Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (8) – A Doutrina de Cristo antes da Reforma – Um panorama histórico (1)

Este artigo é continuação do: Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (7) – A Doutrina da Trindade: Formulação doutrinária – Um panorama histórico (2)

Acesse aqui esta série de estudos completa


 

Figura representativa dos gnósticos

Já nos primeiros séculos da Era Cristã, surgiram diversas heresias concernentes à Pessoa de Cristo e à relação das suas duas Naturezas. Essas heresias ora negavam a divindade, ora diminuíam a humanidade de Cristo. Alguns teólogos, no afã de combater alguma forma de erro, caíram com frequência em outro; passando a existir daí, não mais uma heresia, mas duas! Segundo Grudem, essas heresias surgiram da negação de um desses princípios fundamentais, a saber: a) Deus é três pessoas; b) Cada pessoa é plenamente Deus e, c) Só há um Deus. (Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 177). Notemos também, que nos primeiros séculos a Igreja confessou direta e indiretamente a Santíssima Trindade, a divindade do Filho e do Espírito; isto estava implícito de várias formas: no batismo, na “bênção apostólica” e no recitar do Credo Apostólico. O problema surge na elaboração desta verdade de modo compreensível. Na formulação da doutrina é que a Igreja se viu em sérias dificuldades: como tornar compreensível doutrinas entremeadas de mistérios? Este foi um dos problemas. Na tentativa da verbalização da doutrina é que muitas heresias surgiram…

Quanto à segunda pessoa da trindade, a preocupação predominante concentrava-se em tentar responder à pergunta concernente à divindade de Jesus. Segundo resume bem a questão:

Durante os quatro primeiros séculos que se seguiram à morte de Cristo, mais exatamente até os concílios de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedônia (451), grande parte dessa criatividade cristológica foi dirigida a responder, de maneira cabal, à pergunta (…) Jesus de Nazaré é Deus1

Veremos abaixo, em forma de esboço, apenas os principais erros:

1. As heresias

A. Os Ebionitas

Heresia surgida nos círculos judaicos, no final do primeiro século. O nome é derivado do hebraico: }Oy:be) (‘ebheyôn), que significa “pobre”, “necessitado”, “miserável”, “mendigo”, “pedinte de esmolas”.2 Eusébio de Cesaréia (c. 262-339), com uma dose de maldade, diz que este nome “manifesta a pobreza de sua inteligência”.3 Informa que eles tinham a respeito de Cristo “pensamentos pobres e de baixa estima” (Eusébio, Historia Eclesiastica, III.27.1). Criam que a fé não era suficiente para a salvação, sendo preciso que os homens observassem a Lei. (Eusébio, Historia Eclesiastica, III.27.2). Determinado grupo de ebionitas “heterodoxo” cria que Jesus era um mero homem, filho de José e Maria, porém um sincero observante da Lei. (Eusébio, Historia Eclesiastica, III.27.2/VI.17). Ele foi qualificado mediante o batismo pela descida do Espírito Santo para ser um profeta e mestre; porém o Espírito Santo o abandonou no Calvário (Veja-se: 1Jo 5.6-12). No entanto, como Messias predestinado, Ele voltaria à terra para reinar (J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 103).

Este grupo desejava manter a qualquer preço o monoteísmo do Antigo Testamento – preservando a Lei mosaica e uma forma de ascetismo: todos os cristãos deveriam ser circuncidados –, nem que para isso tivessem de negar a divindade de Cristo e a Sua concepção virginal… o que de fato fizeram. Na tentativa de preservar o monoteísmo bíblico, os ebionitas sacrificaram todos os textos que falam da divindade e eternidade do Filho.

Rejeitavam os escritos de Paulo, chamando-o de “apóstata da lei” (Eusébio, Historia Eclesiastica, III.27.4); todavia, honravam a Tiago e Pedro.

Devemos acentuar que todo ebionismo é subordinacionista. A divindade do Filho, quando aceita, é menor do que a de Deus. O Filho é ontologicamente subordinado ao Pai.

Ebionita, na Teologia moderna, passou a significar aqueles que negam a divindade ou a plena divindade de Cristo.

