Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (14) – Credos e Concílios: Credo de Calcedônia (4)

Este artigo é continuação do: Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (13) – Credos e Concílios: Credo Niceno-Constantinopolitano (3)

Acesse aqui esta série de estudos completa

 


 

4. O Credo de Calcedônia

O Quarto Concílio Ecumênico, foi realizado em Calcedônia, perto de Constantinopla (atual Istambul). Reunido de 8 a 31 de outubro de 451, contou com a presença de mais de 500[1] bispos e vários delegados papais, que como de costume o representavam. Nesta reunião, a já aludida Carta DogmáticaouTomo[2] redigida pelo bispo Leão I, o “Grande”[3] de Roma (13/06/449), foi decisiva na elaboração de seu Credo.[4]

 

Como vimos, Calcedônia ratificou o Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381). O seu objetivo era estabelecer uma unidade teológica na Igreja.

 

Concílio Calcedônia

A sua declaração teológica foi rascunhada em 22 de outubro, por uma comissão presidida por Anatólio de Constantinopla († 458),[5] encontrando a sua redação final, possivelmente na 5ª Sessão, na quinta-feira, de 25 de outubro.[6] Calcedônia rejeitou o Nestorianismo (duas pessoas e duas naturezas) e o Eutiquianismo (uma pessoa e uma natureza), afirmando que Jesus Cristo é uma Pessoa, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem (uma pessoa e duas naturezas). “Calcedônia pronunciou-se não só contra a separação como contra a fusão”[7] das duas naturezas de Cristo. Todavia, a noção de mistério esteve presente nesta confissão, por isso, ela não tentou explicar o que as Escrituras não esclareciam.[8]

 

Segue o Credo de Calcedônia:[9]

 

Portanto, seguindo os santos Pais, todos nós, em perfeito acordo, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na Deidade e também perfeito na humanidade; verdadeiro Deus e verdadeiro homem,[10] de alma racional (Yuxh\ logikh/)[11] e corpo, consubstancial (o(moou/sioj)[12] ao Pai na Divindade e consubstancial (o(moou/sioj) a nós na humanidade, ‘em todas as coisas semelhante a nós, exceto no pecado’;[13] gerado antes de todas as eras pelo Pai quanto à Sua Divindade, e nos últimos dias, por nós e para nossa salvação, nasceu da Virgem Maria, a Mãe de Deus (Qeoto/koj),[14] quanto à Sua humanidade; um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, sendo conhecido em duas naturezas, inconfundíveis (a)sugxu/twj),[15] imutáveis (a)tre/ptwj),[16] indivisíveis (a)diaire/twj),[17] inseparáveis (a)xwri/stwj);[18] a distinção das duas naturezas de modo algum é anulada pela união, mas as propriedades de cada natureza são preservadas, e concorrem em uma Pessoa (Pro/swpon)[19] e uma Subsistência (u(/po/stasij),[20] não separada ou dividida em duas pessoas (Pro/swpon), porém um e o mesmo Filho, Unigênito, Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas do passado e o próprio Senhor Jesus Cristo nos ensinaram a respeito Dele e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.

 

Berkhof (1873-1957) resume as “mais importantes implicações” desta declaração teológica, como se segue [21]

 

1) As propriedades de ambas as naturezas podem ser atribuídas a uma só Pessoa, como por exemplo, onisciência e conhecimento limitado;

 

2) Os Sofrimentos do Deus-Homem podem ser reputados como real e verdadeiramente infinitos, ao mesmo tempo em que a natureza divina não é passível de sofrimento;

 

3) É a divindade, e não a humanidade, que constitui a raiz e a base da personalidade de Cristo;

 

4) O Logos não se uniu a um indivíduo distinto, e sim à natureza humana. Não houve primeiro um homem já existente com quem se teria associado a Segunda Pessoa da Deidade. A união foi efetuada com a substância da humanidade no ventre da virgem.

 

Como sabemos, os documentos confessionais da Igreja elaborados e/ou sancionadas, por vezes, em Concílios, não são Palavra de Deus, contudo, ao longo da história Deus tem propiciado e capacitado a Igreja a se pronunciar desta forma em resposta à Revelação, podendo deste modo aprofundar a sua fé na sã doutrina, tendo uma compreensão mais abrangente da Palavra e, consequentemente, ser um porto seguro contra todas as ondas de heresias em surgem, tentando seduzir os fiéis com o som de variados ventos de doutrina que em seu cerne sempre reduzem ou negam a glória de Cristo, que no final das contas, é a mesma coisa.[22]

 

Os Credos da Igreja foram fundamentais na compreensão mais profunda e preservação da doutrina bíblica. Os quatro Concílios Ecumênicos, reunindo as igrejas do Oriente e do Ocidente, foram de extrema relevância na compreensão da Divindade, Humanidade e Unipersonalidade de Cristo.

