Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (6)

3. Pressupostos da doutrina da eleição

3.1. A Depravação total do homem

 

O homem desde a Queda, encontra-se sob o domínio do pecado e, por isso mesmo, é incapaz de responder positivamente ao chamado externo do Evangelho.

 

O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral de toda a raça humana. Por isso, o homem está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Is 59.2; Jo 8.34,43,44 Rm 3.9-12,23; Ef 2.1,5; Cl 1.13; 2.13)[1] e nada podendo fazer – na realidade, nem sequer deseja fazer – para retornar à comunhão perdida. Como disse o Senhor Jesus Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado”. (Jo 8.34) (Vejam-se: Is 64.6; Rm 6.6).

 

Agora “o homem peca com o consentimento de uma vontade pronta e disposta”, afirma Calvino.[2] A depravação total é justamente isto: a contaminação de todas as nossas faculdades pelo pecado. Perdemos totalmente a nossa capacidade de percepção espiritual. As coisas de Deus soam como loucura (1Co 1.18-21; 2.6-8; 12-16). A nossa lógica tão hábil para desvendar os mistérios do saber e desmantelar sofismas, se mostra totalmente inadequada e incapaz para perceber a realidade da Palavra que nos fala de Deus e do que somos.

 

“O intelecto do homem está de fato cegado, envolto em infinitos erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a vontade, má e cheia de afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a força física, incapaz de boas obras, tende furiosamente à iniquidade”, interpreta Calvino.[3]

 

Ainda que o homem não seja absolutamente mau[4] – não é tão mau quanto poderia -, é extensivamente mau; todo o seu ser está contaminado pelo pecado.[5]

 

O pecado nos domina completamente. Na linguagem inspirada de Isaías, “toda a cabeça está doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6).

 

O pecado só poderá ser compreendido em sua abrangência quando tivermos uma visão correta se sua total abrangência sobre o nosso coração, envolvendo o nosso pensar, sentir e agir.[6]

 

Calvino interpretando Romanos 8.7, diz:

 

Nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto; e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira divina.

Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão.[7]

 

Com o pecado, o homem tornou-se positivamente mau (Gn 6.5; 8.21; Mt 7.11) e incapaz de:

 

1) Fazer o Bem: O homem é mau, por isso não pode produzir bons frutos (Jó 14.4; Jr 13.23; Mt 7.17-18; Jo 15.4-5; Rm 3.9-18). Os atos de “bondade” praticados pelo homem natural são frutos da Graça Comum de Deus, a qual atua sobre todos indistintamente.[8]

 

2) Entender o Bem: Se Deus não iluminar o homem natural, ele jamais compreenderá a mensagem salvadora do Evangelho: nós um dia fomos salvos, porque Deus abriu os nossos olhos para a Sua Palavra (Jo 1.11; 8.43-44/11Jo 4.5-6; At 16.14; 1Co 2.14; Sl 119.18). O conhecimento que Adão e Eva passaram a ter após o pecado foi virtualmente      diferente (Gn 2.25; 3.7); nada havia ali de um “Conhecimento Salvador”.

 

Calvino (1509-1564) resume:

 

No tocante ao reino de Deus e a tudo quanto se acha relacionado à vida espiritual, a luz da razão humana difere pouquíssimo das trevas; pois, antes de ser-lhe mostrado o caminho, ela é extinta; e sua perspicácia não é mais digna que a cegueira, pois quando vai em busca do resultado, ele não existe. Pois os princípios verdadeiros são como as centelhas; essas, porém, são apagadas pela depravação da natureza antes que sejam postas em seu verdadeiro uso.[9]

 

3) Desejar o Bem: O homem natural, além de não fazer e não entender o bem, nem sequer o deseja. A sua vontade está sob o domínio tirânico do pecado e, por isso, quando o homem deseja a Cristo sinceramente, já indica a ação primeira de Deus: a iniciativa é sempre de Deus (Mt 7.18; Jo 3.3; 5.40; Jo 6.44,65; 8.43/15.4-5).

