Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (34) 

C) A humildade e o nosso senso de criatura

 

A humildade começa por uma postura correta diante de Deus e de Sua Palavra.[1] O nosso louco senso de autossuficiência tende, ainda que residualmente, a sobreviver em nós. Por isso, muitas vezes Deus nos disciplina a fim de evidenciar a nossa pequenez e total carência Dele.[2]

 

Portanto, um dos pontos fundamentais da humildade que todos devemos ter, é a consciência de que todos somos dependentes de Deus; todos somos necessitados da misericórdia de Deus, quer sejamos ricos quer pobres, cultos ou não. Todos passaremos por este estado de existência e todos os crentes em Cristo serão transformados em glória.

 

Tiago faz um jogo de palavras para realçar este ponto:

 

O irmão, porém, de condição humilde (tapeino/j) glorie-se na sua dignidade, e o rico, na sua insignificância (tapei/nwsij), porque ele passará como a flor da erva. Porque o sol se levanta com seu ardente calor, e a erva seca, e a sua flor cai, e desaparece a formosura do seu aspecto; assim também se murchará o rico em seus caminhos. (Tg 1.9-11).

 

Calvino comenta:

 

Ninguém possui coisa alguma, em seus próprios recursos, que o faça superior; portanto, quem quer que se ponha num nível mais elevado não passa de imbecil e impertinente. A genuína base da humildade cristã consiste, de um lado, em não ser presumido, porque sabemos que nada possuímos de bom em nós mesmos; e, de outro, se Deus implantou algum bem em nós, que o mesmo seja, por esta razão, totalmente debitado à conta da divina graça.[3]

A verdadeira humildade é o desprezo sincero do nosso próprio coração, um autodesprezo procedente de uma real percepção da nossa miséria e pobreza, pelo que o nosso coração se abate.[4]

 

A humildade está associada ao senso de ser criatura diante do Senhor da Glória.[5]

Quando suplicamos pelo perdão de nossas dívidas, conforme o Senhor nos ensinar a orar, Ele indicou a nossa total incapacidade de pagar-lhe: somos total e irreversivelmente devedores. Portanto, a nossa postura é de humildade diante de Deus, o Senhor que tudo nos dá e perdoa todas as nossas dívidas, porque Ele mesmo providenciou o pagamento por intermédio de seu único e Amado Filho.

 

“Somos devedores de Deus. Não lhe devemos algo, nem pouco nem muito senão pura e simplesmente tudo: nossa pessoa em sua totalidade, a nós mesmos como criatura que somos, sustentadas e nutridas por sua bondade”, conclui K. Barth (1886-1968).[6]

 

O perdão de Deus mostra a nossa necessidade de sua misericórdia e a nossa total incapacidade de atingir o padrão de Deus, por isso, só nos resta suplicar humildemente: “perdoa as nossas dívidas” e, mais humildemente ainda, recebermos o perdão, prosseguindo em nossa caminhada, com plena consciência de que tudo que temos é pela graça de Deus.

 

Lutero (1483-1546), comentando o Pai Nosso, diz:

 

Isso, porém, deve servir a que Deus nos quebre o orgulho e nos mantenha na humildade. Pois reservou para si a prerrogativa de que, se alguém quiser jactar-se de sua probidade e menosprezar outros, examine-se a si mesmo e ponha diante dos olhos essa petição: verá então que sua probidade é igual à dos outros. Diante de Deus todos temos de baixar o topete e estar contentes de que alcançamos o perdão. E ninguém pense que na presente vida vai chegar ao ponto de não precisar desse perdão. Em suma: se Deus não perdoa continuamente, estamos perdidos.[7]

 

A Palavra nos diz que Deus resiste aos soberbos mas consola os humildes, concedendo-lhes a sua graça. Paulo relatando as suas angústias enquanto Tito não chegava com notícias dos tessalonicenses, testemunha: “….Deus, que conforta os abatidos (tapeino/j), nos consolou” (2Co 7.6).

 

Pedro, apresentando preceitos gerais às igrejas da Dispersão, escreve: “Rogo igualmente aos jovens: sede submissos aos que são mais velhos; outrossim, no trato de uns com os outros, cingi-vos todos de humildade (tapeinofrosu/nh), porque Deus resiste aos soberbos, contudo, aos humildes (tapeino/j) concede a sua graça. Humilhai-vos (tapeino/w), portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele, em tempo oportuno, vos exalte” (1Pe 5.5-6).Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes (tapeino/j) (Tg 4.6).

 

A arrogância precede à queda. O que se exalta será humilhado; o que se humilha será exaltado. Jesus Cristo mesmo ensina: Quem a si mesmo se exaltar será humilhado (tapeino/w); e quem a si mesmo se humilhar (tapeino/w) será exaltado” (Mt 23.12) (Ver: Pv.29.23).

 

Um desafio para todos nós, é aprender a viver em toda e qualquer situação: em fartura e carência, em honra e humilhação. Paulo escreveu aos filipenses compartilhando o seu aprendizado, revelando o poder que não provém de homem algum; por isso, por entre as grades da prisão romana, encontramos o seu brado de vitória, amparado no poder fortalecedor de Deus:

 

Aprendi (manqa/nw)[8] a viver contente (au)ta/rkhj)[9] a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado (tapeino/w), como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância, como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece (Fp 4.11-13).

