Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (36) 

3) Mansidão e firmeza na defesa de nossa fé

 

Pedro, escrevendo às igrejas perseguidas, diz que a nossa resposta aos que nos caluniam e perseguem deve ser dada com firmeza e mansidão, apresentando a razão de nossa esperança em Cristo:

 

Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça, bem-aventurados sois. Não vos amedronteis, portanto, com as suas ameaças, nem fiqueis alarmados; antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão (prau+/thj) e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal. (1Pe 3.14-17).

 

4) Mansidão no ensino e no exercício da disciplina

 

Do mesmo modo, devemos corrigir os infratores com espírito de brandura: “Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura (prau+/thj); e guarda-te para que não sejas também tentado” (Gl 6.1). Não pensemos que mansidão é sinônimo de acomodação ao erro. A mansidão se revela na correção que visa à restauração do irmão faltoso, com brandura e humildade.

 

Em outro lugar Calvino orienta-nos:

 

Não há nada pior no conselho fraternal do que um espírito azedo e arrogante, pois ele nos leva a desdenhar e a sentir enfado por aqueles que se acham em erro, e nos leva a ameaçá-los com o ridículo em vez de corrigi-los. A aspereza também, seja em palavras, seja em expressão, priva nosso conselho de seus efeitos. Ainda quando excedamos em espírito humanitário e em cortesia, jamais seremos as pessoas certas para ministrar conselhos, a não ser que cultivemos muita sabedoria e adquiramos muita experiência.[1]

 

À    rebelde igreja de Corinto, Paulo pergunta de forma severa: “Que preferis? Irei a vós outros com vara ou com amor e espírito de mansidão (prau+/thj)?” (1Co 4.21).

 

De forma análoga, a orientação àqueles que pensam diferentemente deve ser feita com brandura e oração, a fim de que Deus possa, por meio da Palavra, dar-lhes discernimento – conhecendo a verdade – livrando-os do cativeiro intelectual e espiritual de satanás que tem os seus próprios planos destrutivos e alienantes de Deus:

 

Disciplinando (paideu/w[2] = “ensinando”, “instruindo”) com mansidão (prau+/thj) os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços (pagi/j)[3]do diabo, tendo sido feitos cativos (zwgre/w)[4] por ele, para cumprirem a sua vontade (qe/lhma).[5] (2Tm 2.25-26).[6]

 

Esta instrução (disciplina) não deve ser caracterizada pela polêmica – que por si só não é edificante[7] – mas pelo desejo de conduzi-los à verdade.

 

Calvino nos instrui:

 

Os mestres precisam aprender que esse gênero de moderação deve ser sempre usado nos atos de reprovação, para que não se firam os brios dos homens no uso de excessiva austeridade. (…) Mas, acima de tudo, devem tomar cuidado para não parecer que escarnecem daqueles a quem estão a reprovar, nem sentir-se prazerosos com seu infortúnio.[8] Não! Ao contrário, devem esforçar-se para que fique evidente que a sua intenção não é outra senão a promoção de seu bem-estar. (…) Portanto, se desejamos fazer algo de positivo, ao corrigirmos as falhas das pessoas, é saudável esclarecer-lhes que as nossas críticas são oriundas de um coração amigo”.[9]

O alvo de um bom mestre deve ser sempre converter os homens do mundo para que voltem seus olhos para o céu.[10]

 

 

São Paulo, 30 de abril de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Leia esta série completa aqui.

 


[1]João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, (Rm 15.14), p. 506.

[2]O substantivo paidei/a e o verbo paideu/w (de onde vem a nossa “pedagogia”), significam “educação das crianças”, e têm o sentido de treinamento, instrução, disciplina, ensino, exercício, castigo. (Para maiores detalhes, consultar: Hermisten M. P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 270ss.).

[3]Pagi/j significa “armadilha”, “rede”, “laço” (* Lc 21.34 (ARA) na ACR e BJ, no verso 35; Rm 11.9; 1Tm 3.7; 6.9; 2Tm 2.26).

[4]Zwgre/w, “capturar”, “feito prisioneiro”, “prender com vida” (* Lc 5.10; 2Tm 2.26).

[5]Qe/lhma (derivado do verbo Qe/lw), que significa “vontade”, “desejo”, “intenção”. Apesar do verbo ser amplamente empregado na literatura clássica, o substantivo Qe/lhma aparece raramente. No Novo Testamento ele ocorre 61 vezes (o verbo 207 vezes). A palavra enfatiza mais o elemento volitivo do que o deliberativo, ou seja, a sua ênfase recai sobre o propósito almejado.

[6]“Satanás visa impedir a nossa visão clara da realidade, confundindo os nossos sentidos e, assim, paralisando a nossa vontade, tornando-nos presas fáceis para a execução de seus propósitos. Não é à toa que no Apocalipse Satanás é denominado de ‘o sedutor de todo o mundo’ (Ap 12.9)” (Hermisten M. P. Costa, O Pai Nosso, p. 89).

[7]Segundo Calvino, na polêmica pela polêmica, há algo de ardiloso por parte do maligno. De modo especial, Calvino chama a atenção dos pastores: “Essa é a trama de Satanás, ou seja: que, mediante perversa loquacidade de tais homens, ele enreda os bons e fiéis pastores com o fim de distraí-los de sua preocupação pela doutrina. Daí a necessidade de nos precavermos e não permitirmos qualquer envolvimento em argumentos polêmicos; porque, do contrário, jamais nos veremos livres para direcionar nosso labor em prol do rebanho do Senhor, nem os homens amantes de polêmicas nos deixarão de perturbar” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 3.10), p. 357). Por outro lado: “Um bom pastor deve estar sempre alerta para que seu silêncio não propicie a invasão de doutrinas ímpias e danosas, e ainda propicie aos perversos uma irrefreada oportunidade de difundi-las” (João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.11), p. 316).

[8] “…os crentes são açoitados, não para com isso satisfazerem à ira de Deus, nem para pagarem o que é devido ao juízo que ele lhes impõe, mas a fim de aproveitarem a oportunidade para arrependimento e para retorno ao bom caminho” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, (II.5). v. 2. p. 177).

[9]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.14), p. 142.

[10] J. Calvino, As Pastorais, (Tt 1.2), p. 301.

One thought on “Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (36) 

  • 4 de maio de 2019 em 12:52
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    Mansidão não é sinônimo de temperamento melancólico, mas, sim, uma necessidade urgente de todos os temperamentos.

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