O PENSAMENTO GREGO E A IGREJA CRISTÃ: ENCONTROS E CONFRONTOS – ALGUNS APONTAMENTOS (1)

Introdução

Esse texto padece de uma dificuldade metodológica que pretendo explicitar de início: o pensamento grego, mesmo no período clássico, não é uma forma monolítica de interpretar e pensar a realidade. Há épocas diferentes, questões e ênfases distintas.

Além disso, há Escolas filosóficas com pressuposições distintas e preocupações díspares. Assim sendo, aqui temos que ter cautela para não incorrermos no equívoco generalizante e, por isso, reducionista, de tomar um pensamento aqui e outro ali e presumir, apressadamente, termos a amostragem característica do pensamento grego.

Como sabemos, nem sempre, por exemplo, o pensamento individual de Xenófanes (c. 570-c.460 a.C.), Heráclito (c. 540-480 a.C.), Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) representa o modo habitual ou mesmo majoritário dos gregos verem a realidade.[1]

Tendo isso em vista, sabendo dos perigos, analisemos com cautela o que temos pela frente.

Ainda uma vez, antes de prosseguir
e deitar o olhar para diante,
ergo, na minha soledade, as mãos
para ti, em quem me refugio,
a quem no mais fundo do coração
consagrei solenemente altares,
para que em todos os tempos
não cesse de chamar-me a tua voz.

Depois se acende, gravada profundamente,
a palavra: ao Deus desconhecido!
A ele pertenço, ainda que entre a turba dos malfeitores
eu tenha até agora permanecido.
A ele pertenço, embora sinta os laços
que, em meio ao combate, me puxam para baixo
e que, embora eu tente subtrair-me,
me arrastam para o seu serviço.

Quero conhecer-te, ó Desconhecido
que penetras até o centro de minha alma,
que atravessas minha vida como uma tormenta,
incompreensível, aparentado comigo.
Desejo conhecer-te, e, inclusive, servir-te.

Nietzsche (1844-1900).[2]

1. A religião como fenômeno  universal: teísmo e ateísmo

J.J. Rousseau (1712-1778), em seu Contrato Social,  afirma que “nenhum povo já perdurou ou perdurará sem religião; se não tiver recebido uma crença religiosa, teria que criá-la para não ser destruído em pouco tempo”.[3] De fato, a Religião é um fenômeno universal. A Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Arqueologia e a História, entre outras ciências, têm demonstrado de forma convincente que a religião está presente em todas as culturas antigas e modernas. Por isso, podemos falar do homem como sendo um ser religioso.[4] O homem procura desesperadamente um significado para a sua vida, tentando encontrar um equilíbrio entre os seus extremos existenciais: a vida e a morte, o ser e o nada, a ordem e o caos. Dentro desta perspectiva, o caminho religioso é quase que invariavelmente seguido pelo homem na busca de significado para o seu existir. A experiência religiosa é universal, assumindo características pessoais e, ao mesmo tempo universais. Do mesmo modo que minha experiência é particular e pessoal, ela tem em si os mesmos ingredientes da experiência do outro: todos desejam o mesmo equilíbrio, ainda que não pelos mesmos caminhos e com nomes diferentes. A religião é um apanágio do ser humano.

O etnólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942), inicia o seu livro Magia, Ciência e Religião, com esta afirmação: “Não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião nem magia”.[5]

Na Antiguidade, Cícero (106-43 a.C.), Plutarco (50-125 A.D) e outros, constataram este fato. Cícero observou que não há povo tão bárbaro, não há gente tão brutal e selvagem, que não tenha em si a convicção de que há Deus.[6]

Calvino (1509-1564) acentua que,

A aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a reconhecerem que algum criador existe. (…) Certamente que a religião nem sempre teria florescido entre todos os povos, se porventura as mentes humanas não se persuadissem de que Deus é o Criador do mundo.[7]

     Em outro lugar: “Portanto, até os próprios ímpios são para exemplo de que vige sempre na alma de todos os homens alguma noção de Deus”.[8]

     Mas, o que significa religião? Ainda que não possamos responder a questão apenas pela simples explicação da palavra, acreditamos que esta pode fornecer-nos algumas pistas. A palavra “religião” é de origem incerta. Cícero (106-43 a.C.), associa a palavra ao verbo latino “relegere” (reler, ler com cuidado).[9] Cícero, assim explicou: “Aqueles que cumpriam cuidadosamente com todos os atos do culto divino e por assim dizer os reliam atentamente foram chamados de religiosos de relegere, como elegantes de eligere, diligentes de diligere, e inteligentes de intellegere; de fato, nota-se em todas estas palavras o mesmo valor de legere que está presente em religião”.[10] Deste modo, a religião seria o estudo diligente acompanhado da observância das coisas que pertencem aos deuses.[11]

No entanto, a explicação mais famosa, relaciona a origem da palavra à “religio” e “religare” (religar) trazendo a ideia embutida de “religar-se com Deus”. Essa explicação encontra-se em Lactâncio (c. 240-c. 320) – Divinae Institutiones, (c. 304-313) e Agostinho (354-430) – De Civitate Dei[12] e De Vera Religione.[13]

Lactâncio que discorda da explicação de Cícero, diz:

