Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (26) 

9. Uma teologia para os peregrinos

 

Nada é firme, nada é estável entre os gentios; indivíduos que não foram instruídos na escola de Deus  o que significa a verdadeira religião. Pois oscilam a todo instante ao sabor de qualquer brisa. Assim como as folhas se movem quando o vento sopra por entre as árvores, assim também todos os que não estão enraizados na verdade de Deus oscilarão e serão lançados para frente e para trás quando algum vento começa a soprar. O decreto régio não constitui uma brisa leve, e, sim, uma violenta tempestade. Pois ninguém pode opor-se impunemente aos reis e a seus editos. Por isso, sucede que os que não se acham plantados na Palavra de Deus, e não entendem absolutamente nada do que é verdadeira piedade, são arrastados pela investida de tal pé-de-vento. – João Calvino.[1]

 

Em 5 de agosto de 1563, Calvino escreve uma carta à Madame de Coligny (Charlotte de Laval) (1530-1568), esposa do Almirante Coligny (1519-1572). Em meio a palavras de conforto e estímulo, se reporta às suas próprias enfermidades e aflições, dizendo que elas além de nos humilhar e evidenciar a nossa fraqueza, podem também servir para nos conduzir a colocar nossos olhos na misericórdia de Deus. As aflições também “servem para nós como remédios para nos purificar das infecções mundanas e remover o que é supérfluo em nós, e, como são mensageiras da morte, devemos aprender a ter um pé levantado para partir quando aprouver a Deus”.[2]

 

Somos peregrinos, estrangeiros e hóspedes neste mundo.[3] Valendo-me de uma expressão de Tchividjian, diria que somos “estrangeiros residentes”.[4] É natural que haja uma tensão em nós. Somos imperfeitos, limitados, temos nossos anseios que, por vezes, tendem a ser maximizados em meio a aspectos da nossa cultura tão convidativos e, em certo sentido, confortáveis. É necessário discernimento para que não caiamos no mundanismo intelectual e vivencial, o que inviabilizaria totalmente a nossa possibilidade de influência em nosso meio. Não podemos permitir que a nossa mente e o nosso comportamento sejam regidos pela forma mundana e pagã de pensar e agir. Ingressaríamos, assim, num ateísmo prático ou funcional.

 

O nosso problema, por vezes, é que enquanto os padrões de Deus se parecem abstratos e distantes, estamos perfeitamente aculturados aos padrões de nossa cultura que nos assediam continuamente e, portanto, se tornam tão familiares como o personagem de uma novela que se torna símbolo de algum tipo de comportamento. “Para muitos de nós, os padrões deste mundo decaído se tornaram por demais familiares, ao mesmo tempo em que os caminhos de Deus parecem distantes e estranhos”, adverte-nos Tchividjian.[5]

 

No entanto, não há destinação mais nobre e sublime do que a nossa. Somos chamados à glória de Cristo. Isso nos basta. Não como prêmio de consolação, mas, porque não temos vocação maior. O Senhor de todas as coisas, de toda a realidade visível e invisível, nos destina à glória de Seu Filho amado.

 

A teologia como uma sistematização do revelado na Palavra, tem como propósito tornar mais compreensível a plenitude da revelação[6] sendo um importante auxílio em nossa caminhada. A teologia, portanto, nada tem a dizer além das Escrituras. Ela não a substitui nem a completa, antes, deve ser a sua serva. A teologia brota dentro da intimidade da fé daqueles que cultuam a Deus e comprometem-se com a edificação da igreja.

 

A nossa teologia é sempre limitada e finita. Nunca é um edifício completo em todas as suas partes.[7] Antes, é uma tentativa humana de aproximação fiel das Escrituras, rogando a indispensável assistência do Espírito (Sl 119.18) e, por isso mesmo, sempre aberta à correção e aperfeiçoamento proveniente do estudo das Escrituras. Nesse propósito, ela apresenta uma direção humilde para os peregrinos que vivem no teatro de Deus buscando o melhor caminho para chegar ao seu destino.[8]

 

Portanto, a doutrina não é apenas para o nosso deleite espiritual e reflexivo, antes, exige de forma imperativa um compromisso de vida e obediência. “O fim de um teólogo não pode ser deleitar o ouvido, senão confirmar as consciências ensinando a verdade e o que é certo e proveitoso”, declarou corretamente Calvino (1509-1564).[9]

 

Em outro lugar:

 

