Saber ouvir, uma virtude teológica (4)

Este texto é continuação do artigo: Saber ouvir, uma virtude teológica (3)


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Considerações finais

Na cerimônia de unção de Arão e de seus filhos, encontramos o indicativo da necessidade de total consagração de Seus servos a Deus. Conforme instrução do Senhor, “Moisés o imolou, e tomou do seu sangue [do carneiro], e o pôs sobre a ponta da orelha direita de Arão, e sobre o polegar da sua mão direita, e sobre o polegar do seu pé direito” (Lv 8.23/Ex 29.20). Aqui temos um ritual de purificação. O indicativo é que os servos de Deus devem cuidar do ouvir (pensar), fazer e andar. É necessário que tenhamos cautela nessas questões. Somos pecadores. Precisamos, portanto, do sangue purificador do Cordeiro (Lv 8.22-24/Jo 1.29,36; 1Pe 1.18-21).1

Do que foi dito, podemos concluir que se faz necessário, aprender ouvir a Deus que nos fala ordinariamente por intermédio de sua Palavra.

O escritor de Hebreus exorta os seus leitores neste sentido: “Por esta razão, importa que nos apeguemos, com mais firmeza, às verdades ouvidas (a)kou/w), para que delas jamais nos desviemos” (Hb 2.1). “Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes (a)kou/w) a sua voz, não endureçais o vosso coração, como foi na provocação” (Hb 3.15/Hb 4.2,7).

Paulo dá graças a Deus pelo fato dos tessalonicenses terem recebido com discernimento a Palavra proclamada, procedente de Deus: “Outra razão ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido (paralamba/nw)2 a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes (de/xomai)3 não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13/1Ts 1.6/Jo 17.17).4

Os tessalonicenses ativamente “tomaram posse da Palavra” (paralamba/nw) que ouviram e, num ato subsequente, a receberam de forma prazerosa em seus corações (de/xomai). O receber pode ser um ato ou processo mais imediato; porém, o acolher envolve um processo de assimilação prazerosa, compreensão, aplicação e obediência.

Pelo Espírito eles creram, “acolheram” a mensagem e, a partir de então, Deus continuou operando eficaz e poderosamente em sua vida. Notem bem; na vida dos que creram. O ouvir deve ser acompanhado pela fé. A Palavra não pode ser dissociada da fé. “A Palavra só exerce o seu poder em nós quando a fé entra em ação”.5 (Hb 4.2).6

Ouvir a Palavra de Deus deve envolver a fé que nos conduz ao praticar em santa obediência, sendo isso por si só altamente abençoador, conforme Tiago nos instrui:

22Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes (a)kroath/j), enganando-vos a vós mesmos. 23 Porque, se alguém é ouvinte (a)kroath/j) da palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; 24 pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência. 25Mas aquele que considera, atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte (a)kroath/j) negligente, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar. (Tg 1.22-25/Rm 2.13).

Saberemos ouvir melhor as pessoas quando aprendermos a ouvir a Palavra de Deus a qual frutifica em nós, concedendo-nos discernimento, inclusive para identificar a Sua Palavra de forma intensa e vivencial. Os tessalonicenses agiram desta forma, conforme Paulo escreve com alegria e gratidão:

Outra razão ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes (a)koh/), que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente (e)nerge/w) em vós, os que credes. (1Ts 2.13).

Consideremos a instrução de Tiago: “Sabeis estas coisas, meus amados irmãos. Todo homem, pois, seja pronto para ouvir (a)kou/w), tardio para falar, tardio para se irar” (Tg 1.19).

 

***

As cartas de Paulo aos Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemon, foram escritas num período próximo, quando o Apóstolo estava preso (Ef 3.1; 4.1; Fp 1.7; Cl 4.10; Fm 9).7

Em todas elas a doutrina da graça é ensinada. Isto evidencia que as doutrinas pregadas por Paulo, aprendidas do Senhor, não faziam parte apenas de sua mente e ensino, antes, instruía, alimentava e confortava o seu coração (Cf. Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça: 1.400 a.C. -100 d.C: longa linha de vultos piedosos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012, v. 1, p. 587-588). Em nossa dor conservamos aquilo que consideramos relevante para nós. O sofrimento é um verdadeiro depurador de nossa teologia e, consequentemente, de nossa fé.8

A eleição eterna de Deus descrita em Ef 1.3-14 não é uma categoria abstrata, distante e apenas ideal. Os eleitos de Deus, por inteira e incompreensível graça, após o chamado eficaz de Deus, são identificáveis pela sua vida e testemunho. A nossa eleição se materializa em obediência a Deus. Por isso, os cristãos sinceros, entre outros critérios, são reconhecidos pelo fato de terem fé no Senhor Jesus e amor para com todos os santos (Ef 1.15). O amor aos nossos irmãos é a profissão de uma genuína fé. (Veja-se: João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.5), p. 33).

