Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (19) – A Reforma e os seus Credos (4)

Este artigo é continuação do: IIntrodução ao Estudo dos Credos e Confissões (18) – A Reforma e os seus Credos (3)

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O apóstolo Paulo entende que Satanás muitas vezes se vale de nossos bons sentimentos para fazer com que quebremos a unidade da Igreja, supostamente, em busca de uma Igreja ideal. Para este mister, somos capazes até de reunir textos que falam da santidade da Igreja como pretexto para a nossa atitude.[1] “Recordemos sempre, quando o diabo nos empurrar para as controvérsias, que as desavenças dos membros, no seio da Igreja, não nos levam a parte alguma, senão para a ruína e destruição de todo o corpo”.[2] Como os jovens são mais irritáveis, dá uma orientação mais específica: “Os jovens, em meio às controvérsias, se irritam muito mais depressa do que os de mais idade; se iram mais facilmente, cometem mais equívocos por falta de experiência e se precipitam com mais ousadia e temeridade. Daí ter Paulo boas razões para aconselhar a um jovem a precaver-se contra os erros próprios de sua idade, os quais, de outra forma, poderiam facilmente envolvê-lo em disputas inúteis”.[3]

 

Após argumentar contra aqueles que chamavam os reformados de hereges, ressalta que a unidade cristã deve ser na Palavra:

 

Com efeito, também isto é de notar-se: que esta conjunção de amor assim depende da unidade de fé que lhe deva ser esta o início, o fim, a regra única, afinal. Lembremo-nos, portanto, quantas vezes se nos recomenda a unidade eclesiástica, isto ser requerido: que, enquanto nossas mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também entre si conjungidas nos hajam sido as vontades em mútua benevolência em Cristo. E, assim, Paulo, quando para com ela nos exorta, por fundamento assume haver um só Deus, uma só fé e um só batismo (Ef 4.5). De fato, onde quer que nos ensina o Apóstolo a sentir o mesmo e a querer o mesmo, acrescenta imediatamente: em Cristo (Fp 2.1,5) ou: segundo Cristo (Rm 15.5), significando ser conluio de ímpios, não acordo de fiéis a unidade que se processa à parte da Palavra do Senhor.[4]

 

Em outro lugar, instrui: “A melhor forma de promover a unidade é congregar (o povo) para o ensino comunitário”.[5]

 

Para os irmãos refugiados em Wezel (Alemanha), que sofriam diversas pressões de luteranos e sobreviviam numa pequena Igreja Reformada, Calvino, em 1554, os consola mostrando que apesar dos grandes problemas pelos quais passava o mundo, Deus lhes havia concedido um lugar onde poderiam adorar a Deus em liberdade. Também os desafia a não abandonarem a Igreja por pequenas divergências nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de preservar a unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos doutrinários.[6]

 

Portanto, mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino entendia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade pois, se assim fosse, essa dita paz seria maldita:

 

Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for necessário mover céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na luta. Devemos, certamente, fazer que a nossa preocupação primária cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer controvérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema, é algo maldito; enquanto que as lutas, indispensáveis à defesa do reino de Cristo, são benditas.[7]

 

Thomas Cranmer

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556)[8] escreveu a Calvino – bem como a Melanchthon (1497-1560)[9] e a Bullinger (1504-1575)[10] –, convidando-o para uma reunião no Palácio de Lambeth com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.[11] Cranmer tinha em vista também, a realização do Concílio de Trento[12] que estava em andamento, estando preocupado de modo especial com a questão da Ceia do Senhor.

 

Calvino então responde (abril de 1552), encorajando Cranmer a perseverar no seu objetivo. A certa altura diz: “Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa”.[13]

 

O próprio Cranmer compôs no Livro de Oração Comum, uma oração para o culto anual anglicano, quando se comemorava a coroação do monarca. A oração diz:

 

Ó Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, o Príncipe da Paz: Dá-nos a graça para com seriedade nos compenetrarmos dos grandes perigos em que nos encontramos por causa de nossas lamentáveis divisões, retira todo o ódio e preconceito e tudo o mais que possa impedir-nos de ter uma união e concórdia piedosas; para que, como existe somente um só corpo e um só Espírito e uma só esperança de nossa vocação, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos nós, assim possamos de agora em diante ser todos de um só coração, de uma só alma, unidos em um único e santo vínculo de verdade e paz, de fé e caridade, e possamos de uma só mente e com uma só boca glorificar-te: por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.[14]

 

Todavia, é importante que se diga, que num primeiro momento, era impossível qualquer tentativa neste sentido, visto haver problemas geográficos, políticos, objetivos circunstanciais diferentes e mesmo, problemas doutrinários. Contudo, já no século XVII, algum progresso neste sentido é evidente, por meio de formulações doutrinárias mais completas e, também, após passar o primeiro ardor apaixonado e exclusivista, ainda que surgissem novos debates teológicos nos séculos XVII e XVIII durante o período denominado de “Ortodoxia Protestante”.

 

Mesmo assim, as diferenças permaneceram sem, contudo, ferir pontos cruciais da Reforma, tais como: A Bíblia como autoridade final; a Justificação pela graça mediante a fé; o Sacerdócio universal dos Santos; a suficiência do sacrifício de Cristo para nos salvar etc.

