Teologia da Evangelização (23)

2.4.3.1.4. Liberdade de Limitação: Poder Autolimitante

Algumas pessoas ficam desconfiadamente impressionadas pelo fato de falarmos de Deus, que é Todo-Poderoso, como sendo isto ou aquilo, fazendo e não fazendo, podendo e não podendo. O raciocínio de tais pessoas, que a priori pode parecer lógico, é o seguinte:

            Se Deus é soberano, livre e Todo-Poderoso, Ele pode muito bem, conforme a sua vontade, mudar “as regras do jogo”,[1] modificando as leis, seus princípios de ação, seus critérios; enfim, alterar aquilo que Ele mesmo revelou e fez registrar na sua Palavra. Pois bem; se este poder pertencesse a um homem, deveríamos temer. A História tem demonstrado que o pensamento do Lorde Acton (1834-1902) é verdadeiro em muitos casos, visto que, amiúde, o poder que originalmente faz parte da nossa imagem e semelhança divinas, mal utilizado, tende a corromper porque na realidade, estamos corrompidos.[2]

            Afinal, Deus poderia fazer tudo isto ou não?! Deus estaria sujeito à corrupção resultante do mau uso do poder? Retardemos um pouco mais a resposta.

            Geralmente quem raciocina da forma apresentada acima tem em mente a ação do homem como modelo – cometendo o mesmo equívoco de muitos gregos na Antiguidade –, tomando o homem como parâmetro para uma comparação, como se o “homem fosse a medida de todas as coisas”.[3]

            Este tipo de raciocínio encontra alento em Hobbes (1588-1679), que entendia que,

O soberano de uma República, seja ele uma assembleia ou um homem, não está absolutamente sujeito às leis civis. Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis, pode, quando lhe apraz, livrar-se desta sujeição revogando as leis que o incomodam e fazendo novas.[4]

            De fato, apesar desta atitude não ser apreciável em si, ela ocorre com frequência na esfera humana.

            Respondo agora: De fato, os homens, são tão fracos em suas condições de poderosos que não conseguem controlar os seus ímpetos, por isso, agem por paixões das mais variadas, tais como: preconceito, vaidade, ódio, interesses, etc. Deus, no entanto, é tão perfeito em seu poder que as suas eternas perfeições se constituem em “limites” para si mesmo! 

            Por isso, quando afirmamos que Deus não mente, não se contradiz, não muda, não peca e não pode salvar fora de Jesus Cristo, não pretendemos estabelecer limites para Deus, mas sim, reconhecer os próprios limites ou critérios que Ele declarou a respeito de si mesmo em sua relação consigo e com o universo.

            Esses critérios são decorrentes das suas perfeições, pois, se Deus é perfeitamente poderoso, é também perfeitamente verdadeiro, justo, fiel, sábio, amoroso, bondoso, santo. Deus é tão poderoso que trata conosco conforme as perfeições do seu ser e nos deu a conhecer tais perfeições a fim de que pudéssemos nele confiar e as Suas virtudes proclamar (Ml 3.6; 1Pe 2.9,10).[5]

            O poder de Deus está sob o controle de Sua sábia e santa vontade. “Deus pode fazer tudo o que Ele deseja, porém Ele não deseja fazer tudo o que pode”, sumaria Strong.[6] (Ex 3.14; Nm 23.19; 1Sm 15.29; At 4.12; 2Tm 2.13; Hb 6.18; Tg 1.13,17).[7] Pink comenta: “Deus é lei para Si próprio, de modo que tudo quanto Ele faz é justo”.[8]

            O poder absoluto de Deus não é incoerente com a sua essência. A vontade de Deus é santa. Não há propósitos e atitudes contraditórios em Deus. O soberano poder de Deus somente é limitado pelo absurdo ou pelo autocontraditório e por ações imorais.[9] “Deus é o padrão para a moralidade humana, assim Ele não pode ser menos que perfeito em sua santidade, bondade, e retidão”, conclui Frame.[10]

            Portanto, Ele não pode realizar coisas auto-excludentes em si mesmas: não pode deixar de ser Deus, não pode ser diferente de si mesmo, fazer um círculo quadrado. Lewis (1898-1963) argumenta de forma ácida, porém, correta: “Não é possível nem a Deus  nem à mais fraca de suas criaturas executar duas alternativas que se excluem mutuamente; não porque o seu poder encontre um obstáculo, mas porque a tolice continua sendo tolice mesmo quando é falada sobre Deus”.[11]