 

Quanto ao mais, não tenhamos pretensão à grandeza e honraria, humilhemo-nos diante de Deus, e Ele mesmo, conforme a Sua sábia e soberana vontade, nos exaltará. Neste sentido Tiago nos instrui: Humilhai-vos (tapeino/w) na presença do Senhor, e ele vos exaltará” (Tg 4.10/1Pe 5.6).

 

Não sejamos pródigos em reivindicar nossos direitos, mas estejamos prontos a cumprir nossos deveres; não tenhamos de nós mesmos uma imagem artificialmente grandiosa, sejamos realistas em nossa dependência de Deus. O caminho para tudo isso é o da modéstia e submissão a Deus. É Ele mesmo, o Deus encarnado quem nos ensina a negar-nos a nós mesmos, aos nossos interesses e reivindicações, seguindo-O: “Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16.24).

 

Calvino, fala-nos pastoralmente:

 

A negação de nós mesmos, que tem sido diligentemente ordenada por Cristo aos seus apóstolos desde o princípio, terminará dominando os desejos de nossos corações.

Esta negação de nós mesmos não deixará lugar para o orgulho, a arrogância, a vanglória, a avareza, a licenciosidade, o amor à luxúria, ao luxo, ou qualquer outra coisa nascida do amor ao “Eu”.[10]

 

Na Carta aos filipenses, Paulo dá um tom escatológico à palavra humildade, dizendo que o nosso corpo terreno em sua condição humilde – terrena e perecível –, será na eternidade glorificado para sermos conforme o modelo de Cristo: “…. a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo de humilhação (tapei/nwsij), para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas (Fp 3.20-21).

 

Num editorial da Imprensa Evangélica, provavelmente escrito por Ashbel G. Simonton (1833-1867) em 1865, lemos:

 

Quando acordarmos em sua perfeita semelhança seremos satisfeitos com o Seu eterno amor. Quando Ele se fez homem, foi feito semelhante a nós exceto o pecado. Quando nós chegarmos a vê-lo sem nosso pecado, “seremos semelhantes a Ele; porquanto nós outros o veremos bem como Ele é” (1Jo 3.2).[11]

Considerações pontuais

  • O caminho da humildade passa necessariamente pelo reconhecimento de nosso pecado e confissão sincera diante de Deus.
  • A humildade cristã deve ser aprendida de Cristo, o Senhor da glória que, por nós, se humilhou até à morte, e morte de cruz.
  • Não devemos ter pretensão a honrarias ou reconhecimentos. Tudo que somos e temos é proveniente da graça de Deus.
  • Os nossos atos não devem ser direcionados para nos exaltar nem para humilhar o nosso próximo, antes, devem ter como elemento motivador, a glória de Deus.
  • Cultivemos a humildade de saber aprender com todos. Apolo mesmo sendo um homem eloquente e culto, soube aprender com Priscila e Áquila de forma mais completa e exata a respeito do caminho de Deus (At 18.24-26).[12]

 

Calvino escreveu com propriedade:

 

Nenhum homem será sempre um bom mestre se não revelar-se pessoalmente educável e sempre disposto a aprender; e ninguém satisfará àquele que se acha por demais imbuído da plenitude e lucidez de seu conhecimento, que crê que nada lucraria ouvindo a outrem.[13]

 

  • Não estejamos tão prontos para defender a nossa honra e dignidade, contudo, zelemos pela honra do nome de Deus.
  • A nossa humilde confiança em Deus é precedida pela honra que somente Deus por Sua graça, em Cristo, pode nos outorgar.

 

 

São Paulo, 29 de abril de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Leia esta série completa aqui.


 

[1] Veja-se: Jerry Bridges, A Vida Frutífera, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 40,41,45.

[2] Veja-se: João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.9), p. 23.

[3] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.7), p. 134-135.

[4]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa,  São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.6), p. 201.

[5]Cf. Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, 7. ed. revised and enlarged, London: Macmillan and Co., 1871, § xlii, p. 142. Ver: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, (Mateo I), v. 1,  (Mt 5.5), p. 106.

[6] K. Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 75.

[7]Martinho Lutero, Catecismo Maior: In: Os Catecismos, São Leopoldo; Porto Alegre, RS.: Concórdia; Sinodal, 1983, §§ 90-91, p. 469.

[8] Paulo usa o verbo aqui no aoristo indicativo ativo (e)/maqon), referindo-se a um aprendizado já consumado. Ele já passou pelo processo.

[9] A palavra denota a suficiência própria de quem já aprendeu a viver com contentamento com os seus próprios e parcos recursos. Paulo sabia que a sua suficiência vinha de Deus: Deus pode fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência (au)ta/rkeia), superabundeis em toda boa obra(2Co 9.8).

[10]João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 31.

[11] Imprensa Evangélica, 17/06/1865, p. 3.

[12]24 Nesse meio tempo, chegou a Éfeso um judeu, natural de Alexandria, chamado Apolo, homem eloquente e poderoso nas Escrituras.  25 Era ele instruído no caminho do Senhor; e, sendo fervoroso de espírito, falava e ensinava com precisão a respeito de Jesus, conhecendo apenas o batismo de João.  26 Ele, pois, começou a falar ousadamente na sinagoga. Ouvindo-o, porém, Priscila e Áqüila, tomaram-no consigo e, com mais exatidão (a)kribh/j  = acuradamente, estritamente), lhe expuseram o caminho de Deus(At 18.24-26).

[13]J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1996, (1Co 14.31), p. 433.

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