B. O Gnosticismo

Nome derivado do grego gnw/sij, “conhecimento”. Este grupo extremamente “amorfo”,4 surgiu provavelmente no primeiro século.5 Os gnósticos pretendiam ter um conhecimento esotérico, secreto e especulativo de Deus. Ensinavam que somente aqueles que tivessem acesso a uma forma secreta – conhecida pelos gnósticos – de interpretar a Bíblia poderiam entendê-la e, portanto, obter a salvação.6 Na busca de um conhecimento maior, o gnosticismo se caracterizava por ser altamente especulativo, fazendo um sincretismo de elementos gregos, judeus, cristãos e orientais, buscando uma explicação peculiar para a origem do mal. Irineu (c. 130- c. 200) os retrata como hereges que corromperam a doutrina cristã, mesclando-a com a filosofia pagã (Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1985, II.14.1. p. 161ss). No entanto, ao que parece, muitos dos mestres gnósticos eram cristãos sinceros, desejosos de expressar o Evangelho de forma que parecesse satisfatória aos seus contemporâneos. Contudo, foram infelizes em sua tentativa, sacrificando o conceito bíblico do Logos divino, em prol de seus pressupostos filosóficos (Veja-se: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 20).

Uma das preocupações dominantes nos sistemas gnósticos era com a questão da dualidade, caracterizada pela miséria e futilidade da vida humana neste mundo: vida aprisionada pelo corpo material, e o contraste com a ordem superior, inteiramente espiritual, que não se comunica com a matéria.

Criam que a matéria é má e Deus, o Pai supremo (Bythos), é o Éon perfeito; por isso, Deus não pode ter criado o mundo:

“o que Deus fez foi lançar uma série de emanações (30).7 Cada uma destas emanações distanciou-se mais de Deus, até que por último houve uma emanação tão distante que pôde tocar a matéria. Esta emanação (Demiurgo, identificado como o Deus do Antigo Testamento) foi a que criou o mundo (…). Os gnósticos sustentavam que cada emanação conhecia cada vez menos a Deus, até chegar a um ponto que as emanações não só ignoravam a Deus senão que lhe eram hostis. Assim chegaram, finalmente, à conclusão de que o deus criador não só era distinto do Deus verdadeiro, senão que o ignorava e lhe era ativamente hostil”.8

Para os gnósticos, Deus (Bythos) não tinha nada a ver com este universo, daí, possivelmente, a afirmação de João: “Todas as cousas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3).

Márcion (? – c. 165) o herege de Sinope9 – cujos ensinamentos perduraram no Oriente até o século VII – ainda que sustentasse alguns conceitos gnósticos, ensinando também a ideia de dois deuses, diferentemente do “gnosticismo tradicional”, não identificou o “Demiurgo” como o autor do mal.10

A respeito da Pessoa de Cristo, havia dentro do gnosticismo uma variedade de ideias, a saber:

a) Jesus era uma das 30 emanações “aeons” do Deus bom “Bythos”, emitidas para entrar em contato com a matéria que é má. Assim sendo, Jesus não é divino, é apenas uma espécie de semideus, uma entidade entre Deus e os homens.

b) Partindo do princípio filosófico de que a matéria é essencialmente má, afirmavam que Jesus não tinha corpo real; deste modo, ele era uma espécie de fantasma, sem carne e sangue reais. Jesus era uma ilusão; parecia homem, mas não era (docetismo);11 o filho de Deus, que era real, apenas usava o Jesus humano como meio de expressão; a encarnação, portanto, era apenas uma ilusão.12 Por trás deste conceito, estava a concepção de que Deus não pode sofrer; logo, se Cristo sofreu, ele não era Deus; e se ele era Deus, não poderia sofrer. Então, o sofrimento de Cristo teria sido apenas na aparência, não real. Inácio, bispo de Antioquia, no início do segundo século (c. 110) combateu ferreamente o docetismo, afirmando a divindade e a humanidade de Cristo.13 Do mesmo modo, Policarpo (c. 75-c. 160), bispo de Esmirna, escreve aos filipenses: “Qualquer que não confesse que Jesus Cristo veio em carne, é um anticristo. E quem não confessa o testemunho da cruz, é do diabo”.14

Alguns diziam que quando Ele andava, não deixava pegadas, porque seu corpo não tinha peso nem substância. João, de modo especial, combateu este tipo de conceito em seus escritos (Vejam-se: Jo 1.14; 20.31; Cl 1.19; 2.9; 1Jo 2.22; 4.1-3,15; 5.1,5,6; 2Jo 7).15

c) Jesus era um homem comum que foi usado pelo Espírito de Deus e abandonado no Calvário, não havendo de fato encarnação. (Vejam-se: Jo 1.14; 20.31; Cl 1.19; 2.9; 1Jo 2.22; 4.1-3,15; 5.1,5,6; 2Jo 7).

