Teologia da Evangelização (13)

2.4.2. A Universalidade do Pecado

Ao evangelizarmos, não saímos com uma “lanterna acesa”, procurando entre os homens aqueles que sejam pecadores. Também não abordamos as pessoas perguntando: “Você é pecador?” e no caso de uma resposta negativa, pedimos-lhe desculpas e vamos embora, quem sabe tentando refinar os nossos métodos, buscando outros homens com “aparência” de pecador.

          Quando nos dirigimos aos homens apresentando a salvação por Cristo, estamos na realidade, reivindicando que eles se arrependam e creiam no Evangelho. Ao assim procedermos, estamos, de fato, pressupondo corretamente que todos os homens pecaram distanciando-se de Deus, estando perdidos, necessitando, portanto, da salvação. Esta é a convicção de Paulo: “…. todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23).

2.4.2.1. Pecado como algo nivelador

O pecado é o grande nivelador de toda a humanidade: todos pecaram. todos estão no mesmo nível.[1] Logo, não há lugar para arrogância ou supostas boas obras justificadoras (Rm 3.19-20).[2] Se todos pecaram, isso significa que nós também pecamos; se todos precisam de salvação, significa que nós também precisamos. “Pecado não é algo peculiar a uns poucos, senão que permeia o mundo inteiro”, comenta Calvino.[3] O pecado nos condena e, ao mesmo tempo, nos impossibilita totalmente de nos salvar a nós mesmos.

          Na Oração do Senhor temos um indicativo da universalidade do pecado. “O fato de Jesus ensinar a todas as pessoas a fazerem esta oração demonstra a universalidade do pecado; e para repetir esta oração se requer um sentido de pecado”, conclui Barclay (1907-1978).[4]

          A Escritura nos fala que o pecado, comum a todos nós (Rm 3.23), nos fez cativos (Jo 8.34; Rm 6.20; 7.23[5]), habitando em nós (Rm 7.17,20),[6] mantendo-nos sob o seu domínio. Portanto, negar a nossa condição de pecador é negar a própria Palavra de Deus, que diz: “Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós” (1Jo 1.10). A insensibilidade pecaminosa não nos santifica nem nos inocenta. “Não ser consciente de pecado algum é o pior pecado de todos”, interpreta Barclay.[7]

Por isso mesmo, o Evangelho deve ser anunciado a todos indistintamente. Todos nós precisamos nos arrepender e crer em Jesus Cristo.

2.4.2.2. A gravidade do Pecado

Sem a consciência do pecado não há Evangelho. Somente o Evangelho trata o pecado com seriedade.[8] A Lei é o Evangelho ainda que não em sua plenitude. Contudo, sem a Lei não há consciência do pecado e, por isso mesmo, a convicção da necessidade de salvação. A Boa Nova de salvação engloba o pecado, as suas consequências e a libertação de suas mazelas pela graça de Deus. Por isso é que podemos dizer que a Lei é graça. A lei em seu primeiro aspecto, nos cala de vergonha. A graça que nos justifica, nos faz confessar a Jesus como Senhor.[9] A Lei, portanto, nos conduz à graça que brilha de forma magnífica na face de Cristo.[10]

          É natural que os homens se inclinem prazerosamente para os ensinamentos que falam de suas virtudes e capacidade.[11] “O Cristianismo é a religião do coração ferido”, resume Machen.[12]

          O homem é hábil em buscar “uma capa e subterfúgio para seu pecado”.[13] Ou, quem sabe, podemos nutrir até alguma noção sobre pecado, contudo, tendemos a pensar que isso é coisa praticada por pessoas ignorantes, deste modo, o conhecimento, por si só, nos liberta desta prática, supomos.

          Em geral a mente secular é profundamente otimista em relação às suas potencialidades. Portanto, falar de pecado é algo que não encontra tão facilmente ouvidos prazerosos ou mesmo atentos. Daí, uma tendência comum é a tentativa de suavizar esta doutrina, mudando nomes, perspectivas ou simplesmente silenciado a respeito.