Nós dissemos que o nome religião (religionis) é derivado do vínculo de devoção, porque Deus ligou o homem a Ele, e o prende por devoção; porque nós O temos que servir como um mestre, e ser-Lhe obediente como a um pai.[14]

Agostinho, após falar do que não devemos adorar, afirma: “Que a nossa religião nos ligue, pois, ao Deus único e onipotente”.[15]

Thomas Hobbes (1588-1679) em 1651, vai um pouco além, concluindo que a religião é exclusividade do ser humano:

Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião[16] se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra em outras criaturas vivas.[17]

A religião além de inescapável, é modeladora da cultura, sendo, portanto, uma questão de fé e vida. O sentimento religioso está presente em nossas percepções e construções, seja em que nível for. O fenômeno religioso fundamenta-se no fato de que o homem foi criado à imagem de Deus e, também, ao fato de que Deus se revelou sendo possível conhecê-lo.[18] A religião começa, em sua essência, em Deus, o Infinito-Pessoal, que se revela vindo ao nosso encontro.[19]

São Paulo, 31 de outubro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


[1] Devo parcialmente esta observação a Forrester. (W.R. Forrester, Christian Vocation: studies in faith and work, London: Lutterworth Press, 1951, p. 121).

[2]F. Nietzsche,  Ao Deus Desconhecido. Poesia escrita quando Nietzsche tinha menos de vinte anos. Citada por Georg Siegmund,  O Ateísmo Moderno: História e Psicanálise, São Paulo: Loyola, 1966, p. 264.

[3]J.J. Rousseau, Sobre o Contrato Social (primeira versão): In: Rousseau e as Relações Internacionais, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003,  III.1, p. 167. Esta versão esboçada, Manuscrito de Genebra,  é de 1761. Na versão definitiva, publicada em 1762, a questão da religião civil é tratada no capítulo IV. Veja-se: J.J. Rousseau,  O Contrato Social e outros escritos,  São Paulo: Cultrix, 1975, IV.8, p. 126-134.

[4]“É uma verdade indiscutível que o sentimento religioso é conatural ao ser humano, pois não existe nenhuma sociedade primitiva ou civilizada, que não acredite em seres sobrenaturais ou que não pratique alguma forma de culto” (Salvatore D’Onofrio, Metodologia do trabalho intelectual,São Paulo: Atlas, 1999, p. 13). Geisler e Feinberg dizem que o “o homem é incuravelmente religioso” (Norman L. Geisler; Paul D. Feinberg, Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã,São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 269, 278). Do mesmo modo: Ronald H. Nash, Questões últimas da vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 19.

[5] Bronislaw Malinowski, Magia, ciência e religião,Lisboa: Edições Setenta, (s.d.), p. 19.

[6]Veja-se: Cicero, The Nature of the Gods,England: Penguin Books, 1972, I.17; II.4

[7] João Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299. Em outro lugar: “…. tão belo é seu arranjo [dos céus], e tão excelente sua estrutura, que todo seu arcabouço é declarado como o produto das mãos de Deus” (João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 102.25), p. 585).

[8] João Calvino, As Institutas,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, I.3.2.

[9] Cicero, The nature of the Gods, II.72-74. p. 152-153.

[10]Cicero, The nature of the Gods, II.28.

[11]Cf. Religio: In: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek theological terms,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, © 1985, p. 262.

[12]Agostinho, A Cidade de Deus,2. ed. Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Federação Agostiniana Brasileira, 1990, (parte I), X.3. p. 373. Veja-se  também, Ibidem.,X.32. p. 410-414.

[13] Agostinho, A Verdadeira Religião, São Paulo: Paulinas, 1987.

[14]Lactantius, The Divine Institutes,IV.28. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers,Peabody, Massachusetts: Hendrickson publishers, © 1994, v. 7, p. 131.

[15] Santo Agostinho, A verdadeira religião,São Paulo: Paulinas, 1987, 55. p. 145.

[16]Expressão já utilizada por Calvino (Ver: As Institutas,I.5.1).

[17]Thomas Hobbes, Leviatã,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 14), 1974, p. 69.

[18] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 302.

[19]        “Um dos ensinamentos basilares do cristianismo é que Deus decidiu vir aonde estamos. Em vez de esperar  que o encontremos, ele vem até nós. Há quem pense que a religião é como subir uma escada para encontrar Deus. Contudo, o cristianismo afirma que Deus resolveu descer aquela escada para nos encontrar e depois nos levar para casa exultantes”  (Alister McGrath, O Deus desconhecido, São Paulo: Loyola, 2001, p. 58).

4 thoughts on “O PENSAMENTO GREGO E A IGREJA CRISTÃ: ENCONTROS E CONFRONTOS – ALGUNS APONTAMENTOS (1)

  • 10 de novembro de 2019 em 09:07
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    Não tem jeito de querer entender a religião e o ser religioso sem buscar o conhecimento praticado na história do pensamento do homem . Essa discussão talvez seja um dos frutos proveniente da Árvore do conhecimento que o Criador plantou e que comemos mas ainda não distinguimos o gosto .
    Muito bom o estudo e estou compartilhando com amigos .
    Que Deus continue te dando lucidez e capacidade de explicar tão fácil .

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  • 18 de abril de 2022 em 08:27
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    A religião mesmo no inconsciente. Muitos a praticam, mas não sabem.
    Comecei a ler, mas já estou ansioso para ler os demais.

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