O Protestantismo Brasileiro e a Proclamação da República – Anotações jornalísticas –

1. A tolerância inicial ao Protestantismo

Os Tratados de 1810 firmados entre Brasil e Inglaterra (Tratado de Aliança e Amizade, e o de Comércio e Navegação) e a Constituição de 1824 foram fundamentais para a implantação do Protestantismo no Brasil. Com isso, abriram-se as portas para o ingresso de imigrantes que traziam consigo sua cultura repleta de valores de uma religião até então desconhecida.

Nesta esteira vieram depois os missionários que objetivavam não apenas pastorear imigrantes, mas, sim, evangelizar os nativos. Neste afã, se valeram de distribuição de Bíblias – trabalho já documentado em 1816 –, panfletos, sermões, pregações, conversas, polêmicas etc. Aos poucos, o protestantismo foi adquirindo o seu espaço próprio, enfrentando, é verdade, perseguições episódicas, mas, na medida do possível, recorria à lei e, em geral seus recorrentes eram atendidos pelas autoridades constituídas.

Houve, por certo, um jogo de força por parte dos protestantes, omissão de certas autoridades e até mesmo interesse de parte do clero brasileiro e de alguns intelectuais (republicanos e positivistas) na implantação do protestantismo. Deste modo, os templos foram surgindo e a igreja se desenvolvendo, deixando aos poucos de ser uma coisa obscura para ter de fato uma boa projeção na sociedade, atingindo homens do campo e da cidade, pessoas de vida modesta e intelectuais.

No Brasil imperial não houve um “rio de sangue” resultante de uma perseguição estrutural por parte da igreja romana e do povo. Sem dúvida, houve perseguições – e por vezes intensa –, contudo sempre localizada e não institucionalizada. A mentalidade brasileira tinha um espírito de tolerância resultante em grande parte da sua própria constituição étnica, da miscigenação de povos e raças.

Como a Inquisição não teve penetração no Brasil, exceto as visitas do Santo Ofício, isto contribuiu para formar uma mentalidade mais tolerante entre os católicos. Onde a Inquisição era voraz em suas práticas, os seus horrores dominavam também as mentes. Nesses países, o protestantismo não teve como florescer senão tardiamente. O Brasil não conheceu de forma plena a força dos tentáculos da Inquisição, ainda que tenha se ressentindo de sua influência de modo especial na Bahia, Grão-Pará (Atual Pará) e Pernambuco.

O Brasil contou também com outro ingrediente fundamental entre os intelectuais: o liberalismo. Este, como filho legítimo do Iluminismo – tão expressivo em suas conquistas na Europa –, teve preponderância no final do século XVIII em Portugal. Onde o Iluminismo teve ascensão, o espírito de tolerância era um ingrediente natural e compulsório. Ele não tardou a manifestar os seus efeitos em Portugal, especialmente por intermédio do marquês de Pombal.

Como muitos dos Constituintes brasileiros (1823) estudaram em Coimbra após a reforma pombalina (1759), estes receberam uma influência iluminista e liberal que se manifestou em sua perspectiva religiosa.

Outro elemento relevante foi o econômico. Isto é por demais evidente em diversos discursos dos parlamentares na Constituinte de 1823.

O fato é que a Constituição de 1824 ofereceu a base legal para a implantação do culto protestante no Brasil e para a prática de culto acatólico por parte de brasileiros.

2. Mais do que tolerância: Igualdade.

Num passo seguinte, após o estabelecimento do protestantismo no Brasil, percebemos que estes desejavam não apenas a tolerância, mas, sim, a igualdade na liberdade dos cultos. Assim, quando a República foi proclamada, na semana seguinte a Imprensa Evangélica traz um editorial entusiasta, com o título: “Estados Unidos do Brazil”[1]. Nele o articulista diz:

 

Acabamos de presenciar o acontecimento mais estupendo e extraordinário que se tem dado no século presente. Já está consumado, já ninguém duvida de sua realidade, mas tão maravilhoso ele se apresenta aos nossos olhos, que mais parece um sonho ilusório do que um fato real e acabado.

 

No entanto, o articulista explica que o acontecimento estupendo não se refere simplesmente à mudança na forma de governo, mas, ao fato digno de orgulho: O Brasil “ter realizado a reforma mais radical sem deixar perceber a mínima alteração na ordem pública, e no sossego da nação”. Neste clima de profunda transformação e ao mesmo tempo de paz, não houve mudança nem “oscilação no câmbio, que se altera a qualquer queda ou mudança no ministério!”.

O autor encerra o artigo entusiasmado com a República e com as novas perspectivas de liberdade religiosa:

 

Entretanto, vendo no governo atual ordem, liberdade e garantia, e esperando dele ainda a mais completa liberdade de cultos, não pode deixar de aderir de coração à nova forma de governo e prestar-lhe todo o seu apoio.
Todos os acatólicos, que no antigo regime apenas tinham uma tolerância para o seu culto e isto, para humilhação, em casa sem forma exterior de templo, ficarão sumamente satisfeitos vendo agora surgir a mais plena liberdade de cultos ou antes a plena liberdade de cultos que é o que deve ser decretado pela república [2].

 

A antiga esperança torna-se agora uma exigência. A própria monarquia já se dispusera a fazer tal abertura: “O governo provisório da República não deve demorar por mais tempo o decreto da abolição da união da igreja com o estado, estabelecendo a plena igualdade de cultos no Brasil” [3].