Visto que todos os questionamentos supérfluos que não se inclinam para a edificação devem ser com toda razão suspeitos e mesmo detestados pelos cristãos piedosos, a única recomendação legítima da doutrina é que ela nos instrui na reverência e no temor de Deus. E assim aprendemos que o homem que mais progride na piedade é também o melhor discípulo de Cristo, e o único homem que deve ser tido na conta de genuíno teólogo é aquele que pode edificar a consciência humana no temor de Deus.[10]

 

A teologia deverá estar sempre comprometida com o conhecimento de Deus e com a promoção deste conhecimento por meio da Palavra, mediante a iluminação do Espírito. É o Espírito Quem nos conduz à Palavra e Ele mesmo nos dá a conhecer a Cristo nas Escrituras.[11] Aliás, Jesus Cristo é o cerne de toda a Escritura, devendo ser o foco de toda pregação genuinamente bíblica. A pregação que falha na exaltação de Cristo, certamente fugiu totalmente ao objetivo de genuína pregação.[12]

 

Maringá, 21 de abril de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Leia esta série completa aqui.

 


[1] João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 190.

[2]John Calvin, To Madame de Coligny, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM],  (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 655.

[3] “….os filhos de Deus, onde quer que estejam, não passam de hóspedes deste mundo. De fato, no primeiro sentido ele (Pedro), no início da Epístola, os chama de peregrinos, como transparece do contexto; aqui, porém, o que ele diz é comum a todos eles. Pois as concupiscências da carne nos mantêm enredados quando em nossa mente permanecemos no mundo e cremos que o céu não é nossa pátria; mas quando vivemos como forasteiros ao longo desta vida, não vivemos escravizados à carne” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (reprinted), v. 22, (1Pe 2.11), p. 78). “Somos estrangeiros e peregrinos neste mundo, (…) não possuímos morada fixa senão no céu. Portanto, sempre que formos expulsos de algum lugar, ou alguma mudança no suceder, tenhamos em mente, segundo as palavras do apóstolo aqui, que não temos lugar definido sobre a terra, porquanto nossa herança é o céu; e quando formos cada vez mais provados, então nos preparemos para nossa meta final. Os que desfrutam de uma vida tranquila, comumente imaginam que possuem para si um repouso neste mundo. Portanto é bom que nós, que somos inclinados a esse gênero de pândega, que somos constantemente levados de um a outro lado, tão propensos à contemplação das coisas aqui de baixo, aprendamos a volver sempre nossos olhos para o céu” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Edições Paracletos, 1997, (Hb 13.14), p. 391-392). “Quanto trazemos ainda conosco de nossa carne é algo que não podemos ignorar, pois ainda que a nossa habitação está no céu, todavia somos ainda peregrinos na terra” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 13.14), p. 462). Veja-se também: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 166; D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 367.

[4] W. G. Tullian Tchividjian, Fora de moda, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 93.

[5] W. G. Tullian Tchividjian, Fora de moda, p. 39.

[6] “A teologia representa a tentativa humana de colocar ordem nas ideias das Escrituras, organizando-as e ordenando-as para que a relação mútua entre elas possa ser melhor entendida” (Alister McGrath, Teologia para Amadores, São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 32). “A teologia consiste em associar muitas passagens sobre diversos assuntos e organizá-las em um conjunto inteligível” (Gordon H. Clark, Em Defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 20).

[7] “A teologia deve sempre ser submetida à reforma. O entendimento humano é imperfeito. Embora as construções sistemáticas de alguma geração ou grupo de gerações possam ser arquitetônicas, sempre há a necessidade de correção e reconstrução de modo que a estrutura possa vir a uma aproximação mais íntima das Escrituras e a reprodução possa vir a ser uma transcrição ou reflexo mais fiel do exemplar divino” (John Murray, O Pacto da Graça: Um Estudo Bíblico-Teológico,  São Paulo: Editora Os Puritanos, 2001, p. 8).

[8] “O objetivo da boa teologia é humilhar-nos diante do Deus trino de majestade e graça. (…) Os antigos teólogos da Reforma e da pós-Reforma estavam tão convictos que suas interpretações estavam muito distantes da majestade de Deus que eles chamavam seus resumos e sistemas de ‘nossa humilde teologia’ e ‘uma teologia para peregrinos no caminho’” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã,  São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 15). Vejam-se: João Calvino, Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.6), p. 93; John M Frame, A doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 97; Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 45.

[9]João Calvino, As Institutas, I.14.4.

[10]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos,1998, (Tt 1.1), p. 300.

[11]Calvino resumiu bem este conceito, dizendo: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens” (João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374).

[12] Quanto a este ponto, veja-se o excelente e desafiante livro de Lawson. (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013).

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