 

Stott (1921-2011) assim resume:

 

Assim, o Concílio de Nicéia (325) garantiu a verdade de que Jesus é verdadeiro Deus, enquanto o Concílio de Constantinopla (381) garantiu que Jesus é verdadeiro homem. Em seguida, o Concílio de Éfeso (431) garantiu que, apesar de Deus e homem, Jesus é só uma pessoa, enquanto o Concílio de Calcedônia (451) garantiu que, apesar de uma única pessoa, ele tinha duas naturezas, divina e humana.[23]

 

Um decreto ou uma declaração teológica, por mais relevantes que seja , não põe fim imediatamente a um sistema; a ortodoxia, por sua vez, não é criada por intermédio de pronunciamentos oficiais, embora saibamos que todos eles sejam necessários e relevantes para nortear a Igreja e enriquecer a sua fé.[24] Com isso, estamos apenas querendo indicar que, do mesmo modo que Nicéia não colocou um ponto final na questão Trinitária, Calcedônia, não determinou o fim dos problemas Cristológicos. As heresias permaneceram em diversas regiões, especialmente na Igreja Oriental.[25] Contudo, Calcedônia se constitui num marco decisório na vida da Igreja, estabelecendo uma compreensão Cristológica que, se não é a final, é a que pôde ser alcançada, pelo Espírito, dentro da revelação. No entanto, a Palavra é a fonte de toda a genuína teologia, portanto, se Calcedônia estabeleceu balizas, e graças a Deus por isso, devemos permanecer sempre atentos à Palavra de Deus, à luz da qual nós e a nossa teologia seremos julgados.

 

São Paulo, 03 de dezembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1] J.L. Gonzalez diz 520 (A Era das Trevas, São Paulo: Vida Nova, 1981, p. 99) ou cerca de 520 (Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, p. 72). Latourette fala de 600 bispos, fora os legados (Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo, 3. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1977, v. 1, p. 220. Veja-se também: A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 104). Hodge fala de 630 (Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Westminster Comentada por A.A. Hodge, São Paulo: Editora os Puritanos, 1999, p. 192). Outros autores mencionam de forma menos específica, a presença de mais de 500 bispos (Ex. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 256; J.H. Hall, Concílio de Calcedônia: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, v. 1, p. 306). Sobre as versões diferentes a respeito do número de participantes, veja-se: Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 93). Destes bispos, 40 “teriam sido incapazes de assinarem o seu nome” (Jean Vial, Técnicas Pedagógicas: Os Rudimentos até ao Renascimento: In: Gaston Mialaret; Jean Vial, diretores, História Mundial da Educação, Porto: Rés, (s.d.), v. 1, p. 313).

[2]Este “Tomo”, é chamado por Berkhof de “um compêndio da cristologia ocidental” (Veja-se: L. Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 97-98). Do mesmo modo, declara Perrone: “O Tomus ad Flavianum representa uma contribuição decisiva para a solução da questão cristológica, tal como tomará forma na definição de Calcedônia” (Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 88). Boa parte deste “Tomo”, encontra-se In: H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, p. 83-86.

[3]Latourette diz que Leão I “foi um dos homens mais capazes que já ocuparam o chamado trono de Pedro” (K.S. Latourette, História del Cristianismo, 3. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1977,v. 1, p. 220).

[4] Quando o “Tomo” de Leão foi lido, na segunda sessão (10/10/451), ainda que não unânime, houve repetidas aclamações, tais como: “A fé dos pais, a fé dos apóstolos”; “Pedro falou por meio de Leão” e “Leão e Cirilo deram o mesmo ensinamento”. (Cf. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 96).

[5] Cf. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 98.

[6] Compare as informações de J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 257; P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), v. 1, p 29; Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: HCE., p. 97-98..

[7]G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 55.

[8]Vejam-se: G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 67ss; Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, v. 1, p. 492.

[9]O Credo de Calcedônia é precedido pela confirmação dos Credos de Nicéia (325) e Constantinopla (381). A elaboração deste novo Credo pode ser explicada pelo surgimento de novas heresias referentes a Cristo (Apolinarismo, Nestorianismo e Eutiquianismo), que precisavam ser combatidas. (Veja-se: P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), v. 2, p. 63-64).

[10]Este conceito já estava presente em Irineu (c. 120- c. 202). (Irineu, Irineu de Lião, IV.6.7. p. 382-383).

[11] Esta expressão visa combater o Apolinarismo

[12] o(moou/sioj, na versão latina: “consubstantialem”. Da mesma substância, consubstancial, coessencial. Atanásio, combatendo o Arianismo (que empregava a expressão (o(moio/usioj)(“de natureza semelhante”) para Jesus Cristo), já havia usado este termo em Nicéia (325), referindo-se à Trindade, indicando a unidade da essência do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aqui em Calcedônia, a expressão é utilizada para indicar a verdadeira divindade e verdadeira humanidade de Cristo. Calvino (1509-1564) diz que “essa palavrinha fazia a diferença entre os cristãos de pura fé e os sacrílegos arianos” (As Institutas, I.13.4).

