Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (35)  

10.1.2.Mansidão (Ef 4.2)

1) Significado da palavra mansidão

 

O Novo Testamento dispõe de duas palavras que são empregadas indistintamente: Prau/+thj (que é usada neste texto) e prao/thj,[1] que significam: gentileza, humildade, cortesia, consideração, amabilidade, meiguice, brandura. Elas indicavam uma “amizade suave e gentil”.

 

Barclay (1907-1978) traz uma palavra esclarecedora:

 

No grego clássico, esta é uma palavra encantadora. A respeito dos objetos significa “suave”. É usada, por exemplo, a respeito de uma brisa ou uma voz suave. A respeito das pessoas significa “brando” ou “gracioso”. Há um fragmento de Menandro que diz: “Quão doce é um pai que é meigo e jovem de coração”. Seria verdade dizer que no grego clássico é uma palavra carinhosa. Na realidade, Xenofonte usou o plural neutro do adjetivo no sentido de “carinhos”. É caracteristicamente uma palavra de bondade e graciosidade.[2]

 

Aristóteles (384-322 a.C.), seguindo a sua metodologia de encontrar o meio termo virtuoso entre os extremos, a colocou como o ponto central entre a ira excessiva (o)rgilo/thj)[3] e a total passividade (a)orghsi/a)[4].[5] Sócrates (469-399 a.C.) dizia que o amor incute em nós a “brandura”, excluindo a rudeza.[6] Esta virtude, apreciada de modo especial nas mulheres, era uma característica comum atribuída às deusas gregas.[7]

 

Portanto, podemos dizer que “Praus é a palavra em que força e suavidade estão perfeitamente combinadas”.[8]

 

2) Mansidão x fraqueza

 

Mansidão não é sinônimo de fraqueza, indolência ou indiferença. Facilmente podemos confundir tais comportamentos. A mansidão não é apenas uma atitude externa, antes, é uma atitude interior, um controle interno dos impulsos vingativos e reivindicatórios que inesperadamente nos assaltam.

 

Lloyd-Jones comenta:

 

A mansidão é compatível com grande força de caráter. A mansidão é compatível com grande autoridade e poder. (…) O homem manso é aquele que acredita em defender com tal empenho a verdade que se dispõe até a morrer por ela, se for necessário. Os mártires foram pessoas mansas, mas jamais foram débeis. Foram homens fortes, e, contudo, mansos.[9]

 

Nas páginas do Novo Testamento, encontramos Tiago contrastando a mansidão com a ira:

 

Sabeis estas coisas, meus amados irmãos. Todo homem, pois, seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar (o)rgh/).[10] Porque a ira (o)rgh/) do homem não produz a justiça de Deus. Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade (kaki/a),[11] acolhei (de/xomai),[12] com mansidão (prau=+thj), a palavra em vós implantada (e)/mfutoj[13]= “semeada”), que é poderosa para salvar a vossa alma. (Tg 1.19-21).

 

Dentro de outra perspectiva, podemos observar que muitas vezes enfrentamos alguns problemas, não pelo que dissemos, mas pelo modo como dissemos. Fomos ásperos e agressivos. Devemos enfatizar que amabilidade, gentileza e doçura não se contrapõem necessariamente à firmeza. Devemos ser firmes nas coisas que envolvem a Palavra de Deus e a sua causa, no entanto, não devemos ser grosseiros. Muitas vezes, somos levados a pensar que a convicção de estarmos certos elimina a necessidade de sermos cordatos e amáveis em nossa posição. A verdade não necessita ser grosseira e iracunda.

 

Hendriksen (1900-1982) comenta:

 

Mansidão não é sinônimo de fraqueza. A mansidão não consiste em falta de firmeza de caráter, uma característica da pessoa que está pronta a curvar-se ao sabor de toda brisa. Mansidão é submissão ante qualquer provação, a disposição de sofrer dano ao invés de causá-lo. A pessoa mansa deixa tudo nas mãos daquele que ama e que se importa.[14]

 

Do mesmo modo, Lloyd-Jones (1899-1981): “’Mansidão’ significa realmente prontidão para sofrer o mal, confiando tudo a Deus”.[15]

 

 

São Paulo, 30 de abril de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 

*Leia esta série completa aqui.

 


 

[1]Temos também prau/+j, praei=a e prau+/ que significam “manso”, “humilde” (* Mt 5.5; 11.29; 21.5; 1Pe 3.4).

[2]William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988 (reimpressão), p. 172.

