Uma fé que investiga e uma ciência que crê (29)

3.2.3. O principium cognoscendi internum: a razão humana

Partindo do princípio de que a Revelação de Deus tem por objetivo mostrar o seu Autor: Deus é o substantivo da sua Revelação – não teria nenhum valor a Revelação objetiva de Deus, se não houvesse concomitantemente uma potencialidade de recepção subjetiva para ela, pois, assim, seria uma revelação que não se descobriria, não se tornaria acessível. Seria o equivalente a um intérprete verter para o inglês as palavras de um orador alemão para um auditório que só entende o português. Perguntaríamos: o intérprete traduziu o que o orador disse? Responderia o interlocutor: Sim. Voltaríamos à questão: Então ele revelou o conteúdo da mensagem?! A resposta seria óbvia: Não. Ele traduziu, mas ninguém o entendeu uma vez que  o seu idioma não é o nosso nem temos condições de aprendê-lo agora…

Deus se revela sabendo que há a possibilidade de ser entendido por que ele mesmo criou o homem e o dotou desta capacidade.[1] Entretanto, a não compreensão do homem não inutiliza o valor da Revelação de Deus. Ela é o que é independentemente da apreensão humana.       

O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral do ser humano; ele está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Jo 8.34,43-44; Rm 3.23; 6.6,23; Ef 2.1; Cl 1.13; 2.13).

A depravação total é justamente isto: a contaminação de todas as nossas faculdades pelo pecado. Ainda que o homem não seja absolutamente mau[2] – não é tão mau quanto poderia – é extensivamente mau, todo o seu ser está contaminado pelo pecado. Como decorrência disso, o homem tornou-se positivamente mau (Gn 6.5; 8.21; Mt 7.11). Ainda assim, o pecado não destruiu a possibilidade da percepção.

O desejo de conhecer é um atributo do ser humano. Creio que seja um resquício magnífico da nossa condição de imagem de Deus, ainda que desfigurada.[3] O homem é um ser moral que pode conhecer, escolher e decidir. Isso é magnífico. O pecado, que nos incapacitou espiritualmente, não impossibilitou o nosso conhecimento. O que parece que perdemos, é a capacidade de unificar o conhecimento, constituindo uma síntese que aponte para Deus como autor de todo conhecimento. Desse modo, podemos ter muitos conhecimentos fragmentados, o que está longe de ser irrelevante, porém, não conseguimos elaborá-los e relacioná-los num grande sistema coerente e consistente que tenha Deus como Senhor.

O conhecimento humano consiste sempre em uma relação lógica entre sujeito e objeto visto que o sujeito só é sujeito para o objeto e, por sua vez, o objeto só o é para um sujeito, assim, a revelação objetiva reclama alguém e, este alguém (objeto) só o é, enquanto recebe de forma adequada a revelação.

Hessen (1889-1971), assim comenta esta relação:

No conhecimento encontram-se frente a frente a consciência e o objeto, o sujeito e o objeto. O conhecimento apresenta-se como uma relação entre os dois elementos, que nela permanecem eternamente separados um do outro. O dualismo sujeito e objeto pertence à essência do conhecimento.

A relação entre os dois elementos é ao mesmo tempo uma correlação. O sujeito só é sujeito para um objeto e o objeto só é objeto para um sujeito. Ambos eles só são o que são enquanto o são para o outro (…). A função do sujeito consiste em apreender o objeto, a do objeto em ser apreendido pelo sujeito.[4]

A razão, como parte da criação divina, é o instrumento de que dispomos, pela graça de Deus, para descobrir a Sabedoria divina no mundo que nos rodeia e, portanto, é o principium cognoscendi internum da ciência. Nisto, não estamos sustentando o empirismo, aceitando a ideia da tabula rasa, considerando a mente como um “papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias”, conforme pensava J. Locke (1632-1704).[5] Entendemos que o conhecimento também se dá pela experiência, contudo, cremos que o espírito humano traz consigo certas categorias que lhe são inerentes, as quais não podem ser apreendidas pela experiência. A experiência pode ser a fonte de quase todo o conhecimento, mas, não é necessariamente do conhecimento todo.[6]

Como “ministro e intérprete da natureza”[7] que somos, devemos pesquisar conforme as suas leis, “pois a natureza não se vence senão quando se lhe obedece”.[8] E nisto está o reconhecimento da grandeza de Deus e do seu poder, conforme reconheceram, Copérnico (1473-1543), Bacon (1561-1626), Kepler (1571-1630), Galileu (1564-1642) e Newton (1642-1727), entre tantos outros.

