O Choro Bem-Aventurado: Uma emoção Contracultural (Mt 5.4) (4)

2) Pecado, disciplina e arrependimento

 

1) Saul, quando percebe a injustiça que cometia contra Davi o perseguindo para matá-lo, chorou de remorso, ainda que isso não tenha mudado a situação permanentemente: “

 

13 Dos perversos procede a perversidade, diz o provérbio dos antigos; porém a minha mão não está contra ti. 14 Após quem saiu o rei de Israel? A quem persegue? A um cão morto? A uma pulga? 15 Seja o Senhor o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão. 16 Tendo Davi acabado de falar a Saul todas estas palavras, disse Saul: É isto a tua voz, meu filho Davi? E chorou Saul em voz alta. (1Sm 24.13-16).      

 

2) Quando Davi foge de Jerusalém porque seu filho queria matá-lo termina por chorar enquanto caminha: “Seguiu Davi pela encosta das Oliveiras, subindo e chorando; tinha a cabeça coberta e caminhava descalço; todo o povo que ia com ele, de cabeça coberta, subiu chorando” (2Sm 15.30).

 

3) Davi sofreu amargamente as consequências de seu adultério com Bate-Seba e o planejamento da morte de seu marido Urias. No salmo 32 escreve: “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram (hl’B’) (balah)[1] os meus ossos pelos meus constantes gemidos (hg”a’v.) (sheagah)[2] todo o dia” (Sl 32.3).

 

Davi só encontrou alívio quando declarou diante de Deus o seu pecado; ele não mais tentou escondê-lo ou amenizá-lo. Não há eufemismos em nossa confissão sincera. Davi pinta com cores reais as suas faltas:

 

Confessei-te ([d;y”) (yada) o meu pecado (hf)f+Ah) (hatã’â)[3] e a minha iniquidade (}oWf() (‘ãwõn)[4] não mais ocultei (כּסה) (kâsâh).[5] Disse: confessarei (hd’y)(yadah) ao SENHOR as minhas transgressões ((a$ep) (pesha’);[6] e tu perdoaste a iniquidade (}oWf() (‘ãwõn) do meu pecado (hf)f+Ah) (hatã’â). (Sl 32.5).

 

No salmo 51, no mesmo contexto, escreve: “Pois eu conheço ([d;y”) (yada) as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

 

Da mesma forma no salmo 38:Confesso (נגד) (nâgad)[7] a minha iniquidade (}oWf() (‘ãwõn); suporto tristeza por causa do meu pecado” (Sl 38.18).

 

O caminho proposto por Deus é o arrependimento e a confissão. Deus perdoa a todos aqueles que, arrependidos, tristes com o seu pecado, sinceramente, o procuram. Deus mesmo declara: “Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões ((a$ep) (pesha’) por amor de mim” (Is 43.25). “Desfaço as tuas transgressões ((a$ep) (pesha’) como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi” (Is 44.22).

 

 

Maringá, 01 de fevereiro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

 

[1] Aplica-se à roupa envelhecida (Dt 8.4; 29.5; Js 9.5; Sl 102.26), sandália gasta (Dt 29.5; Js 9.5,13).

[2] A palavra gemido se aplica também: a) ao rugido do leão feroz: “Cessa o bramido (hg”a’v.)(sheagah) do leão e a voz do leão feroz, e os dentes dos leõezinhos se quebram” (Jó 4.10). “O seu rugido (hg”a’v.)(sheagah) é como o do leão; rugem como filhos de leão, e, rosnando, arrebatam a presa, e a levam, e não há quem a livre” (Is 5.29); b) ao rugido dos leõzinhos: “Este, andando entre os leões, veio a ser um leãozinho, e aprendeu a apanhar a presa, e devorou homens. Aprendeu a fazer viúvas e a tornar desertas as cidades deles; ficaram estupefatos a terra e seus habitantes, ao ouvirem o seu rugido (hg”a’v.)(sheagah)(Ez 19.6-7). “Eis o uivo dos pastores, porque a sua glória é destruída! Eis o bramido (hg”a’v.) (sheagah) dos filhos de leões, porque foi destruída a soberba do Jordão!” (Zc 11.3); c) gemido humano, quando, por exemplo, Jó em desespero amaldiçoa o dia do seu nascimento: “Por que em vez do meu pão me vêm gemidos (hg”a’v.) (sheagah), e os meus lamentos se derramam como água?” (Jó 3.24); d) bramido do Messias“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que se acham longe de minha salvação as palavras de meu bramido (hg”a’v.)(sheagah)?” (Sl 22.1).