A fé e o amor, evidentes entre os efésios, resumem os Dez Mandamentos. Calvino (1509-1564) escreveu:

Paulo abrange toda a perfeição dos cristãos. Porque o primeiro alvo a que a primeira tábua da lei visa é que devemos adorar a um só Deus e nos unirmos a Ele por todas as coisas, reconhecendo-nos estar tão endividados para com esse que temos que fugir só a Ele para ter todo refúgio e nos empenharmos em passar a nossa vida inteira no seu serviço. Esse é o resumo da primeira tábua da lei. O conteúdo da segunda nada mais é senão que vivamos em conjunto em equidade e retidão, procedendo de tal modo com nosso próximo que nos esforcemos em ajudar a todos sem prejudicar a ninguém. E estamos tão certos de que Deus em sua lei apresentou uma tão boa e perfeita regra de boa vida que nada pode ser acrescido àquela.

Em vista disso, não é sem razão que, nesse ponto, Paulo registre aqui a fé em Jesus Cristo e o amor como uma síntese da vida cristã como um todo, expondo aquilo ao qual devemos ser conformados e que é nosso padrão.9

Paulo se refere à igreja como sendo constituída por aqueles que têm fé no Senhor Jesus. No entanto, na história, o entendimento concernente à Pessoa de Cristo passou por vários embates resultantes de uma compreensão parcial, inadequada ou simplesmente herética da Pessoa do Messias.

A fé vem pelo ouvir (Rm 10.17). Ouçamos o Senhor. Aprendamos dele e com ele. Aprendamos também a ouvir àqueles que nos procuram a fim de poder ajudá-los em suas angústias e necessidades. Estendamos, portanto, os nossos ouvidos, assim como Senhor tem feito conosco continuamente. Que Ele mesmo nos ajude. Amém,

São Paulo, 28 de novembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


1 Veja-se: Francisco L. Schalkwijk, Meditações de um peregrino, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 107.

2Tem o sentido pessoal de tomar para si, levar consigo, tomar posse. É o próprio Senhor quem escolhe três discípulos para se revelar (Mt 17.1; 20.17; 26.37/Mc 5.40). Ele mesmo, o Senhor Jesus nos receberá no céu (Jo 14.3/Mt 24.40).

3Tem também o sentido de “receber”, “aceitar”, “aprovar”. Estevão sendo apedrejado ora: “Senhor Jesus, recebe (de/xomai) o meu espírito!” (At 7.59).

“Com efeito, vos tornastes imitadores nossos e do Senhor, tendo recebido (de/xomai) a palavra, posto que em meio de muita tribulação, com alegria do Espírito Santo” (1Ts 1.6).

5 João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 4.2), p. 101.

6“Porque também a nós foram anunciadas as boas-novas, como se deu com eles; mas a palavra que ouviram não lhes aproveitou, visto não ter sido acompanhada pela fé naqueles que a ouviram” (Hb 4.2).

7“Por esta causa eu, Paulo, sou o prisioneiro de Cristo Jesus, por amor de vós, gentios” (Ef 3.1). “Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados” (Ef 4.1). “Aliás, é justo que eu assim pense de todos vós, porque vos trago no coração, seja nas minhas algemas, seja na defesa e confirmação do evangelho, pois todos sois participantes da graça comigo” (Fp 1.7). “Saúda-vos Aristarco, prisioneiro comigo, e Marcos, primo de Barnabé (sobre quem recebestes instruções; se ele for ter convosco, acolhei-o)” (Cl 4.10). “Prefiro, todavia, solicitar em nome do amor, sendo o que sou, Paulo, o velho e, agora, até prisioneiro de Cristo Jesus” (Fm 9).

Todos nós aprendemos muito mais por meio do sofrimento” (John MacArthur, Certezas que Impulsionam um Ministério Duradouro: In: John Piper; Justin Taylor, eds. Firmes: um chamado à perseverança dos santos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 81).

9João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 133-134.

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