 

Assim, os Credos da Reforma, tinham cinco objetivos específicos:

 

1) Evidenciar os fundamentos bíblicos de seus ensinos;

 

2) Demonstrar que as suas doutrinas estavam em acordo com os principais credos da Igreja (Apostólico, Niceno, Constantinopolitano);

 

3) Ensino mais detalhado da fé cristã;

 

4) Unidade de fé nas Igrejas Protestantes;

 

5) Distinguir a sua posição teológica em relação à teologia romana e às demais correntes provenientes da Reforma.[15]

 

As Confissões provenientes da Reforma (Séculos XVI e XVII), são divididas em dois grupos: Luteranas e Calvinistas (Reformadas). Dentro do nosso propósito, só consideraremos brevissimamente as Confissões Reformadas (Calvinistas).

 

 

São Paulo, 5 de dezembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1]Cf. John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Reprinted), v. XV, (Ag 2.1-5), p. 351.

[2]João Calvino, Gálatas, (Gl 5.15), p. 165.

[3] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.22), p. 244.

[4]João Calvino, As Institutas, IV.2.5. Calvino entendia que “onde os homens amam a disputa, estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali” (J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1996, (1Co 14.33), p. 436). T. George comenta com acerto, que “Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo” (T. George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 182-183).

[5] João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.12), p. 125.

[6]John Calvin, To the Brethren of Wezel, “Letter,” John Calvin Collection, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 346, p. 32-34.

[7] J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.33), p. 437.

[8] Arcebispo de Canterbury, que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração cristã.

[9] Melanchthon mesmo sendo luterano, e amigo pessoal de Lutero, desfrutou também de boa amizade com Calvino, mantendo com este ampla correspondência. Nos dizeres de Schaff, Melanchthon “permaneceu como um homem de paz entre dois homens de guerra” (Philip Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 260). O seu principal trabalho teológico foi Loci Communes (Lugares Comuns) (abril de 1521). Este tratado foi a primeira obra de teologia sistemática protestante do período da Reforma, marcando época, portanto, na história da teologia. Nele Melanchthon segue a ordem da Epístola aos Romanos. (Ver: Philip Schaff, History of the Christian Church, v. 7, 368-370). Melanchthon, aos poucos, expandiu a sua obra; porém o fez de forma assistemática, tornando difícil o seu manuseio no que se refere à sistematicidade dos assuntos. (Cf. Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, p. 110). A tradução francesa do trabalho de Melanchthon foi prefaciada por Calvino (1546). (Cf. W. de Greef, The Writings of John Calvin: An Introductory Guide, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 205).

[10]Bullinger foi amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cerca de 150 obras, entre elas, A Segunda Confissão Helvética (1562-1566).

[11] Cranmer, na carta a Calvino diz: “Como nada mais tende a separar as Igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazmente os une, e fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evangelho, e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho frequentemente desejado, e agora desejo que esses homens instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgamento, constituíssem uma assembléia em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando as suas opiniões, eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja…. Nossos adversários estão agora organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devemos nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles, e purificar e propagar a verdadeira doutrina?” (Thomas Cranmer to Calvin, “Letter,” John Calvin Collection, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), 16).

[12]Cranmer era um teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

[13] Letters of John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1980, p. 132-133.    Comentando sobre o egoísmo humano que gera divisões na Igreja e, ao mesmo tempo a falta de tolerância, Calvino escreve, exortando-nos à amar os nossos irmãos: (Retomo aqui, parte de citação já feita)     “Há tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, estando em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas, porquanto se torna difícil acomodarem-se aos modos das demais pessoas. Os ricos invejam uns aos outros, e raramente se encontra um entre cem que acredite que os pobres são também dignos de ser chamados e incluídos entre seus irmãos. A menos que haja similaridade em nossos hábitos, ou alguns atrativos pessoais, ou vantagens que nos unam, será muitíssimo difícil manter uma perene comunhão entre nós. Essa advertência, pois, se torna mais que necessária a todos nós, a fim de sermos encorajados a amar, antes que odiar, e não nos separarmos daqueles a quem Deus nos uniu. Torna-se urgente que abracemos com fraternal benevolência àqueles que nos são ligados por uma fé comum. É indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satanás está alerta, seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.25), p. 272-273). Schaff analisa: “A Igreja de Deus era a sua casa, e aquela Igreja não conhece nenhum limite de nacionalidade e idioma. O mundo era a sua paróquia. Tendo rompido com o papado, ele ainda permaneceu um católico na melhor acepção da palavra, e orou e trabalhou para a unidade de todos os crentes” (Philip Schaff, History of the Christian Church, v. 8, p. 799).

[14] Apud Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 204.

[15] Vejam-se: Jack B. Rogers, Autoridade e Interpretação da Bíblia na Tradição Reformada: In: Donald K. McKim, ed. Grandes Temas da Tradição Reformada, São Paulo: Pendão Real, 1998, p. 41; Chad B. Van Dixhoorn, Catecismo Maior de Westminster: Origem e Composição, Recife, PE.: Os Puritanos/Clire, 2012, p. 13; M.A. Noll, Confissões de Fé: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 336-337

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