            O poder de Deus é executado em completa harmonia com a sua perfeita e gloriosa dignidade, enfim, com o seu caráter sábio e santo. A perfeição da natureza de Deus permeia todas as suas obras. “Deus age consistentemente consigo mesmo, e jamais poderá desviar-se do que Ele disser”, interpreta Calvino[12]

            Deste modo, as suas promessas sempre serão cumpridas visto que Ele é poderoso para cumprir tudo o que promete. Por Deus ser fiel, justo e poderoso, o que Ele promete, cumprirá.[13] “Seja o que for que Deus tenha que fazer, inquestionavelmente o fará, se Ele o tiver prometido”, exulta Calvino.[14]

            Este fato nos enche de alegre confiança em Deus. Bavinck (1854-1921) resume bem este ponto, dizendo:

          A vontade de Deus é idêntica à sua existência, sua sabedoria, sua bondade e todos os seus atributos. E é por essa razão que o coração e a mente do homem podem descansar nessa vontade, porque é a vontade, não da sina cega, nem da energia obscura da natureza, mas de um Deus onipotente e de um Pai misericordioso. Sua soberania é uma soberania de ilimitado poder, porém é também uma soberania de sabedoria e graça. Ele é Rei e Pai ao mesmo tempo.[15]

Maringá, 30 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Atitude muito comum nas crianças, que quando estão perdendo o jogo, formam uma nova regra para se beneficiar, dizendo que o que antes não podia “agora pode”. Diga-se de passagem, que esta atitude infelizmente não caracteriza somente as crianças; muitas vezes nós adultos quando estamos investidos de alguma autoridade, somos com frequência – com uma imaturidade maldosa – “levados” a mudar as normas e as leis, obedecendo a casuísmos que, “coincidentemente”, nos beneficiam.

[2]A frase completa é a seguinte: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe de modo absoluto. Os grandes homens são quase sempre homens maus” (Lord Acton, Ensaios e Estudos Históricos).

[3]O sofista grego Protágoras (c. 480-410 a.C.) afirmara: “O homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem” (ApudPlatão, Teeteto, 152a e Aristóteles, Metafísica, XI, 6. 1062). O Humanismo Renascentista tomou este dito como lema na sua “virada antropológica” (Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 65-69).

[4]T. Hobbes, Apud G. Lebrun, O Que é Poder?,3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 28. Veja-se também, T. Hobbes, O Leviatã, II.xviii, p. 111ss.

[5]9 Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;  10 vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia” (1Pe 2.9-10).

[6]A.H. Strong, Systematic Theology, 35. ed. Valley Forge, Pa.: Judson Press, 1993, p. 287. Do mesmo modo: R.C. Sproul, O que é teologia reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2009,  p. 21.

[7]“Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros” (Ex 3.14). “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (Nm 23.19). “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa” (1Sm 15.29). “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). “Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13). “Para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta” (Hb 6.18). “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta” (Tg 1.13). “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17).

[8]A.W. Pink, Os Atributos de Deus,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 34. Em outro livro, o mesmo autor escreve:”Afirmamos que Deus não está sujeito a nenhuma regra ou lei fora da sua própria vontade e natureza e que Deus é a sua própria lei, não tendo qualquer obrigação de prestar contas dos seus propósitos a quem quer que seja” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Fiel, 1977, p. 21).

[9]Vejam-se: William G.T. Shedd, Dogmatic Theology, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, (s.d.), (Reprinted), v. 1, p. 359-360; L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 83; J.I. Packer, Teologia Concisa,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 34; Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2003, v. 1, p. 428; Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ.; São Paulo: Editora Vozes; Federação Agostiniana Brasileira, 1990, v. 1, V.10. p. 204-205; John M. Frame, The Doctrine of God, Phillipsburg, NJ.: P & R Publishing, 2002, p. 518-521; Wayne Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 160; Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 231; Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 386-389; Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 332-336; C.S. Lewis, O Problema do Sofrimento, 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 19-26; Herman Bavinck, Dogmática Reformada:  Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 252-256; Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2001, p. 307ss.; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 326ss.

[10]John M. Frame, The Doctrine of God, p. 519.

[11] C.S. Lewis, O Problema do Sofrimento, 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 21.

[12]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 62.11), p. 581.

[13] Ver: J.I. Packer, Teologia Concisa, p. 34.

[14]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 3.20-21), p. 106.

[15]Herman Bavinck, The Doctrine of God, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: W. M. Eerdmans Publishing Co., 1955, p. 235. Veja-se também: Herman Bavinck, Dogmática Reformada:  Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 254.

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