Na Antiguidade, o filósofo sofista Protágoras (c. 480-410 a.C.), justificou o seu agnosticismo teológico, alegando “impedimentos”, tais como: “a obscuridade do problema e a brevidade da vida do homem”.[9] Francis Bacon (1561-1626), dois mil anos depois, afirma:

O que tem-se constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso das ciências (…) é o desinteresse dos homens e a suposição de sua impossibilidade, considerando “a obscuridade da natureza, a brevidade da vida, as falácias dos sentidos, a fragilidade do juízo, as dificuldades dos experimentos e dificuldades semelhantes.[10]

Locke (1632-1704) escreveu sobre isto, demonstrando agudez e sensibilidade:

Embora a compreensão de nossos entendimentos não corresponda à vasta extensão de coisas, ainda assim teremos suficiente motivo para glorificar a generosidade de nosso Autor, por esta porção e grau de conhecimento outorgados a nós por ele, superiores aos outros habitantes desta nossa morada (…). Não teremos motivos para nos queixar da estreiteza de nossas mentes se as empregarmos tão-somente no que nos é utilizável e para o que são muito capazes; pois não será apenas imperdoável, como impertinente criancice, se menosprezarmos as vantagens de nosso conhecimento e descuidarmos de aperfeiçoá-lo para os fins aos quais nos foi dado, porque certas coisas se encontram fora de seu alcance. Não constitui desculpa para um servo frívolo e rebelde, que não cuida de seus negócios usando luz de vela, alegar que faltava a plena luz solar. A vela que foi colocada em nós brilha o suficiente para todos os nossos propósitos (…). Se descremos de tudo porque não podemos conhecer rigorosamente todas as coisas, deveríamos imitar os que não se utilizam de suas pernas, permanecendo parados e morrendo, porque lhes faltam asas para voar.[11]

Apesar de ter citado com ênfase escritores empiristas, não concordo, conforme já deixei explícito acima, inteiramente com a perspectiva empirista. Bavinck (1854-1921) acentua que o empirismo termina em materialismo: “Primeiro deriva do mundo material o conteúdo do conhecimento, em seguida a capacidade de conhecer e, por fim, o próprio intelecto”.[12]

Concluindo este tópico, reafirmamos que: Deus criou o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1.27), dotando-o de capacidade para receber e interpretar as impressões da sua revelação que são demonstradas por meio do universo, da sua Criação (Sl 19.1; At 14.17). Toda a Criação de Deus foi realizada de forma sábia e soberana (Sl 115.3; Pv 3.19: Ef 1.11).

Maringá, 20 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?  São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 240.

[2] A.A. Hodge (1823-1886) usa a expressão “inabilidade absoluta”; todavia, a conotação dada por ele, não colide com a nossa, ao afirmarmos que a depravação não é absoluta. (Veja-se: A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 314).

[3] Veja-se: Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?  São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 240.

[4] J. Hessen, Teoria do Conhecimento,7. ed. Coimbra: Arménio Amado – Editor, 1976, p. 26.

[5] John Locke, Ensaio Acerca do Entendimento Humano,São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 18), II.1.2. p. 165.

[6] Veja-se: Francis Bacon, Novum Organum,São Paulo: Abril Cultural, 1973, (Os Pensadores, v. 13), I, xcv. p. 69; I. Kant, Crítica da Razão Pura,SãoPaulo: Abril Cultural, 1974, (Os Pensadores, v. 25), p. 23.

[7] Francis Bacon, Novum Organum,I, i. p. 19.

[8] Francis Bacon, Novum Organum,I.iii. p. 19.

[9]A frase completa é: “Quanto aos deuses, não posso saber se existem nem se não existem nem qual possa ser a sua forma; pois muitos são os impedimentos para sabê-lo: a obscuridade do problema e a brevidade da vida do homem” (Fragmento 4, In: Diógenes Laércio, Vida dos Filósofos, IX, 51. ApudRodolfo Mondolfo, O Pensamento Antigo,3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1971, V. 1, p. 144).

[10]Francis Bacon, Novum Organum,I, xcii. p. 66-67.

[11] John Locke, Ensaio Acerca do Entendimento Humano,(Introdução), p. 146-147.

[12]Herman Bavinck, Reformed Dogmatics: Volume 1: Prolegomena, Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2003, p. 220.Vejam-se: Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984, p. 164; L. Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistemática, p. 98. Herman Bavinck, The Doctrine of God, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1955 (obra traduzida, editada e resumida por William Hendriksen). Na página 41 e seguintes, Bavinck discute a possibilidade do “conhecimento inato de Deus”, apresentando em sua análise, o pensamento de filósofos e teólogos que, no decorrer da história se pronunciaram a respeito. O autor assinala que toda teologia é revelada (p. 41, 61). “Somente a capacidade de conhecer é inata; porém esta capacidade concretiza-se na pessoa através da influência que a natureza em nós e sobre nós e ao mesmo tempo ao nosso redor exerce sobre nós” (p. 59-60). Apesar de Bavinck usar um fraseado semelhante ao de Locke, que escreveu: “A capacidade é inata, mas o conhecimento adquirido” (J. Locke, Ensaio Acerca do Entendimento Humano, I.i.5. p. 152), discorda dele no que se refere ao conhecimento de Deus (p. 58). “A revelação de Deus – escreve Bavinck – precede ao ‘conhecimento inato de Deus’ e também ao ‘conhecimento adquirido de Deus’. Deus não se deixou sem testemunho” (p. 60). At 14.17. Não existe conhecimento sem consciência (p. 59).

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