[13] Hb 4.15.

[14] Qeoto/koj, na versão latina: “Dei genetrice”. (Qeo/j & To/koj = Ti/ktw = “Dar à luz um menino / gerar, chegar a ser mãe / produzir”: “Mãe de Deus”. A expressão foi usada para indicar que Aquele que foi concebido de Maria, fora obra do Espírito Santo, portanto era Deus. A expressão também ressalta, que Maria não foi mãe simplesmente da natureza humana de Jesus, mas sim, da pessoa Teantrópica de Jesus Cristo (Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), v. 2, p. 64).

[15] a)sugxu/twj, na versão latina: “inconfuse”. “Sem confusão”, “sem mistura”. Expressão usada contra o Eutiquianismo, que sustentava que a encarnação fora o resultado da fusão do divino com o humano.

[16] a)tre/ptwj, na versão latina: “immutabiliter”. “Sem conversão”, “sem transformação”. Da mesma forma, esta expressão também foi usada contra o Eutiquianismo.

[17] a)diaire/twj, na versão latina: “indivise”. “Sem divisão”. Expressão que visava combater o Nestorianismo, que separava as duas naturezas de Cristo, afirmando ser a sua união apenas moral, simpática e afetiva.

[18] a)xwri/stwj, na versão latina: “inseparabiliter”. “Sem separação “, “indissolúvel”. Termo também usado contra o Nestorianismo. G.C. Berkouwer, interpretando Korff, comenta que estes quatro advérbios de Calcedônia: inconfundíveis (a)sugxu/twj), imutáveis (a)tre/ptwj), indivisíveis (a)diaire/twj), inseparáveis (a)xwri/stwj), ”Enriquecem a fé e a humildade da Igreja. Esses advérbios assemelham-se a um alinhamento de bóias cercando o estreito canal navegável e alertando os navios contra os perigos ameaçadores dos dois lados. Não são uma definição nem servem para definir, pois tal não foi a intenção da Igreja” (G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 68. Veja-se também: B. Lohse, A Fé Cristã Através dos Séculos, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1981, p. 100-101). Num mar tormentoso como aquele vivido em Calcedônia, as “âncoras” foram necessárias – e ainda são –, para preservar segura a Igreja em meio a todas as ondulações heréticas na história, sem se distanciar da plenitude da revelação bíblica.

[19]Pro/swpon, na versão latina: “Personam”. “Pessoa”; significando primariamente, “face” ou “expressão”. A ideia básica da palavra é a de um papel representado por alguém numa brincadeira. Logicamente, este termo é menos técnico e preciso que u(/po/stasij. Os Pais gregos, se apropriaram desta palavra, utilizando-a para referirem-se à Trindade, conferindo-lhe o sentido teológico de “indivíduo”, de uma pessoa que tem uma natureza racional e uma substância individual, própria (Quanto às discussões teológicas a respeito da interpretação dada a esta palavra, Veja-se: Persona: In: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993. p. 223-227).

[20] u/(po/stasij, na versão latina: “Subsistentiam”. “Substância”, “natureza”, “essência”. A palavra denota uma subsistência pessoal e real. ( * 2Co 9.4; 11.17; Hb 1.3; 3.14; 11.1)(Sobre a interpretação desta palavra nos textos aludidos, Veja-se: Wick Broomall, Su(b)stancia: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, p. 504-505).

[21] Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 98. Esquema bem parecido, pode ser encontrado também, em Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1976, (Reprinted), v. 2, (III.3.3), p. 391-392.

[22] Como nos diz Bavinck a respeito de Calcedônia, o que pode ser dito a respeito de todos os Concílios e pronunciamentos eclesiásticos: “A linguagem de Calcedônia não é sacrossanta e está aberta a reformulação. Porém, até agora, todos os esforços para melhorá-la falharam, e a igreja não pode fazer nada melhor hoje em dia do que manter a doutrina das duas naturezas” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 243).

[23] John Stott, O Incomparável Cristo, São Paulo: ABU., 2006, p. 83.

[24]“Uma confissão teológica pobre pode, em última análise, conduzir apenas à vida cristã empobrecida” (Carl R. Trueman, O imperativo confessional, Brasília, DF.: Editora Monergismo, 2012, p. 254).

[25] Além das indicações já feitas, Vejam-se: Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 99-102; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 258; B. Lohse, A Fé Cristã Através dos Séculos, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1981, p. 101-106; P. Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo: ASTE., 1988, p. 91ss.; J.L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 102ss.; Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, v. 1, p. 492ss.

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