[3](hf)f+Ah) (hatã’â). Pecado consiste no desvio daquilo que é agradável a Deus; errar o alvo, desviar-se da obediência devida a Deus. Esta é a principal palavra usada para descrever o sentido do pecado: errar o alvo ou o caminho. Um erro desqualificante. “A imagem é como saltar para alcançar uma barra e ser desqualificado ou fracassar em realizar isso” (Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erika Moore, Os Salmos como adoração cristã: um comentário histórico, São Paulo: Shedd Publicações, 2015, p. 494).

[4] (}oWf()(‘ãwõn). O sentido da palavra é de perverter, distorcer, envergar algo que é reto.    A principal ideia está associada ao ato consciente, frequente e intencional de fazer o que é errado. Quando se aplica à lei significa “cometer uma perversão”, “infringir”. Distorcer o caminho certo. Ao que parece, a culpa é a principal consequência subjetiva deste pecado. (Veja-se: Carl Schultz; Bruce K. Waltke, ‘ãwâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1087). Davi (na sequência apresentada no Salmo 32) que primeiramente quebrou a aliança, desviando-se cada vez mais do propósito de Deus, agora ele avança em infringir a Lei, pervertendo-a.

É muito natural o homem buscar justificativa para os seus atos iníquos. Há um processo de racionalização malévolo por meio do qual elaboramos teorias por vezes sofisticadas que pelo menos para nós justificam os nossos atos. Como isso nem sempre é suficiente, procuramos também persuadir os outros da integridade e necessidade de nossos atos pecaminosos que, neste caso, não são apresentados como tais, antes, como necessários, ousados e inteligentes. A aparente tranquilidade de Davi durante os doze meses que o separam de seus atos pecaminosos e a advertência do profeta Natã soa-me como algo estranho. De alguma forma ele conseguiu equacionar a culpa de seu pecado em sua mente e coração durante aquele período. Todavia, a Palavra de Deus é eficaz no seu propósito de mostrar a nossa infração e nos restaurar à comunhão com Deus. As nossas racionalizações complementadas por alguns comprimidos podem servir como paliativos durante algum tempo, contudo, não atingem o cerne do problema; elas não resolvem a questão do pecado e consequentemente da culpa. Aliás, o sentimento de culpa pode ser uma das bênçãos de Deus para que não nos entreguemos totalmente ao pecado. A culpa, nestes casos, é graça! Deus opera desta forma conduzindo-nos, pelo Espírito Santo, de volta a Ele mesmo. No texto que estamos analisando, o instrumento foi o profeta Natã que proferiu a Palavra de Deus, não as suas opiniões ou teorias. Somente a Palavra pode curar nossas feridas restaurando a nossa alma. E, não há restauração espiritual sem o retorno a Deus; à nossa restauração primeira à comunhão com Deus.

[5] (כּסה) (kâsâh) tem o sentido de “envolver”, “encobrir”, “ocultar”, “submergir” (Sl 78.53); morar (Pv 10.6,11); reter (Pv 10.18). Davi, portanto, expôs a Deus o seu pecado, não mais o abrigou dentro de si.

[6]((a$ep) (pesha’). Significa, transgressão, violação, revolta ou recusa a se submeter a uma legítima autoridade. “Afronta ostensiva dos homens à pessoa de Deus” (Alex Luc, Ps‘ In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 703). É como alguém que ergue o punho contra o padrão estabelecido por Deus. Significa revolta ou recusa a se submeter a uma legítima autoridade. Tem o sentido de rompimento de relacionamento, envolvendo a ideia de abandono de compromissos assumidos, uma quebra intencional de uma norma ou padrão, uma rebelião.

Ainda que esta expressão seja usada amplamente no campo familiar e jurídico, ela se concentra de forma mais intensa na rebelião contra Deus.

“O sentido predominante de pesha’ é o de rebelião contra a Lei e a Aliança de Deus, e, por conseguinte, o termo é um substantivo coletivo que denota a totalidade de iniquidades e um relacionamento fraturado” (G. Herbert Livingston, Pesha’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1247).

[7] O sentido básico é de “declarar”, “publicar”, “anunciar”, “manifestar, “expor”.

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