          Dentro de uma perspectiva mais filosófica, tenta-se driblar a real questão por meio da amenização da realidade com a apresentação do perdão, como se a noção de perdão, por si só, trouxesse alívio, enquanto a proclamação da realidade do pecado assustasse as pessoas, as afastassem da mensagem do Evangelho. Pois bem, talvez isso seja assim no campo especulativo onde o pecado e o perdão são apenas conceitos vagos sobre os quais reflito por meio de uma análise fenomenológica, não me importando com a sua essência e fundamentação teológica.

          Deste modo, o que importa é a percepção subjetiva do conceito, não a veracidade e implicações dos fatos. Neste sentido, recordo-me da declaração de Erasmo de Roterdã (1466-1536): “Por certo são numerosos e fortes os argumentos contra a instituição da confissão pelo próprio Senhor. Mas como negar a segurança em que se encontra aquele que se confessou a um padre qualificado?”.[14]

          Na realidade, a Lei de Deus, como que por um espelho, reflete a nossa miséria espiritual resultante de nossa total incapacidade de cumprir as exigências divinas. O confronto com a Lei de Deus é algo profundamente angustiante e destruidor de alguma presunção orgulhosamente autônoma.

          A Lei de Deus não afaga as nossas pretensões entusiasticamente egocêntricas, antes, revela as nossas imperfeições. Via-nos saciados e ricos, com trajes finos e elegantes. A Lei vem nos mostrar que estamos famintos, carentes e nus.

          As nossas vestes autônomas – com todos seus valores agregados por marcas, etiquetas e nomes exóticos – só servem para certificar de forma eloquente a nossa nudez. Não passam de folhas arrancadas às pressas de um jardim já corrompido pelo pecado. Evidenciam, às vezes, de modo abrupto, as nossas imperfeições.

          Como tratar consciente e eficazmente de um mal não percebido? A Lei coloca em destaque a nossa condição de pecador, revelando de forma contundente os nossos pecados.[15]

          Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Palavra, podemos ter uma clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a Deus.[16]

          Ter consciência do pecado significa reconhecer o quão urgentemente precisamos de perdão. O Evangelho só se torna subjetivamente necessário – enquanto na realidade ele é urgentemente necessário – quando as pessoas percebem, por Deus, a sua necessidade. Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como algo descartável, ultrapassado ou loucura.

          Permanecemos, assim, mortos espiritualmente, tendo a liberdade de um morto em decomposição.

          Reafirmamos que a questão primeira não é a quantidade ou intensidade de nossos pecados, mas, o fato de que pecamos – e, diferentemente da compreensão de determinados pensadores humanistas, inclusive cristãos[17] –; a gravidade do pecado está no ponto de que todo pecado é primeiramente contra Deus, o eternamente santo,[18] que não tolera o mal (Hc 2.13). 

          Uma compreensão atenuada e adocicada da gravidade e horror do pecado, esvazia o significado da graça manifesta na cruz de Cristo. O que intensifica ainda mais a complexidade de nossa rebelião é o mal uso que fazemos de seus esplêndidos dons que nos foram conferidos [19] e, o fato de rejeitarmos o seu infinito amor plenificado em Jesus Cristo.[20]

Outro elemento agravante em nosso diagnóstico, é que o pecado não nos deixa perceber as suas consequências: estamos totalmente alienados de Deus. O pecado faz conosco o que determinados remédios fazem como efeito: mascaram os sintomas, tornando a possível enfermidade imperceptível. Lloyd-Jones está correto ao resumir: “Não podemos ser cristãos sem convicção do pecado. Ser cristão significa que compreendemos que somos culpados diante de Deus e que estamos sob a ira de Deus”.[21]

          Schaeffer (1912-1984) coloca a questão nestes termos:

Nós pecamos deliberadamente contra o santo de Deus; é por isso que a nossa situação é desesperadora. (…)

O problema não está na quantidade de pecados que praticamos, mas em quem ofendemos. Nós pecamos contra um Deus infinitamente santo, que realmente existe. E, a partir do momento em que pecamos contra um Deus infinitamente santo, que realmente existe, nosso pecado é infinito.[22]

São Paulo, 16 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Ver: Francis Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 70.

[2]“Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.19-20).

[3]João Calvino, Efésios,São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.2), p. 52.

