Uma fé que investiga e uma ciência que crê (35)


4.5. Ciência e Religião no Pensamento Moderno

A moderna ciência empírica ocidental se originou e floresceu no seio do teísmo e não surgiu em nenhum outro lugar do planeta. – Alvin Plantinga.[1]

A tarefa da dogmática é precisamente reproduzir racionalmente o conteúdo da revelação que se refere ao conhecimento de Deus. Naturalmente, nessa reprodução do conteúdo da revelação, existe o perigo, em muitos níveis, de se cometer enganos e cair em erro. Esse fato deve predispor o teólogo dogmático, assim como todo aquele que se dedica à ciência, à modéstia. − Herman Bavinck. [2]

Embora a controvérsia centralizada em Galileu seja quase sempre considerada a luta entre ciência e religião, ou entre libertarismo e autoritarismo, o que estava verdadeiramente em jogo era o sentido a da correta interpretação da Bíblia. − Alister E. McGrath.[3]

          [A ciência] é provisória e limitada. – Karl Barth.[4]

            “Nos países protestantes, os cientistas não eram obrigados a aceitar o juízo de não-cientistas em matéria de ciência”, afirma Hooykaas (1906-1994).[5] De fato, a ciência se não tem pátria, nem idade, também não tem religião, ela não tem que estar atrelada a um sistema religioso – ainda que ao longo da história tenha estado com frequência próxima da religião[6] – antes, está comprometida com a verdade. Contudo, os pressupostos[7] dos cientistas são de grande relevância na elaboração científica. Como vimos, tentar negar a existência de pressupostos em nome de uma suposta “neutralidade” seria uma postura pueril e inútil.[8]

Schaeffer (1912-1984), por exemplo, nos chama a atenção para o fato de que “a ciência moderna em seus primórdios foi o produto daqueles que viveram no consenso e cenário do Cristianismo”.[9] Em outro lugar, acrescenta: “A mentalidade bíblica é que deu origem à ciência”.[10] Alhures, Schaeffer seguindo Alfred Nort Whitehead (1861-1947), diz: “A ciência moderna surgiu porque estava cercada por uma estrutura de referências cristãs”.[11] De fato, independentemente da fé professada pelo cientista, a sua formação, consciente ou não, era cristã; as suas pressuposições teístas – que obviamente orientavam as suas pesquisas – “já vinham no leite materno”.[12] O pressuposto da criação divina foi um incremento fundamental à ciência moderna.[13]

Hooykaas conclui o seu brilhante livro usando uma metáfora: “Podemos dizer (…) que, embora os ingredientes corporais da ciência possam ter sido gregos, suas vitaminas e hormônios foram bíblicos”.[14] Entre os puritanos, por exemplo, o estudo científico, juntamente com o teológico e literário era amplamente estimulado. “Os Puritanos abraçaram o estudo das artes tão completamente como o da ciência”.[15]

McGrath em suas abalizadas pesquisas, afirmou que: “Em anos recentes, surgiu um crescente corpo de obras acadêmicas sustentando que a contribuição decisiva para o aparecimento das ciências naturais não veio do cristianismo em geral, mas do protestantismo, em particular”.[16]

Esses pressupostos não devem significar um atrelamento determinante da pesquisa,[17] visto que um dos basilares da pesquisa científica é a sua “autonomia”, liberdade indispensável para o seu avanço;[18] não significando isso uma ausência de pressupostos e mesmo de desejos, conforme já observamos. Devemos notar também, que quando um sistema religioso se vincula a uma determinada concepção “científica”, filosófica ou ideológica e esta, se torna ultrapassada, o sistema religioso sofre também as consequências.

Alan Richardson (1905-1975) observa que, “São Tomás havia cristianizado a Aristóteles com tanto êxito, que quando a autoridade deste nos campos da Astronomia ou da Física se pôs na tela do juízo, foi como se a fé cristã mesma tivesse sido atacada impiamente”.[19]

De fato, é comum os homens confundirem as suas interpretações com a própria verdade. Quando sou possuído por uma interpretação, já não consigo imaginar uma conclusão “racional” diferente. A nossa perspectiva tende a assumir um tom “final”, ainda que em nosso discurso a nossa perspectiva seja mostrada como uma das possíveis interpretações.

Maringá, 27 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?  São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 237.À frente continua:Foi a Europa cristã que abrigou, alimentou e promoveu a ciência moderna. Foi ali, e apenas ali, que ela surgiu. Todos os grandes nomes do início da ciência moderna (…) criam firmemente em Deus” (Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, p. 238).

