O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (25)

5.1.3. A Sabedoria do Espírito em nossa cotidianidade (Continuação)

Mesmo sabendo da real necessidade que temos da sabedoria espiritual concedida por Deus, isso não significa que devamos abdicar de nossa capacidade de pensar conforme Deus nos concedeu. O pensamento e a fé devem caminhar juntos. Não estamos estabelecendo paradoxos. Antes, o que estou afirmando é que o pensar é um imperativo fundamental de nossa condição de imagem de Deus. Como homens e mulheres criados à imagem de Deus devemos nos valer dessa capacidade tão cara concedida a nós.

Precisamos aprender que a fé não elimina a nossa responsabilidade de pensar. Pensar não exclui a nossa fé. Ambas as atitudes devem caracterizar a vida do cristão a fim de que a nossa fé seja compreensível e a nossa razão seja guiada pela fé. A nossa fé e a nossa inteligência devem caminhar de mãos dadas em submissão a Deus.

O pensar confuso, destituído de fundamento, leva-nos à confusão. O seu repetir e propagar cria uma estagnação social em todos os níveis. A confusão intelectual é uma das raízes de repetições infindáveis que sufoca a possibilidade de crescimento, ajudando a perpetuar o erro, o equívoco e o que é obsoleto em sua constituição e prática.

João Calvino (1509-1564), o maior expoente da Reforma Protestante, escreveu com propriedade:

Chamo serviço não somente o que consiste na obediência à Palavra de Deus, mas também aquele pelo qual o entendimento do homem, despojado dos seus próprios sentimentos, converte-se inteiramente e se sujeita ao Espírito de Deus. Essa transformação, que o apóstolo Paulo chama renovação da mente [Rm 12.2], tem sido ignorada por todos os filósofos, apesar de constituir o primeiro ponto de acesso à vida. Eles ensinam que somente a razão deve reger e dirigir o homem, e pensam que só a ela devemos ouvir e seguir; com isso, atribuem unicamente à razão o governo da vida. Por outro lado, a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste, para dar lugar ao Espírito Santo, e que por Ele seja subjugada e conduzida, de modo que já não seja o homem que viva, mas que, tendo sofrido com Cristo, nele Cristo viva e reine.[1]

Não vivemos em um mundo de aparências. A realidade é acessível e Deus deseja que a conheçamos. O mundo real foi revelado a nós. Deus nos concedeu meios para conhecê-lo dentro do palco maravilhoso de sua glória revelado na Criação.

O Senhor nos dá compreensão, nos faz ter entendimento de toda a realidade. O real não é uma mera utopia, antes, é acessível e, portanto, conhecível. Se não tivéssemos acesso à realidade, seria, por exemplo, impossível escrever história e, da mesma forma, estudá-la. Qual seria o sentido disso além de um exame psicológico do historiador?[2]

Não vivemos num mundo de imagens, mas, de realidade, por mais desagradável que essa possa se configurar a nós em determinadas circunstâncias. No entanto, precisamos refletir a respeito. Não basta ler, é preciso refletir. O que me faz pensar que o caminho para a compreensão das coisas é um pensar intenso, humilde e submisso a Deus. Nem sempre as coisas se mostram a nós de forma clara e evidente. Precisamos pensar a respeito. O pensar e o repensar podem fazer parte de um processo cognitivo abençoador de considerar, compreender e viver de acordo com o propósito de Deus.

Todo conhecimento parte de um pré-conhecimento que é-nos fornecido pela nossa condição ontologicamente finita e pelas circunstâncias temporais, geográficas, intelectuais e sociais dentro das quais construímos as nossas estruturas de conhecimento. Afinal, a humanidade atesta a sua humanidade; a criatura demonstra a sua condição. Não existe neutralidade existencial porque de fato, não há neutralidade ontológica.[3] Esta realidade pré-julgadora na maioria das vezes é-nos imperceptível. O que pensamos determina a nossa visão e compreensão do objeto. Numa relação de conhecimento, o cérebro influencia mais o olho do que o olho ao cérebro.

