Teologia da Evangelização (144)

4.3.4.2. Voluntária (Continuação)

A consciência de Jesus Cristo a respeito da cruz

          Jesus Cristo não veio enganado. Ele tinha perfeita consciência do que teria de passar (Is 53). Jesus sabia que a sua vida de obediência espontânea ao Pai tinha como rota obrigatória a cruz.

          A cruz faz parte essencial de sua vitória. Sem a cruz, a encarnação e a ressurreição ficam fora de contexto. Aliás, todo o seu ministério, envolvendo o seu nascimento, ressurreição, ascensão e retorno glorioso, encontra o seu sentido na cruz.

          A cruz revela a gravidade de nossa ofensa ao Deus santo, a santa majestade de Deus e, também, a grandeza incomensurável e incompreensível de seu amor.

          A cruz não foi um acidente, fracasso ou fatalidade. O seu ministério terreno caminhou para ela de forma irrevogável e contínua.

          Stott (1921-2011) enfatiza: “Desde a infância de Jesus, deveras desde o seu nascimento, a cruz lança sua sombra no Seu futuro. Sua morte se encontrava no centro de sua missão. E a igreja sempre reconheceu essa realidade”.[1]

          Ele sempre soube que não havia desvios nem atalhos: A cruz era a sua missão. A vitória estava na cruz, a despeito da aparente vitória de Satanás. Não que houvesse com isso, um prazer na própria morte mas, sim,  a certeza de ser este o único caminho concreto e definitivo para a salvação de seu povo.

          As profecias do Antigo Testamento na esteira de Gn 3.15, já indicavam as dores do Messias e Ele as conhecia bem, já que estas profecias foram reveladas pelo Espírito de Cristo (Vejam-se: Lc 24.26,46/Is 53.1-12/At 3.18; Jo 17.1-3; 1Pe 1.10,11).

          Por isso, após a identificação por parte de Pedro de ser Ele o Cristo (=  Messias, Ungido) (Cf. Mt 16.13-17), registra Mateus:  “Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas cousas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto, e ressuscitado no terceiro dia”(Mt 16.21/Mt 17.12; Lc 17.25).

          Jesus Cristo não tinha ilusões. Por isso, Ele administrava o tempo do qual era senhor, levando adiante a sua obra, tendo ciência perfeita da sua hora; do momento de se revelar, ser preso, torturado, morrer e ressuscitar (Cf. Lc 22.14-16/Jo 7.1-9; 12.23-33; 16.32; 17.1). 

          A cruz como símbolo de dor e desamparo, hoje usada como enfeite, joia e decoração, foi que tornou real a nossa salvação por meio  da poderosa proclamação do Evangelho nos intimando ao arrependimento e fé.[2] Pela graça atendemos a essa proclamação.

A obediência perfeita de Cristo

          É possível que alguém assuma uma missão sem saber o alcance, os perigos e as implicações da mesma; todavia, caso estes dados tenham sido ocultados propositadamente, ao tomarmos ciência disto, a tendência do ser humano  é de se revoltar contra aquele que o enganou, colocando-o numa situação difícil. Este não foi o caso de Jesus Cristo.

          Ele sabia perfeitamente o que teria de realizar e os sofrimentos pelos quais passaria; contudo, Ele veio assim mesmo para cumprir a sua missão cabalmente, conforme o Pacto selado na eternidade entre  Ele mesmo, como representante dos eleitos e o Pai, como representante da Trindade Excelsa.

          A grandeza da obediência de Cristo assume um papel ainda mais preponderante se atentarmos para o fato de que Ele é igual ao Pai, conforme já citamos:

6Pois ele, subsistindo em forma (morfh/,)[3] de Deus, não julgou como usurpação o ser igual  (i)/soj)[4] a Deus;  7 antes, a si mesmo se esvaziou (ke/now),[5] assumindo a forma (morfh/,)[6] de servo, tornando-se em semelhança (o(moi/wma)[7] de homens; e, reconhecido em figura humana, 8 a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz (stauro/j) (Fp 2.6-8).[8]

          Somente assim Ele pôde ser “crucificado em fraqueza” (2Co 13.4). Comenta Calvino: “Cristo sofreu por sua determinação e não por necessidade, porque subsistindo ‘na forma de Deus’, Ele poderia escapar a esta necessidade; não obstante, Ele sofreu ‘através da fraqueza’ porque ‘a si mesmo se esvaziou’.”[9]

          O escritor da Carta aos Hebreus nos diz:  “Embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu”(Hb 5.8). A obediência de Cristo foi em favor do seu povo. Ele viveu em constante harmonia com a vontade do Pai. O preço da obediência era o sofrimento. Assim nosso Senhor foi batizado, submeteu-se às leis do povo, foi ultrajado, torturado, contado entre os transgressores, morto e sepultado. O próprio Senhor Jesus diz:  “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra”(Jo 4.34). O seu alimento e alegria consistiam em realizar a obra do Pai. (Vejam-se: Is 50.4-7; 53.4-7).

           A obediência de Cristo não significa que Ele foi apenas uma vítima que deixou passivamente que os fatos conduzidos pelos homens, sob o olhar irado de Deus, o conduzissem ao martírio, não: Ele, antes, ativamente se dispôs a salvar os seus eleitos por meio do seu sacrifício remidor.