[2]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 45.

[3] Alister E. McGrath,Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 25.

[4]Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 7.

[5]R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 145.

[6]Veja-se: Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 13ss; 27.

[7] “Toda ciência vive dos seus pressupostos e tem por objeto o seu próprio conteúdo” (H. Fries, Teologia: In: H. Fries, ed. Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1987, v. 5, p. 302).

[8]Veja-se: Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 19ss; 53,54,58. A “neutralidade” é impossível tal qual a “objetividade” completa, no entanto, deve ser buscada. Gilberto Freyre expressou bem isto, ao dizer: “A perfeição objetiva nas Ciências do homem ou nos Estudos Sociais talvez não exista. Mas o afã de objetividade pode existir. É a marca do historiador intelectualmente honesto. E sua ausência, o sinal do intelectualismo desonesto” (Gilberto Freyre, na Apresentação da obra de Davi Gueiros Vieira, O Protestantismo, A Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 9). Ver: Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.

[9]F.A. Schaeffer, A Morte da razão, p. 29. Um dos grandes cientistas do século XX, W. Heisenberg (1901-1976), atesta a ligação da física moderna com Bacon, Galileu e Kepler: “A física moderna não é mais do que um elo na longa cadeia de acontecimentos que se iniciaram com a obra de Bacon, Galileu e Kepler e das aplicações práticas das ciências da natureza nos séculos XVII e XVIII” (Werner Heisenberg, Reflexões Sobre a Viagem do Artista ao Interior. In: Werner Heisenberg: Páginas de reflexão e auto-reflexão, Lisboa: Gradiva, 1990, p. 52). “O trabalho científico do presente século seguiu essencialmente o método descoberto e desenvolvido por Copérnico, Galileu e seus sucessores nos séculos XVI e XVII” (Werner Heisenberg, A Tradição na Ciência, (Conferência realizada em 24/04/1973). In: Werner Heisenberg: Páginas de reflexão e auto-reflexão, Lisboa: Gradiva, 1990, p. 80-81).

[10]F. A. Schaeffer, A Morte da razão, p. 31. “A ciência moderna não poderia ter surgido sem a Bíblia” (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 23). “A maioria dos historiadores da ciência concorda que foi uma visão bíblica da natureza que apoiou o surgimento da ciência empírica moderna” (Angus J. L. Menuge, Ciência e Religião – Modelos de relação. In: Paul Copan, et al., ed. Dicionário de Cristianismo e Ciência,  Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018 (Edição do Kindle), posição 4519 de 34343). Do mesmo modo, veja-se: John Henry, A religião e a revolução científica: In: Peter Harrison, org., Ciência e Religião,  São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2014, [p. 59-82], p. 60,63.

[11]F. A. Schaeffer, A Igreja no Final do Século XX, 2. ed. (revista), Brasília, DF., Sião, 1988, p. 12. Veja-se: F.A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem: Uma Perspectiva Cristã da Ecologia, 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1976, p. 51.

[12]James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 28.

[13] Veja-se: Eugene M. Klaaren, Religious Origins of Modern Science, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1977.

[14]R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988,p. 196.

[15]Leland Ryken, Santos no Mundo,São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 178. Sobre o envolvimento dos Puritanos com as diversas ciências, Ver: Richard L. Greaves, The Puritan Revolution and Educational Thought: Background for Reform,New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 1969; Christopher Hill, Origens Intelectuais da Revolução Inglesa,São Paulo: Martins Fontes, 1992; Idem., A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII,Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988; Perry Miller; Thomas H. Johnson, eds. The Puritans, Mineola, New York: Dover Publications, (2 Volumes bounds as one), 1991; Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. (Trata mais especificamente da influência de Calvino sobre o estudo das Ciências Naturais).

[16]Alister E. McGrath, A Revolução Protestante, Brasília, DF.: Editora Palavra, 2012, p. 368.

[17] Visto que a pesquisa é “o meio que os cientistas têm para verificar suas hipóteses, testar suas ideias, suas teorias, observar os fatos.” (Maria Martha H. D’Oliveira, Ciência e Pesquisa em Psicologia: Uma Introdução,p. 5).

[18]Comenta Kuyper: “A liberdade da ciência não consiste em licenciosidade ou ilegalidade, mas em ser liberta de todos os laços artificiais, porque não estão enraizados em seu princípio vital.” (Abraham Kuyper,Calvinismo,p. 133).

[19]Alan Richardson, La Biblia En La Edad de la Ciencia, Buenos Aires: Editorial Paidos, (1975), p. 12.

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