É por isso que a visão que tenho, ainda que respaldada por forte elemento referente, é minha visão, com suas particularidades. Em geral, o que me privilegia, me delimita. Em outras palavras: o que me possibilita uma visão mais adequada de um ponto, é justamente o que dificulta a visão mais ampla de outros. É por esse, entre outros motivos, que a ciência é um saber social, constituído de várias visões, de diversos saberes que se completam,[4] se transformam e se aperfeiçoam.

A realidade se mostra a nós com contornos próprios delineados não simplesmente pelo que ela é, mas, também, pelos nossos olhos que a enxergam e pinçam fragmentos desta realidade conferindo-lhes novas configurações com cores mais ou menos vivas, atribuindo-lhes valores muitas vezes bastante distintos dos reais.

Desta forma, a avaliação cristã de todas as coisas deverá ser crítica e construtiva. A cosmovisão do ser pensante, por mais apaixonante e intensa que seja,[5] não pode estar acima de uma avaliação. O seu produto não é simplesmente produto de seu gênio autônomo, desejado, porém, inexistente. Aliás, inclino-me a crer que o seu gênio é profundamente modelado pelo “clima” ou “atmosfera” de sua época, pelas cores com as quais a realidade é pintada e os acordes que dão o tom aos valores hodiernos, ainda que isso não determine uma única forma de apreensão e expressão, como sublinha Wölfflin (1864-1945).[6] Aliás, nem um de nós pode ser separado da história e da sua história.[7]

São Paulo, 26 de novembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 184 (Veja-se a nota 5 in loc.).

[2] Sei que a narrativa histórica não é objetiva e que o historiador é fundamental no diálogo com os “fatos”. Para uma abordagem mais detalhada sobre o assunto, veja-se: Hermisten M. P. Costa, Introdução à metodologia das ciências teológicas, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015, p. 155-208.

[3]Vejam-se: H.R. Rookmaaker, A Arte não precisa de justificativa, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 39; H.R. Rookmaaker, Arte Moderno y la Muerte de una Cultura, Barcelona: CLIE; Publicaciones Andamio, 2002, p. 285-286.

[4] “A ciência é obra coletiva, porquanto supõe vasta cooperação de todos os sábios, não somente de dada época, mas de todas as épocas que se sucedem na história” (Émile Durkheim, Educação e Sociologia,5. ed. São Paulo: Melhoramentos, (s.d.) p. 35).

[5]“Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração que pode ser expresso como uma estória ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos” (James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 179). “A essência de uma cosmovisão reside profundamente nos recônditos interiores do eu humano”(Ibidem.,p. 180).“Cosmovisões são uma questão do coração”(Ibidem., p. 181).“Se havemos de ter uma cosmovisão cristã, buscaremos eliminar as contradições em nossa cosmovisão”(Ibidem., p. 193).“Vivemos a nossa cosmovisão ou ela não é a nossa cosmovisão” (Ibidem., p. 195).

[6] Heinrich Wölfflin, Conceitos Fundamentais da História da Arte, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, (2ª tiragem) 2006, p. 331ss. No campo da história, tempos percepções semelhantes. Destaco dois autores: Jacob Burckhardt (1818-1897) – um dos maiores historiadores do século XIX – referindo-se à sua obra magna sobre o Renascimento (1855), admitiu que: “….os mesmos estudos realizados para este trabalho poderiam, nas mãos de outrem, facilmente experimentar não apenas utilização e tratamento totalmente distintos, como também ensejar conclusões substancialmente diversas” (Jacob Burckhardt, A Cultura do Renascimento na Itália: Um Ensaio,São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 21). Do mesmo modo, um historiador contemporâneo, Delumeau: “Identificar um caminho não implica achá-lo sempre belo, como não implica que não haja outro possível” (Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento,Lisboa: Editorial Estampa, 1984, v. 1, p. 21).

[7]“Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associados à cor, credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular. O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra” (Peter Burke, Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro: in: Peter Burke, org. A Escrita da História: novas perspectivas, São Paulo: UNESP., 1992, p. 15.).

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