No próximo artigo, continuarei a tratar das principais heresias, abordando o Monarquianismo e o Arianismo. Até lá!

 

 

São Paulo, 26 de novembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

1Juan Luis Segundo, O Homem de Hoje Diante de Jesus de Nazaré, (II/2), São Paulo: Paulinas, 1985, p. 17.

2 Apesar de haver alusões (Hipólito e Tertuliano) a um suposto Ebião como fundador da seita, esta palavra relembra o título com que a igreja judaico-cristã de Jerusalém gostava de ser reconhecida (Vejam-se: Rm 15.26; Gl 2.10) (Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 103).

3Eusébio de Cesarea, Historia Eclesiastica, Madrid: La Editorial Catolica, (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349-350), 1973, III.27.6.

4 Conforme expressão de C.H. Dodd, A Interpretação do Quarto Evangelho, São Paulo: Paulinas, 1977, p. 134 e de J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 16. Do mesmo modo entende, A.F. Walls, Gnosticismo: In: J. D. Douglas, ed. ger. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p. 674.

5 Há um certo consenso por parte dos Pais da Igreja em atribuírem a Simão, o Mágico (At 8.9ss), a origem do gnosticismo (Veja-se por exemplo, Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, I.23.2. p. 99s.); todavia, nos detalhes são divergentes, devido à variedade de grupos gnósticos. (Vejam-se: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 16ss; B. Hägglund, História da Teologia, Porto Alegre, RS.: Concórdia, 1973, p. 27).

6 Veja-se: Alister E. McGrath, Teologia Histórica: uma introdução à História do Pensamento Cristão, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 54-55.

7 Irineu, Irineu de Lião, I.1.3. p. 33. “Esses trinta éons constituem o Pleroma, ou a plenitude da Divindade” (J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 17).

8 William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora (Juan I), 1974, v. 5, p. 20. Para uma descrição mais detalhada deste processo de emanações, Vejam-se: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 17ss; B. Hägglund, História da Teologia, p. 29-30; L. Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 45-47.

9 A respeito de seus ensinamentos, Vejam-se, entre outros: Tertulian, The Five Books Against Marcion. In: Alexander Roberts; James Donaldson, editors. Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 3, p. 269-475; Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, I.27.2-4. p. 109-110; Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 58, p. 73-74.

10 Vejam-se: Justino de Roma, I Apologia, 26, p. 42-43; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 42; Márcion: In: R.N. Champlin; João M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, São Paulo: Editora e Distribuidora Candeia, 1991, v. 4, p. 119-121; A. Skevington Wod, Marcionitas: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michigan: T.E.L..L., 1985, p. 333; Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 49-50. “Márcion não foi um Gnóstico verdadeiro ou típico a despeito do seu dualismo e docetismo.” (John Knox, Marcion: In: Harry S. Ashmore, Editor in Chief. Encyclopaedia Britannica, Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc., 1962, v. 14, p. 868a. Do mesmo modo, ver: B. Aland, Marcião – Marcionismo: In: Ângelo Di Berardino, org. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Paulinas, 2002, p. 881-882). No entanto, ele foi o “teólogo mais proeminente a popularizar uma cristologia docética” (Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1995, v. 1, p. 485).

11 Como sabemos este nome é derivado do verbo grego doke/w = “parecer”. Este ensinamento foi primariamente difundido por volta do ano 85 por Cerinto, natural de Alexandria, discípulo de Fílon.

12 Vejam-se: M.C. Tenney, Docetismo: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, p. 175; Docetismo: In: R.N. Champlin; João M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v. 2, p. 203-205; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 104-105

13 Vejam-se: Suas Cartas: Aos Efésios, 7,18,19,20; Aos Magnésios, 11; Aos Tralianos, 9; Aos Esmirnenses, 1-3, 7. (Veja-se a coleção de Cartas In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984). Devemos mencionar que apesar de Inácio combater os “docetas”, este nome só iria aparecer como designação deste tipo de pensamento, por volta do ano 200, em Serapião, que denomina este grupo de Dokhta\j. (Cf. Eusébio, Historia Eclesiastica, VI.12.6).

14Polycarp, The Epistle of Polycarp to the Philippians, VII. In: Alexander Roberts; James Donaldson, editors. Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 1, p. 34. Quanto a um testemunho antigo sobre o procedimento de Policarpo, Vejam-se: Irineu, Irineu de Lião, III.1.3. p. 251-252).

15 Notemos que nem todo “docetismo” era gnóstico, no entanto, como este era uma das características do gnosticismo, os termos foram identificados.

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