[4]W. Barclay, El Padrenuestro,Buenos Aires: La Aurora; ABAP., 1985, p. 118.

[5]“Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34). “Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça” (Rm 6.20). “Mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23).

[6]“Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. (…) Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7.17,20).

[7] W. Barclay, El Padrenuestro,Buenos Aires: La Aurora; ABAP, 1985, p. 118.

[8] Veja-se: J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 69ss.

[9] “Se o leitor separar a lei da pessoa de Cristo, nada ficará nela senão formas vazias. (…) A verdade consiste no fato de que através de Cristo obtemos a graça que a lei não poderia dar” (João Calvino, O Evangelho segundo João,  São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.17),  p. 57).

[10] Veja-se: João Calvino, As Institutas, II.7.8.

[11]Cf. João Calvino, As Institutas,II.1.2.

[12] J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 71.  

[13]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 105.6), p. 671.

[14] Erasmo, Opera Omnia, Leyde, 1704, v, col. 145-6, Apud Jean Delumeau, A Confissão e o Perdão: As Dificuldades da Confissão nos Séculos XIII a XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 1991,p. 37. Em outro lugar, também indagou: “Por que se dar ao trabalho de confessar seus pecados a outro ser humano apenas pelo fato de ser um sacerdote, quando pode confessá-los diretamente a Deus?” (Apud Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 84).

[15]”Aqueles (…) que foram instruídos na lei de Deus e no Evangelho, como descrito na Bíblia, normalmente têm uma consciência mais viva de seu estado pecaminoso, e de seus pecados particulares, porque a luz divina que brilha neles e que vem das Escrituras para expor-lhes é mais intensa” (J.I. Packer, A Redescoberta da santidade,  2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 42).

[16] “É mister graça e iluminação espiritual para crermos que nossos pecados são um problema sério aos olhos de Deus, conforme a Bíblia nos diz. Precisamos orar para que Deus nos torne humildes e dispostos a aprender, quando estudamos esse tema” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 63. Ver também p. 70s).

[17] Dentro desta perspectiva limitante do sentido do pecado, incluímos, entre outros, Cecil Osborne (1904-1999), que seguindo o pensamento de Erich Fromm (1900-1980), escreveu: “Pecado é essencialmente um erro contra si mesmo ou contra outro ser humano” (Cecil Osborne, A Arte de Compreender-se a Si Mesmo, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 139). Fromm (1900-1980) escrevera: “Pecado não se dirige primariamente contra Deus, mas contra nós mesmos” (Erich Fromm, Psicanálise e religião, 2. ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, Ltda., 1962, p. 105). Veja-se também: E. Fromm, Análise do Homem, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.), 218p. De modo semelhante, esse conceito tem sido amplamente difundido por um discípulo de Norman Vincent Peale (1898-1993), o Dr. Robert Schuller (1926-2015), que enfatiza: “o pecado é uma ofensa psicológica a si mesmo” (Vejam-se as pertinentes críticas a esta posição em: John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 78ss.).

[18] “O pecado envolve uma certa responsabilidade, por um lado, responsabilidade esta surgida da santidade de Deus, e, por outro lado, da seriedade do pecado como oposição àquela santidade” (John Murray, Redenção: consumada e aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 29). “Jamais compreenderemos o que o pecado realmente é, enquanto não aprendermos a pensar nele em termos de nosso relacionamento com Deus” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 64).

[19]Veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 101-102.

[20] “O incrédulo despreza o amor de Deus. Se este amor fosse pequeno, seria um pecado pequeno ignorá-lo. Se é grande, é grande pecado rejeitá-lo. Mas o fato é que este amor é infinito. Isso faz da rejeição deste amor um pecado de proporções infinitas” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 19). “Como o amor de Deus é infinito, desprezar esse amor é pecado de proporções infinitas No entanto, é o que fazem aqueles que, por sua descrença, rejeitam o Filho de Deus, dom do Seu amor. (…) Rejeitar este amor é incorrer no banimento eterno da presença de Deus. Responder com fé e amor é herdar a vida eterna. Nada pode ser mais urgente do que a escolha de uma destas atitudes” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 72).

[21]D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 227.

[22]Francis Schaeffer. A Obra Consumada de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 75.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *