Teologia da Evangelização (15)

2.4.2.3.1. Desconsideração do que éramos e do que nos tornamos (Continuação)

Ao homem foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar, estabelecer conexão e visualizar o invisível, concretizar os seus propósitos ou modificá-los conforme a sua “visão” primeira, etc.

            Como escreve Bavinck:  “O pensamento e o conhecimento do homem, apesar de serem extraídos de seu cérebro, são todavia em sua essência uma atividade inteiramente espiritual, pois transcendem aquilo que ele pode ver e tocar”.[1]

            Coube ao homem por determinação de Deus, o domínio sobre toda a criação inferior.  O homem foi coroado como rei da criação divina; foi-lhe dado domínio sobre todas as criaturas inferiores. Como tal foi seu dever e privilégio fazer com que toda a natureza e todas as coisas criadas colocadas sob seu governo servissem à sua vontade e propósito, para que ele e todo o seu glorioso domínio, glorificassem o Todo-Poderoso Criador e Senhor do universo.

            O homem não foi criado como um ser neutro entre o bem e o mal; ele foi formado bom, santo, como Deus o é de forma absoluta. Daí que, segundo a própria avaliação do seu Autor, tudo “era muito bom” (Gn 1.31). Ele foi formado em “retidão” e “verdadeira santidade” (Ec 7.29; Ef 4.24; Cl 3.10).[2]

            A santidade e retidão originais do homem não significam simplesmente inocência, mas, sim, o desejo inerente de ter maior comunhão com Deus e agradar-Lhe; havia uma perfeita harmonia entre o seu ser e a Lei Divina. A justiça e santidade eram derivadas de Deus, dependiam fundamentalmente desta sua comunhão com o Criador.

Portanto, ao mesmo tempo que não era impossível ao homem pecar, também não havia nele nada que o constrangesse a fazê-lo.[3] O homem conhecia e tinha prazer na vontade divina. A santidade dependia fundamentalmente desta sua comunhão com o Criador. O homem é a “expressão mais nobre e sumamente admirável de Sua justiça, e sabedoria e bondade”, conclui Calvino.[4]

            Antes de pecar, Adão tinha uma compreensão genuína a respeito de Deus. No entanto, “após a sua rebelião, ficou privado da verdadeira luz divina, na ausência da qual nada há senão tremenda escuridão”, escreve Calvino.[5]

            O seu conhecimento tornou-se totalmente nulo quanto às realidades espirituais e à salvação.[6] A queda trouxe sérias consequências: a morte e a escravidão. “Como a morte espiritual não é outra coisa senão o estado de alienação em que a alma subsiste em relação a Deus, já nascemos todos mortos, bem como vivemos mortos até que nos tornamos participantes da vida de Cristo”, conclui Calvino.[7] O homem perdeu totalmente seu discernimento espiritual: ele está morto!

            Portanto, o grande problema do homem é a sua permanente rebelião contra Deus.[8] Pecado consiste basicamente numa atitude errada para com Deus. “Pecado não é tanto uma expressão do que fazemos quanto uma expressão do nosso relacionamento com Deus”, interpreta Lloyd-Jones.[9]

A Palavra de Deus ao povo de Israel permanece como verdade para todos aqueles que ainda se encontram distantes dele: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim” (Is 1.2).

            Todos, sem exceção, estão nesta situação, até que pela fé conheçam salvadoramente a Cristo. O homem desde a queda encontra-se sob o domínio do pecado e, por isso mesmo é incapaz de responder positivamente ao chamado externo do Evangelho.

            O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral de toda a raça humana. Por isso, o homem está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Is 59.2; Jo 8.34,43,44 Rm 3.9-12,23; Ef 2.1,5; Cl 1.13; 2.13)[10] e, nada pode fazer – e na realidade nem sequer deseja – para retornar à comunhão perdida. Como disse o Senhor Jesus Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado”. (Jo 8.34) (Vejam-se: Is 64.6; Rm 6.6).

            Agora “O homem peca com o consentimento de uma vontade pronta e disposta”, resume Calvino.[11] A depravação total é justamente isto: a contaminação de todas as nossas faculdades pelo pecado. Perdemos totalmente a nossa capacidade de percepção espiritual. As cousas de Deus soam como loucura (1Co 1.18-21; 2.6-8; 12-16).