[3]Esta palavra, que não ocorre no Novo Testamento, é derivada de o)rgh/ (“ira’, “indignação”, “furor”) (Mt 3.7; Mc 3.5; Rm 1.18; 2.5,8, etc.).

[4] Esta palavra também não é empregada no Novo Testamento. Ela é formada por duas outras: a) (“não”) e o)rga/w (“estar cheio de seiva”, “arder em desejos de luxúria”). O)rga/w é derivada de o)rgh/. Somente esta aparece no Novo Testamento.

[5] “No tocante à cólera também há um excesso, uma falta e um meio-termo. Embora praticamente não tenham nomes, uma vez que chamamos calmo ao homem intermediário, seja o meio-termo também a calma; e dos que se encontram nos extremos, chamemos irascível ao que excede a irascibilidade ao seu vício; e ao que fica aquém da justa medida chamemos pacato, e pacatez à sua deficiência” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, II.7. 1108a 6, p. 275).

[6] Platão, O Banquete, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 3), 1972, 197d., p. 35.

[7] Cf. F. Hauck; S. Schulz, Prau=j: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 6, p. 646.

[8]William Barclay, As Obras da Carne e o Fruto do Espírito, São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 107.

[9]David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 61.

[10]O)rgh/ ocorre no mínimo 35 vezes no Novo Testamento e, qumo/j é usado no mínimo 18 vezes. Na Bíblia, ambos os termos aparecem algumas vezes relacionados: No Antigo Testamento: Dt 9.19; Sl 2.5; 78.49; Is 5.25; 7.4; 9.19; 34.2; Dn 3.13; Ez 22.31; Os 13.11; Mq 5.15. No Novo Testamento: Rm 2.8; Ef 4.31; Cl 3.8; Ap 19.15. Segundo Trench, o mesmo acontece no grego secular (Veja-se: Richard C. Trench, Synonyms of The New Testament, 7. ed. rev. and enlarg. London: Macmillan and Co., 1871, § XXXVII, p. 123).

Apesar de ambas as palavras serem quase sinônimas, parece-me que a distinção entre elas está na duração da irritabilidade; enquanto qumo/j descreve uma ira repentina que logo se apaga, como um “fogo de palha”, conforme diziam os gregos, o(rgh/ retrata uma ira que persiste ardendo lentamente, recusando-se a ser pacificada, tendo assim, grande propensão a se transformar em “amargura”. Contudo, essa distinção gramatical não deve ser aplicada a Deus visto que ele Se comunica conosco usando de termos humanos para descrever os seus “sentimentos” (Vejam-se: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, (Mateo I), v. 1, p. 149-150; v. 11, p. 163; G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1981, p. 162-163; F. Foulkes, Efésios: introdução e comentário, São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, (1979), p. 113 e, especialmente: H. Schönweiss; H.C. Hahn, Ira: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 441-449; Richard C. Trench, Synonyms of The New Testament, § XXXVII, p. 123-127; Hermann M. Kleinknecht, et. al., O)rgh/: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 5, p. 382-447.

[11]“Mal”, “malícia”, “maldade”, “impiedade”, “depravação”, “vício”, “malignidade”. A palavra em alguns textos significa uma depravação mental de onde decorrem todos os outros vícios. Ela tem de modo especial um sentido ético. * Mt 6.34; At 8.22; Rm 1.29; 1Co 5.8; 14.20; Ef 4.31; Cl 3.8; Tt 3.3; Tg 1.21; 1Pe 2.1,16. Na literatura clássica a palavra tinha o sentido de “vício” e “injustiça” (Vejam-se: Platão, A República, 444e; Platão, Fedro, 248b; Aristóteles, Arte Retórica, II.12; Aristóteles, Ética à Nicômaco, VII.1.15; Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, II.1.21). Calvino comentando o uso da palavra em Ef 4.31, diz: “Por esse termo ele quer dizer que a depravação da mente, a qual é oposta ao espírito humano e à probidade, e a qual é usualmente chamada malignidade” (J. Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.31), p. 149).

[12]Tem também o sentido de “receber”, “aceitar”, “aprovar”. Estevão sendo apedrejado ora: “… Senhor Jesus, recebe (de/xomai) o meu espírito!” (At 7.59).

[13] Esta palavra só ocorre neste texto em todo o Novo Testamento.

[14] William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 5.5), p. 379.

[15]D.M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 38.

One thought on “Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (35)  

  • 4 de maio de 2019 em 08:21
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    A mansidão é a consolidação da certeza de que nós não somos importantes para Deus por aquilo que somos, temos ou representamos mas, sim, porque Cristo morreu por nós.

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