Teologia da Evangelização (186)

         m) Não deturpá-lo, apresentando todo o desígnio de Deus  (Continuação)

Lutero (1483-1546) trata dessa questão de modo sensibilizante. Descrevendo a sua luta e a fragilidade aparente da igreja, escreveu:

Nós, pela graça de Deus, esforçamo-nos para conseguir, aqui, em Wittenberg, um tipo ideal de Igreja cristã. A Palavra é ensinada entre nós com pureza, os sacramentos estão sendo usados de forma correta, fazem-se exortações e orações para todas as situações, em suma, todas as coisas ocorrem favoravelmente. Mas algum fanático poderia impedir rapidamente este curso feliz do Evangelho. Num momento, ele poderia destruir aquilo que nós edificamos com grande labor durante muitos anos. (…) A fraqueza e a miséria dessa vida é tão grande, caminhamos a tal ponto em meio aos ardis de satanás que, em pouco tempo, algum fanático, muitas vezes, destrói e arruína, completamente, aquilo que os verdadeiros ministros edificaram, trabalhando, dia e noite, durante vários anos. Por experiência própria, aprendemos isso, hoje, com grande dor na alma, todavia, não podemos curar esse mal.

Visto que a Igreja é tão frágil e delicada e é tão facilmente subvertida, devemos estar vigilantes contra aqueles espíritos fanáticos que, quando ouviram alguns sermões ou leram algumas páginas nas Sagradas Letras, sem demora, julgam-se mestres de todos os alunos e professores, contra toda a autoridade.[1]

A igreja de Deus nessa dimensão terrena, ainda luta contra os inimigos de fora e, a sua própria fragilidade interna resultante de seu pecado residual muitas vezes fortalecido pela nossa imaturidade e consequente carnalidade (1Co 1 e 3).

Em agosto de 1555, Calvino pregando em Tt 1.5-6, destaca o trabalho árduo de quem ensina, envolvendo tempo, dedicação, perseverança, humildade, santidade, autoexame, e confiança em Deus:

Começamos esta manhã pontuando quão difícil é a obra de edificação da igreja de Deus e quão impossível é ser bem-sucedido em um dia ou em curto período. A obra é contínua, e a vida inteira de um homem não basta. Naturalmente, Deus poderia conduzir seu povo à perfeição se porventura quisesse fazê-lo, mas ele quer levar-nos por passos medidos — tudo com o fim de humilhar-nos e ajudar-nos a reconhecer nossas misérias e deplorá-las, de modo a caminharmos por este mundo sempre nos volvendo para ele. Pois sabemos que o que ele começou em nós nada é até que, como costumamos dizer, ele ponha um ponto final. E, visto que cada um de nós deve acima de tudo ser um templo do Santo Espírito, apliquemo-nos a esta obra de construção. Aqueles a quem Deus chamou a pregar sua Palavra designou pedreiros na construção de seu templo. Da mesma forma, ele deseja que nos ocupemos nisso, cada um em sua própria esfera. Entretanto, notemos que é a toda a igreja que edificamos em comum, e cada um de nós deve trabalhar nela, pois nos cabe fazer as coisas progredirem o máximo que pudermos. No entanto, os que vivem satisfeitos com o atual estado de atividades estão muito enganados. É um sinal de que ainda não entenderam o alvo ao qual Deus os chama nem se examinam, pois estão muito longe da meta a que deveriam almejar. Assim, esforcemo-nos o máximo que pudermos para alcançá-lo e reflitamos cuidadosamente sobre qual é nossa deficiência. Ainda que Deus permita graciosamente que sua Palavra nos seja ensinada com pureza e mesmo quando entre nós prevaleça alguma ordem tolerável, lembremo-nos de que tudo ainda não é perfeito e que a obra nunca é feita com inteireza. Isto não deve deprimir nossos espíritos, mas, ao contrário, deve estimular e inspirar-nos a observar a injunção de Paulo e a seguir seu conselho.[2]

                        À frente continua:

Que cada um de nós olhe para si mesmo e considere cuidadosamente o que ainda lhe falta. Descobriremos que ainda estamos sujeitos a muitas falhas, de modo que fracassamos completamente no cumprimento de nosso dever. Somos também tão indolentes que não fazemos a centésima parte do que deveríamos. Deveríamos voltar nossos pensamentos para a vida celestial e, enquanto passamos por este mundo, subjugar todos os nossos maus desejos para que eles não mais nos façam recuar.[3]

            Por meio da Palavra Deus opera o nosso crescimento. Cabe a nós anunciá-la em sua amplitude, com fidelidade e integridade.

                             n) Não criar obstáculo

         Por moto próprio, Paulo trabalhou com as suas próprias mãos, nada recebendo da igreja de Corinto. Isso não significa que ele achasse injusto receber seu salário; pelo contrário, ele repete as palavras da Lei conforme a interpretação de Cristo: “Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho, que vivam do evangelho” (1Co 9.14)(Vd. Mt 10.10; Lc 10.7; 1Tm 5.18). Certamente, como bom pastor, conhecia bem os membros de sua igreja.

            O que explicitou, é que não queria causar “obstáculos”. “Não usamos desse direito, antes suportamos tudo, para não criarmos qualquer obstáculo (e)gkoph/) ao evangelho de Cristo” (1Co 9.12).