            O homem pelo seu próprio conhecimento não pode conhecer a Deus. É por isso que a loucura de Deus, que tanto humilha o homem em sua tentativa de autossuficiência, é o caminho estabelecido por Deus para conhecê-lo salvadoramente (1Co 1.21). 

            A nossa lógica tão hábil para desvendar os mistérios do saber e desmantelar sofismas, se mostra totalmente inadequada e incapaz para perceber a realidade da Palavra que nos fala de Deus e do que somos.

            “O intelecto do homem está de fato cegado, envolto em infinitos erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a vontade, má e cheia de afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a força física, incapaz de boas obras, tende furiosamente à iniquidade”, interpreta Calvino.[12]

            Ainda que o homem não seja absolutamente mau[13] – não é tão mau quando poderia -, é extensivamente mau – todo o seu ser está contaminado pelo pecado.[14]

            O pecado nos domina completamente. Na linguagem inspirada de Isaías, “toda a cabeça está doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6).

            O pecado só poderá ser compreendido em sua abrangência quando tivermos uma visão correta se seu total domínio sobre o nosso coração, envolvendo o nosso pensar, sentir e agir.[15]

            Calvino interpretando Rm 8.7, diz:

Nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto; e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira divina.

Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão.[16]

Maringá, 16 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 18.

[2]“Eis o que tão-somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29). “E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.24). “E vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl 3.10). Calvino explica as expressões: “Portanto, por essa palavra, a perfeição de nossa natureza completa é designada, como ela apareceu quando Adão foi dotado de um correto julgamento, tinha afeições em harmonia com a razão, tinha todos os sentidos sãos e bem regulados, e verdadeiramente excedido em tudo o que é bom” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, v. 1, (Gn 1.26), p. 94-95).

[3] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 590.

[4] João Calvino, As Institutas,I.15.1.

[5] João Calvino, Efésios,(Ef 4.18), p. 137.

[6] “Depois da Queda do primeiro homem, nenhum conhecimento de Deus valeu para a salvação sem o Mediador” (João Calvino, As Institutas, II.6.1).

[7]João Calvino, Efésios,(Ef 2.1), p. 51. “O gênero humano, depois que foi arruinado pela queda de Adão, ficou não só privado de um estado tão distinto e honrado, e despojado de seu primevo domínio, mas está também mantido cativo sob uma degradante e ignomínia escravidão” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 8.6), p. 171). “O primeiro homem foi criado por Deus em retidão; em sua queda, porém, arrastou-nos a uma corrupção tão profunda, que toda e qualquer luz que lhe foi originalmente concedida ficou totalmente obscurecida” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 62.9), p. 579). “Todos nós estamos perdidos em Adão” (João Calvino, Efésios,(Ef 1.4), p. 24). “Não teremos uma  ideia adequada do domínio do pecado, a menos que nos convençamos dele como algo que se estende a cada parte da alma, e reconheçamos que tanto a mente quanto o coração humanos se têm tornado completamente corrompidos” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.5), p. 431).

[8]“O pecado é antes um poder militante diametralmente oposto à vontade divina e seus propósitos” (Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE., 1965, p. 143).

[9]D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 25-26.

[10] “Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). “…. o SENHOR (…) disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade….” (Gn 8.21). “…. as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (…) Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.34,43,44). “Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). “…. todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). 5 Nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, (…) 13 em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; 14 o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória(Ef 1.5,13-14). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; (…) e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —pela graça sois salvos” (Ef 2.1,5). “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor (…). E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos” (Cl 1.13; 2.13).

[11]João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 5, p. 16.

[12]João Calvino, Instrução na Fé, Cap. 4, p. 15. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 338.

[13] A.A. Hodge (1823-1886) usa a expressão “inabilidade absoluta”; todavia, a conotação dada por ele, não colide com a nossa, ao afirmarmos que a depravação não é absoluta. (Veja-se: A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata Sanches, 1895, Cap. XX, p. 314).

[14] “Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza” (J. Calvino, As Institutas, II.1.10).

[15] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A depravação (…) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração, mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John MacArthur, Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81).

[16] João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 8.7), p. 266-267.

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