A.A. Hodge (1823-1886), diz: “Sua essência está na inabilidade da alma de conhecer, escolher e amar o que é bom espiritualmente, e seu fundamento está nessa corrupção moral da alma que a torna cega, insensível e totalmente adversa para tudo quanto é bom espiritualmente”.[10]

 

Desta forma, todas as escolhas “livres” do homem natural estão na realidade a serviço do pecado,[11] como escreveu Seaton: “Somos como Lázaro em seu túmulo, mãos e pés amarrados; fomos tomados pela corrupção. Assim como não havia qualquer lampejo de vida no corpo morto de Lázaro, assim também não há ‘centelha interna receptiva’ em nossos corações”.[12]

 

No entanto, parece-nos pertinente a constatação de Calvino:

 

Deus, ao criar o homem, deu uma demonstração de sua graça infinita e mais que amor paternal para com ele, o que deve oportunamente extasiar-nos com real espanto; e embora, mediante a queda do homem, essa feliz condição tenha ficado quase que totalmente em ruína, não obstante ainda há nele alguns vestígios da liberalidade divina então demonstrada para com ele, o que é suficiente para encher-nos de pasmo.[13]

 

Recife, 02 de abril de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

Leia esta série completa aqui.

 

 


[1]“Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). “…. o SENHOR (…) disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade….” (Gn 8.21). “…. as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (…) Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.34,43,44). “Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). “….  todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; (…) e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —pela graça sois salvos”  (Ef 2.1,5). “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor (…). E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos” (Cl 1.13; 2.13).

[2]João Calvino,  Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 5, p. 16.

[3]João Calvino,  Instrução na Fé, Cap. 4, p. 15.

[4] A.A. Hodge (1823-1886) usa a expressão “inabilidade absoluta”; todavia, a conotação dada por ele, não colide com a nossa, ao afirmarmos que a depravação não é absoluta. (Veja-se:  A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata Sanches, 1895, Cap. XX, p. 314).

[5]“Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza” (J. Calvino, As Institutas, II.1.10).  

[6]Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A depravação (…) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração, mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81).

[7]João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.7), p. 266-267.

[8] Esta doutrina, que nada mais é do que a compreensão de que o Espírito Santo exerce influência comum sobre os homens em geral, pode ser resumida em três pontos: 1) Uma atitude favorável da parte de Deus para com a humanidade em geral – eleitos e réprobos –, concedendo-lhes os bens necessários à sua existência: chuva, sol, água, alimento, vestuário, abrigo; 2) A restrição do pecado feita pelo Espírito Santo na vida dos indivíduos e na sociedade: “A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influência e desenvolvimento do pecado no mundo….” (L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.; Luz para o Caminho, 1990, p. 436); 3) A possibilidade da aplicação da justiça civil por parte do não regenerado: Aquilo que é certo nas atividades civis ou naturais. No entanto, deve ser dito que esta graça: a) Não remove a culpa do pecado; b) Não suspende a sentença de condenação, portanto, o homem continua sob o juízo de Deus. Deste modo, esta ação do Espírito deve ser distinta da Sua operação efetiva no coração dos eleitos por meio da qual Ele os regenera. [Vd. As Institutas, II.2.16-17,27; II.3.4; L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 433ss.; Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1986, v. 2, p. 654ss.; A.A. Hodge, Comentario de La Confesion de Fe de Westminster, Barcelona: CLIE., (1987), Cap. X, p.155-156; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata Sanches, 1895, Cap. XXVIII, p. 420-421; William G.T. Shedd, Systematic Theology, Nashville, Thomas Nelson Publishers, 1980, v. 2, p. 483ss.; R.L. Dabney, Lectures in Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1985, Cap. XLVIII, p. 583ss.; P.E. Hughes, Graça: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1990, v. 2, p. 216-217; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 549; D. Martyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 34-42].

[9] João Calvino, Efésios, (Ef 4.17), p. 134-135. Veja-se: João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.5),  p. 36-38.

[10] A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 315.

[11]Vd. J.I. Packer, Liberdade: In: J.D. Douglas, ed. ger. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p. 930.

[12]W.J. Seaton, Os Cinco Pontos do Calvinismo, p. 8.

[13]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *