuses. (Sl 135.5).

Todos os meus ossos dirão: SENHOR, quem contigo se assemelha? (Sl 35.10).

“Ora, a tua justiça, ó Deus, se eleva até aos céus. Grandes coisas tens feito, ó Deus; quem é semelhante a ti?” (Sl 71.19).

Tentação de esquadrinhar Deus

            Considerando o que disse Salomão – “A glória de Deus é encobrir as coisas, mas a glória dos reis é esquadrinhá-las (rq;x’) (chaqar) (= sondar, investigar, pesquisar) (Pv 25.2) -, devemos nos precaver de  uma tentação na qual podemos incorrer, especular sobre o ser de Deus e seus atos, perdendo a dimensão de que o nosso conhecimento é de servo, limitado e fraccionado, dependendo essencialmente da revelação (Is 40.28).[12]

Desejo de anunciar os feitos de Deus

            Ao contrário dessa tentação, o salmista oferece-nos um caminho a seguir: anunciar os feitos de Deus ainda que não tenhamos, naturalmente, a compreensão de todos eles:

São muitas, SENHOR, Deus meu, as maravilhas que tens operado e também os teus desígnios para conosco; ninguém há que se possa igualar contigo. Eu quisera anunciá-los e deles falar, mas são mais do que se pode contar. (Sl 40.5).

Tu me tens ensinado, ó Deus, desde a minha mocidade; e até agora tenho anunciado as tuas maravilhas (al’P’) (pala). (Sl 71.17).

 Maringá, 25 de março de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Temeram, pois, estes homens em extremo ao SENHOR; e ofereceram sacrifícios ao SENHOR e fizeram votos” (Jn 1.16).

[2] Vejam-se também: Gn 14.18,19,20,22; Sl 9.2; 18.13; 21.7; 46.4; 50.14; 57.2; 77.11; 78.17,35,56; 91.1,9; 92.1; 107.11.

[3] Sl 10.9; 57.6; 140.5.

[4] R.L. Saucy, Doutrina de Deus: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã,São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 440.

[5] Vejam as pertinentes observações de Frame  (John M. Frame,  A doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 166ss.

[6]Cf. Alister E. McGrath, Historical Theology: An Introduction to the History of Christian Thought, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1998, p. 210. A Confissão de Westminster fala também da “condescendência” de Deus em firmar um Pacto com o homem caído (Ver: Confissão de Westminster, VII.1). Trato mais detalhadamente desse assunto em meu livro: João Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[7]J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 2.7), p. 82. 

[8] “Pois quem, mesmo que de bem parco entendimento, não percebe que Deus assim conosco fala como que a balbuciar, como as amas costumam fazer com as crianças? Por isso, formas de expressão que tais não exprimem, de maneira clara e precisa, tanto quê Deus seja, quanto Lhe acomodam o conhecimento à paucidade da compreensão nossa. Para que assim se dê, necessário Lhe é descer muito abaixo de Sua excelsitude” (J. Calvino, As Institutas, I.13.1). “A descrição que dele se nos outorga tem de acomodar-se-nos à capacidade, para que seja de nós entendida. Esta é, na verdade, a forma de acomodar-se: que tal se nos represente, não qual é em Si, porém, qual é possível de ser de nós apreendido” (J. Calvino, AsInstitutas, I.17.13). Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 13.3), p. 265; (Sl 19.4-6), p. 420-421;  v. 2, (Sl 50.14), p. 409; v. 3, (Sl 78.65), p. 241; (Sl 91.4), p. 447; (Sl 93.2), p. 474; (Sl 106.23), p. 685; João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.1), p. 30;  (Jo 3.12), p. 127; v. 2, (Jo 14.28), p. 111; (Jo 21.25), p. 327; As Institutas,I.14.3,11; I.16.9; IV.17.11

[9] John Calvin, “Commentary on the Book of the Prophet Isaiah,” John Calvin Collection,(CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Is 40.18), p. 64.

[10] John Calvin, Commentary on the Gospel according to John,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Calvin’s Commentaries, v. 18), 1996 (Reprinted), (Jo 21.25), p. 299.

[11] “Quando chegamos a conhecer Deus, ficamos temerosos, esmagados; vemos nele uma grandeza que torna como anões todos os outros objetos de conhecimento, reais ou potenciais” (John M. Frame,  A doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 166).

[12]“Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o SENHOR, o Criador dos fins da terra, nem se cansa, nem se fatiga? Não se pode esquadrinhar (rq;x’) (chaqar) o seu entendimento” (Is 40.28).

2 thoughts on “Uma fé que investiga e uma ciência que crê (4)

  • 29 de março de 2020 em 00:51
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    Apreciei seu artigo PR HERMISTEN.
    Profundo.
    Biblico.
    Parabéns.
    Deus o abençoe

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    • 10 de abril de 2020 em 16:52
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      Meu caro amigo e colega, Rev. Júlio Sellos, obrigado pelo estímulo. Abraço.

      Resposta

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