Toca então, no brio dos republicanos:

 

Ora, como poderá o governo da República sustentar por mais tempo a grande injustiça, ou antes o odioso monopólio, que até a própria monarquia já não podia mais suportar?
O verdadeiro governo republicano deve ser a última expressão da liberdade, da igualdade da fraternidade; enquanto porém se vir ainda uma religião privilegiada e cheia de regalias para uns, e as outras apenas toleradas para outros enquanto se observar que para uns, o estado faz a despesa do culto, e para outros nega-lhes até o direito de terem uma igreja com forma exterior de templo, quando ambos pagam, na mesma razão, os direitos para as despesas da nação; enquanto se vir esta injustiça revoltante de uns quererem ter mais direitos de que os outros, não se pode admitir que haja liberdade, igualdade e fraternidade no Brasil [4].

 

O articulista defende a manutenção da igreja pelos próprios fiéis, sem verbas estatais:

 

Cada religião deve manter-se à custa de seus próprios fiéis; aqueles que desejam ver nos templos ricos parâmetros, luxuriosos enfeites, e deslumbrantes decorações, abram a bolsa e paguem convenientemente esta regalia, e não queiram que os cofres do estado, que contém só o suor dos que trabalham, a satisfaçam esta despesa vaidosa e inteiramente desnecessária.
A manutenção de cada culto deve correr exclusivamente por conta de seus respectivos crentes; cada cidadão deve pagar aquilo de que goza; obrigar, porém, a todos os cidadãos a concorrerem para o subsídio de um culto que só parte da nação aceita, é isto uma injustiça revoltante, é uma tirania que a República não deve de modo algum tolerar por mais tempo [5].

 

O Editorial da Imprensa de 07/12/1889 reafirma a sua confiança na República brasileira e vaticina o futuro católico romano:

 

Estamos satisfeitos com o advento da República porque podemos ter a liberdade e justiça, que reclamamos há muitos anos [6].
Temos confiança nos homens que hoje dirigem os altos negócios do Estado e esperamos ter em breve, plena liberdade para os nossos cultos e sabemos que o romanismo perderá grande parte do prestígio que nunca soube merecer [7].

 

No mesmo editorial, conclama o povo evangélico a solidificar a liberdade esperada com a proclamação do Evangelho:

 

A nossa tarefa não está completa. (…) Às Igrejas Evangélicas compete o trabalho de lançar as bases da liberdade da pátria sobre a Rocha dos séculos, para que seja conhecida a religião pura sem a qual não pode haver verdadeira liberdade em país qualquer [8].
Por mais que proclamem a liberdade e a fraternidade no Brasil ou em outro país qualquer, onde não haja uma aceitação geral da Sagrada Escritura, de seus princípios divinos e de sua moral pura e severa, não pode haver uma República bem assentada e bem dirigida [9].

 

A Imprensa continuou a sua empreitada pró liberdade de Culto. Na edição de 14/12/1889, se propõe a mostrar que o católico romano de fato – aquele que segue os mandamentos da “Santa Madre Igreja” –, é uma minoria dos 15 milhões de habitantes do Brasil [10].

No Editorial de 21 de dezembro de 1889, a Imprensa já se torna mais moderada em seu entusiasmo, pedindo às igrejas que orem pela República: “Atualmente o horizonte está carregado. Assinalamos tudo isto em nossas colunas, não para causar desânimo no espírito de qualquer pessoa, mas para chamar as igrejas evangélicas à oração” [11].

Na última edição da Imprensa de 1889, há um rememorar dos fatos que marcaram de modo especial aquele ano, pelos quais a igreja deve agradecer a Deus. Um deles é a República, para a qual pede-se oração bem como para o Governo provisório [12].

Em 24 de fevereiro de 1891 é promulgada a “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”. No Art. 72, “Declaração de Direitos”, lemos:

 

§ 2º Todos são iguais perante a lei. (…)
§ 3º Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bem, observadas as disposições do direito comum.
§ 7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados.
§ 28. Por motivo de crença ou função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem se eximir de cumprimento de qualquer dever cívico.

O desejo acalentando durante tantos anos fora agora realizado: separação entre Igreja e Estado e a total liberdade religiosa. No entanto, perseguições se intensificariam a partir daí. Mas, essa parte foge ao corte deste post e da competência deste articulista.

 

São Paulo, 13 de novembro de 2018.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1] Imprensa Evangélica, 23/11/1889, p. 369-370.
[2] Imprensa Evangélica, 23/11/1889, p. 370. No periódico metodista encontramos alegria semelhante. Veja-se: Expositor Christão, 01/12/1889, p. 1. Para uma análise mais ampla do contexto social, político, econômico e intelectual deste período, veja-se: José Murilo de Carvalho, Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 15-41.
[3] Imprensa Evangélica, 23/11/1889, p. 370.
[4] Imprensa Evangélica, 30/11/1889, p. 377.
[5] Imprensa Evangélica, 30/11/1889, p. 378.
[6] Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 385.
[7] Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 386.
[8] Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 385.
[9] Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 385.
[10] Imprensa Evangélica, 14/12/1889, p. 393-394.
[11] Imprensa Evangélica, 21/12/1889, p.401.
[12] Imprensa Evangélica, 28/12/1889, p. 410.

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