          Ele afirma em diferentes ocasiões:

Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. (Jo 10.17,18).

Ninguém tem maior amor do que este; de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos. (Jo 15.13). (Vejam-se também: Is 53.10-12; At 2.22,23; 4.27,28).[10]

          A obediência de Cristo foi voluntária e ativa; se Ele não se dispusesse a cumprir as demandas da Lei em nosso lugar apresentando um sacrifício perfeito, expiando os nossos pecados, a graça de Deus não seria diminuída; entretanto, não haveria salvação para ninguém.

           A Confissão de Westminster(1647), declara:

Este ofício o Senhor Jesus empreendeu mui voluntariamente. Para que pudesse exercê-lo, Ele se fez  sujeito à lei,  a qual cumpriu perfeitamente, padeceu imediatamente em sua alma os mais cruéis tormentos, e em seu corpo os mais penosos sofrimentos…. (VIII.4).

       Jesus Cristo foi o único homem que não precisava padecer, todavia, Ele voluntariamente o fez por nós (Jo 10.17,18; Hb 2.9), deixando-nos exemplo (1Pe 2.21), a fim de nos conduzir a Deus em santidade (Hb 13.12; 1Pe 3.18).

Maringá, 15 de janeiro de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Editora Vida, 1991, p. 11.

[2] “A doutrina da Trindade declara que o homem Jesus é verdadeiramente divino; a da Encarnação declara que o divino Jesus é verdadeiramente humano. Juntas, elas proclamam a plena realidade do Salvador que o Novo Testamento apresenta, o Filho que veio da parte do Pai, pela vontade do Pai, para tornar-se o substituto do pecador sobre a cruz” (Encarnação: In: J.I. Packer, Teologia Concisa, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1999, p. 98).

[3]A palavra grega morfh/ (Mc 16.12; Fp 2,6,7)  não indica algo externo (forma)  em contraste com a essência interna. A aparência externa é a expressão visível, sensível, da sua natureza interna. Não há antítese. Portanto, a natureza essencial de Cristo era divina. A sua forma externa corresponde àquilo que Ele é em sua essência. (Vejam-se: G. Braumann, Forma: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 378-281; W. Pöhlmann, Morfh/: In: Horst Balz; G. Schneider, eds. Exegetical Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1999 (Reprinted), v. 2, p. 442-443;  J. Behm, Morfh/: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 4, p. 742-752 (especialmente); R.P. Martin, Filipenses: Introdução e Comentário,  São Paulo: Mundo Cristã; Vida Nova, 1985, p. 107-109 (O autor faz uma breve revisão das interpretações mais significativas); João Calvino, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, p. 407-408 (em especial); Bruce Ware, Cristo Jesus: Reflexões teológicas sobre a humanidade de Cristo, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 25-30 (em especial).  Hendriksen, preciso como sempre, conclui: “O que Paulo está dizendo […] é que Cristo Jesus sempre foi (e continuará sempre sendo) Deus por natureza, a expressa imagem  da Deidade. O caráter específico  da Divindade, segundo se manifesta em todos os atributos divinos, foi e é a sua eternidade. Cf. Cl 1.15,17 (também Jo 1.1; 8.58; 17.24)” (W. Hendriksen, Exposição de Filipenses, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 139).

[4]A palavra denota uma igualdade qualitativa e quantitativa de tamanho, numérica, de valor ou força, sendo aplicada a quantias iguais, extensões de tempo, partes, pedaços, etc.  (Veja-se: G. Stählin, i)/soj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 3, p. 343-355). No NT. apresenta a ideia  de consistência/coerência (Mc 14.56,59); igual/igualar (Mt 20.12; Jo 5.18; Ap 21.16); outro tanto (Lc 6.34); mesmo (At 11.17). O texto de Filipenses aponta para a preexistência do verbo e a sua igualdade com o Pai. Ou seja: Ele é eternamente Deus.

[5] Vejam-se: Colin Brown, et. al., Vazio: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 690-692; A. Oepke, keno/j: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 3, p. 661-662 (especialmente);  F. Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 381-382.

[6] Da mesma forma, a natureza essencial de Cristo tornou-se humana, na forma de servo.

[7]*Rm 1.23; 5.14; 6.5; 8.3; Fp 2.7; Ap 9.7.  Uma palavra rara que significa “aquilo que é semelhante”, “cópia”. Para uma visão paralela destes textos, vejam-se: E. Beyreuther, et. al., Semelhante: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,  v. 4, p. 410-411 (em especial); J. Schneider, o(/moioj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 5, p. 192-198; T. Holtz, o(moi/wsij: In: Horst Balz; G. Schneider, eds. Exegetical Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1999 (Reprinted), v. 2, p. 512-513.

[8]Veja-se: B.B. Warfield, The Person of Christ. In: B.B. Warfield, The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 2000 (Reprinted), v. 2. p. 176ss.

[9] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995,  (2Co 13.4), p. 263. Veja-se: João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.31), p. 114-115.

[10]Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010,p. 138-139.

One thought on “Teologia da Evangelização (144)

  • 21 de janeiro de 2023 em 12:49
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    Excelente artigo deste Mestre, uma bênção.

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