            O substantivo traduzido por obstáculo só aparece neste texto em todo o Novo Testamento.[4] No seu emprego militar esta palavra tinha o sentido de cortar uma árvore para causar um impedimento ou, abrir uma vala que obstaculizasse temporariamente o caminho do inimigo, daí a palavra tomar o sentido de “impedimento”, “empecilho”, “obstáculo”, “cansar”, “sobrecarregar”,   

            O certo é que Paulo não queria de nenhuma forma ser um impedimento, ainda que temporário, no avanço do evangelho. Ele preferia renunciar a seus direitos em prol da mensagem cristã.  

            Este é um princípio precioso: renunciemos a nossos direitos, ainda que justos, em prol do evangelho. Entreguemos os nossos direitos a Deus. Se lutar por eles cria obstáculos para o evangelho; deixemos que Deus cuide disso. Estamos a serviço de seu Reino. Deus tem o seu critério próprio de educar a igreja, suprir as nossas necessidades e fortalecer a nossa fé.

         5.3. A nossa proclamação fundamenta-se na Palavra, por meio da qual, tivemos nossa experiência salvadora

                  No Evangelho, vemos que o homem geraseno que fora curado por Jesus Cristo manifestou, de modo compreensível, intenso desejo de seguir com o Senhor.

            Marcos relata:

Ao entrar Jesus no barco, suplicava-lhe o que fora endemoninhado que o deixasse estar com ele. Jesus, porém, não lho permitiu, mas ordenou-lhe: Vai para tua casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez e como teve compaixão de ti. Então, ele foi e começou a proclamar em Decápolis tudo o que Jesus lhe fizera; e todos se admiravam. (Mc 5.18-20). (Ver: Mt 28.19-20).

            O evangelho não começa por minha experiência, contudo, engloba o que Deus realizou em nós. “Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor” (2Co 4.5).

            Pedro escreve às igrejas da Dispersão, mostrando que Deus em sua misericórdia lhes concedeu grandiosos privilégios, os transformando em povo e propriedade exclusiva sua, a fim de que anunciassem as suas virtudes, os seus atos poderosos (1Pe 2.9-10).

         5.4. As oportunidades são imprevisíveis

                         Conforme estudamos, após o eloquente e desafiante sermão de Estevão e, a sua consequente morte por apedrejamento (At 7.1-60), o grupo inquisidor estimulado por essa atitude assassina, promoveu “grande perseguição contra a igreja de Jerusalém”(At 8.1), com a permissão do sumo sacerdote (At 8.3; 9.1,2).

            Surpreendentemente foi por meio dessa perseguição, que parecia fatal à incipiente igreja, que ela pôde cumprir qualitativamente a totalidade da ordem divina de testemunhar “tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra”(At 1.8).

            O diácono Filipe pregou em Samaria e muitos se converteram (At 8.5-8). Posteriormente, evangelizou um judeu etíope, que se converteu e foi batizado (At 8.38). Filipe continuou o seu profícuo ministério: “Filipe veio a achar-se em Azôto; e, passando além, evangelizava todas as cidades até chegar a Cesaréia”(At 8.40).

            Aqueles irmãos que foram dispersos de Jerusalém continuaram pregando o evangelho em diversas regiões (At 11.19-21). A contínua difusão do evangelho é demonstrada por intermédio das Epístolas de Tiago e Pedro, sendo a de Tiago destinada “Às doze tribos que se encontram na Dispersão” (Tg 1.1) e a de Pedro, “Aos eleitos, que são forasteiros da Dispersão, no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia, e Bitínia”(1Pe 1.1. Leia também, At 17.6).

            O que parecia um golpe destruidor à igreja cristã, foi, na realidade, um estímulo a cumprir a sua missão. Deus como senhor da história utiliza-se de recursos muitas vezes surpreendente para nós. Devemos, portanto, aproveitar as oportunidades com as quais nos deparamos. Cada obstáculo pode se constituir num meio de testemunho.

            É fundamental que não percamos a dimensão dessa realidade. Cada circunstância oferece uma oportunidade de reflexão, ação e redimensionamento daquilo que Deus nos confiou e requer de nós. Cada época tem os seus desafios, dificuldades e oportunidades.[5] É necessário que roguemos a Deus que nos dê uma compreensão correta e uma ação eficaz dentro das oportunidades que Ele mesmo nos faculta e do poder do Espírito que nos capacita.

Maringá, 05 de março de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Martinho Lutero, Comentário à Epístola aos Gálatas: In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.; Canoas, RS.: Sinodal; Concórdia; Ulbra, 2008, v. 10, (Gl 1.4), p. 65. (Veja também: Ibidem., (Gl 1.2), p. 45).

[2] João Calvino, Sermões sobre Tito,  Brasília, DF.: Monergismo,  2019, (Tt 1.5-6), p. 56. (Edição do Kindle).

[3] João Calvino, Sermões sobre Tito,  Brasília, DF.: Monergismo,  2019, (Tt 1.5-6), p. 58. (Edição do Kindle). Veja-se também: João Calvino, Sermões sobre Tito,  Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 56. (Edição Kindle).

[4] O verbo e)gko/ptw é usado 5 vezes (At 24.4; Rm 15.22; Gl 5.7; 1Ts 2.18; 1Pe 3.7). Vejam-se: G. Stählin, Kopeto/j, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1981 (Reprinted), v. 3, p. 855-860; C.H. Peisker, Impedir: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 417-418; William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, Chicago, University Press, 1957, p. 215; F.F. Bruce, Hechos de los Apóstoles: Introducción, comentarios y notas, Michigan: Libros Desafío, 2007, (At 24.4), p. 513-514).

[5] Veja-se: William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 21-27.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *