O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (17)

2) A pregação no período posterior

No período pós-apostólico as homilias consistiam numa simples exposição popular de alguma passagem das Escrituras lida na Congregação. Esta exposição, que tinha um caráter informal – tendo pouco ou nada a ver com a retórica grega –, era acompanhada de reflexões e exortações morais. A descrição de Justino (100-167 AD) feita por volta do ano 150, oferece-nos uma ideia de como era o culto e a pregação naquele período:

No dia que se chama do sol (domingo),[1] celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos apóstolos (quatro Evangelhos)[2] ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo: ‘Amém’. Vem depois a distribuição[3] e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos seus ausentes[4] pelos diáconos.[5]

Com o passar do tempo, a pregação cristã foi se tornando mais elaborada, deixando gradativamente o seu caráter até certo ponto informal. Esta transformação deve-se fundamentalmente aos seguintes motivos:[6]

1) A disseminação do Evangelho entre os gentios: No mundo greco-romano a Retórica era a coroa da educação liberal, ganhando forte ênfase no quarto século. Pois bem, se um pregador desejasse ter um ouvido benigno para com a sua mensagem, num mundo com semelhante ênfase na oratória, seu estilo seria fundamental.

2)    A Conversão de homens que já tinham sido treinados na Retórica: Destes convertidos, muitos se tornaram pregadores, usando naturalmente seus dotes oratórios e sua formação retórica na proclamação do Evangelho.

3) Ênfase na Retórica: Este argumento é decorrente do anterior. Ainda que no primeiro século a separação entre a pregação cristã e a retórica tivesse uma nítida distinção (Veja-se: 1Co 2.4,5), a partir do segundo século as diferenças tornaram-se cada vez mais tênues. Mesmo a Retórica não ocupando o mesmo lugar de destaque como, por exemplo, no tempo de Quintiliano (c. 35-100 AD), ela era enfatizada nas Escolas. No início da Idade Média, a Retórica teria um novo alento, quando a partir do V século, ela viria constituir-se juntamente com a Gramática e a Lógica, o trivium – um curso preparatório para o quadrivium (Aritmética, geometria, astronomia e música). O Trivium e o Quadrivium constituíam as sete Artes Liberais. (“Artes libero dignae”);[Hmpc1] [Hmpc2]  isto é: História, Retórica, Lógica, Aritmética, Música, Astronomia e Geometria.[Hmpc3] 

4) O Declínio dos pregadores Judeus-Cristãos e Judeus: Temos aqui, a meu ver, mais um efeito dos dois primeiros motivos. A pregação do estilo judeu cedeu lugar a uma pregação mais elaborada, modelada ao senso estético grego e romano.

Dentre os homens que se converteram ao Cristianismo e que deram contribuição à arte da pregação, destacamos: Clemente de Alexandria (c. 150-c.215); Tertuliano (c. 150-c. 220); Orígenes (185-254); Lactâncio (c. 240-c.320); Cipriano (200-285); Basílio Magno (c. 330-379); Arnobius (IV séc.), mestre de Retórica em Sicca, na província Romana da África; Crisóstomo (c. 347-407); Gregório de Nissa (c. 335-394); Ambrósio (340-397); João de Antíoco (347-407) e Agostinho de Hipona (354-430).

 Foi Orígenes quem iniciou a caminhada de transição da “homilia” informal, para o sermão mais elaborado. Todavia, quem exerceu maior influência na pregação cristã deste período, foi Agostinho, na sua obra, De Doctrina Christiana(397-427), que tomando Paulo como “modelo de eloquência”,[7] seguiu de perto a Aristóteles e Cícero. Estabeleceu uma relação entre os princípios da teoria retórica com a tarefa da pregação, fazendo as adaptações necessárias.[8] Insistiu – seguindo a Cícero –, que a pregação tem três propósitos: Instruir(docere); Agradar(delectare) e Persuadir(flectere), enfatizando este último.[9]

Agostinho também deu ênfase à necessidade de haver um acordo entre a vida e as palavras do pregador, bem como a necessidade de oração como uma preparação para o sermão:

Quem quiser conhecer e ensinar deve, na verdade, primeiramente aprender tudo o que é preciso ensinar, e adquirir o talento da palavra como convém a um homem da Igreja. Mas no momento mesmo de falar, que pense nestas palavras do Senhor, que se aplicam particularmente o coração bem disposto: “Quando vos entregarem não fiqueis preocupados em saber como ou o que haveis de falar, porque não sereis vós que estareis falando naquela hora, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós”.[10]

Maringá, 19 de novembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Cf. Justino de Roma, I Apologia, 67.7. Essa prática tornou-se comum no Novo Testamento, perpetuou-se na Igreja Cristã e, já no segundo século encontramos farto material atestando o culto dominical. (Vejam-se: Didaquê, XIV.1;The Epistle of Barnabas, XV. In: Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 1, p. 147. Cartas de Santo Inácio de Antioquia, Petrópolis, RJ.: Vozes, ã 1970, Carta aos Magnésios, 9, p. 53).

[2]Esta expressão de Justino refere-se aos Evangelhos, conforme ele mesmo diz: “Foi isso o que os Apóstolos nas Memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos….” (Justino de Roma, I Apologia,66.3).

[3] A distribuição dos elementos da Ceia não era feita indistintamente, mas somente aos crentes, conforme ele mesmo explica: “Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo ensinou” (Justino de Roma, I Apologia,66.1). Critério semelhante, temos no Didaquê,IX.5: “Mas ninguém coma nem beba de vossa Ação de Graças, a não ser os que foram batizados no nome do Senhor. Pois que, a respeito disto, também disse o Senhor: ‘Não deis aos cães o que é santo’.”.

[4] Calvino, mesmo sem aludir a esta passagem, demonstra ter restrições a essa prática. (Veja-se: J. Calvino, As Institutas,IV.17.39).

[5] Justino de Roma, I Apologia,67.

[6] Vejam-se: John A. Broadus, O Preparo e Entrega de Sermões, p. 9-10; Ralph G. Turnbull, Baker’s Dictionary of Practical Theology, 7. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1980, p. 51-52.

[7]Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, IV.7.15. p. 228.

[8] Veja-se: Por exemplo, Agostinho, A Doutrina Cristã, IV.19.35. p. 248-249; IV.19.37. p. 250-251

[9]Agostinho, A Doutrina Cristã, IV.12.27ss. p. 239ss.

[10]Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991,IV.16.32. p. 245.


 [Hmpc1]

 [Hmpc2]

 [Hmpc3](Retirei este parágrafo porque o mesmo seria adequado apenas na tratativa sobre o crescimento da Igreja) Os testemunhos históricos que temos a partir do segundo século, informam-nos que apesar de perseguidos, os cristãos davam o seu testemunho, sendo muitas vezes martirizados – aliás a palavra grega “mártir” significa “testemunha” –, vemos também que o seu comportamento era contagiante através de uma conduta diferente, que procurava se pautar pela Palavra de Deus.

     Aqui torna-se oportuno transcrever parte de um documento anônimo, escrito ao que parece no final do 2° século, intitulado “Carta a Diogneto”,que consistia numa explicação do pensamento, conduta e fé cristã, dirigida a um pagão que, impressionado com o testemunho cristão, queria saber mais a respeito desta religião.

     “Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis; amam a todos e são perseguidos por todos (…). Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio”.

Apesar de uma história de discriminação, perseguição e martírio, o Cristianismo cresceu… No IV século, o Imperador Constantino (280-337) promulgou o Édito de Milão (313), no qual declarava o fim das perseguições aos cristãos e a restituição de suas propriedades. Em 330, Constantino inaugurou a cidade de Constantinopla transferindo a capital de Roma para a nova cidade. Numa carta a Eusébio, bispo de Cesaréia, Constantino pedindo com urgência a preparação de 50 Bíblias para a nova capital, revela algo a respeito do crescimento do número de cristãos e de Igrejas: “Com a ajuda da providência de Deus, nosso Salvador, são muitíssimos os que se hão incorporado à santíssima Igreja na cidade que leva o meu nome. Parece, pois, mui conveniente que, respondendo ao rápido progresso da cidade sob todos os aspectos, se aumente também o número de Igrejas….”. O cristianismo tornara-se popular, sendo seus cultos muito concorridos.

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