Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (10) – A Doutrina de Cristo antes da Reforma – Um panorama histórico (3)

Este artigo é continuação do: Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (9) – A Doutrina de Cristo antes da Reforma – Um panorama histórico (2)

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E. O Apolinarismo

Nome derivado de Apolinário, o jovem (c. 310-c.390) bispo de Laodicéia, na Síria (c. 360), tendo seus ensinamentos condenados em vários Concílios: Alexandria (362) (aqui somente o apolinarismo, não Apolinário; o seu nome não foi mencionado);[1] Roma (377)[2] (Apolinário e o apolinarismo); Antioquia (378), no 2º Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) (Apolinário e o apolinarismo). Atanásio (c 296-373), mais uma vez foi o campeão da ortodoxia do século IV, escrevendo contra esta heresia (371).[3] Ainda que alguns apolinaristas voltassem à Igreja, Apolinário conseguiu adeptos que perseveraram em seus ensinamentos;[4] um de seus discípulos, Vitális, fundou uma congregação em Antioquia (375), sendo consagrado bispo por Apolinário. “Os apolinarianos tiveram pelo menos um sínodo em 378, e há evidência no sentido de ter ocorrido um segundo sínodo. Depois da morte de Apolinário, seus seguidores dividiram-se em dois partidos, os vitalianos e os polemeanos ou sinusiatos. Por volta de 420, os vitalianos já estavam reunidos com a Igreja Grega. Pouco mais tarde, os sinusiatos fundiram-se no cisma monofisita”.[5]

 

Devido à sua concepção tricotômica do homem, bem como o seu desejo de preservar a divindade e a unipersonalidade de Cristo, terminou por concebê-Lo como sendo totalmente divino e apenas 2/3 humano. Baseando-se supostamente em Jo 1.14, admitiu que Jesus era uma unidade composta de elementos divinos e humanos; o Verbo divino teria assumido apenas a carne humana, não toda a humanidade; deste modo Jesus, ainda que humano fisicamente, não o era psicologicamente (Veja-se: Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, p. 291). Esta compreensão pode ser comparada com a ideia de uma alma humana ser implantada num leão; a pergunta é: quem governaria quem; no caso, a alma humana governaria o leão em seu corpo.[6]

 

A ideia de total humanidade envolvia o conceito de pecaminosidade, por isso, a sua tentativa de resguardar o Filho (Cf. Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 94). Para ele, o homem era constituído de Sw=ma (carne ou corpo); Yuxh/ (alma animal) e Pneu=ma (alma racional). O Pneu=ma é que torna o homem o que ele é. Aplicando estes conceitos a Jesus, Apolinário dizia que Jesus tinha Sw=ma e Yuxh/ iguais a de um homem comum; já o Pneu=ma fora substituído pelo Lo/goj (Logos); assim, Jesus possuía um corpo, uma alma, mas não possuía um espírito humano.

 

Kelly acentua que Apolinário deixa claro o seu pensamento nas seguintes considerações:

 

A carne por depender de algum outro princípio de movimento e ação (qualquer que seja este princípio) para se movimentar, não é por si só uma entidade viva completa, mas, a fim de se tornar uma, entra em fusão com alguma outra coisa. Dessa maneira, ela se uniu ao princípio celestial governante (isto é, o Logos) e fundiu-se com ele… Assim, a partir do movido e do motor, foi composta uma única entidade viva – não duas entidades, nem uma única composta de dois princípios completos e automáticos.[7]

 

Assim, para Apolinário há uma única vida; uma perfeita fusão do homem (carne) com o divino, sendo a carne de Jesus glorificada pelo Logos, daí ele falar de “carne divina”, “carne de Deus”, “natureza encarnada da Palavra divina” (Veja-se: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 221-222).

 

Os ensinamentos de Apolinário foram censurados pelo fato de que se o Logos não tomou sobre si a integridade da natureza humana – estando toda ela afetada pelo pecado –, esta natureza não poderia ser redimida, visto que aquilo que o Filho não levou sobre si não pode ser alvo de sua redenção.[8]

 

Pintura de parede do século VII ou VIII em uma igreja nestoriana na China (Wikipedia)

F. Nestorianismo

Nome proveniente de Nestório (380-451), Bispo de Constantinopla (428-431). Adversário voraz do Arianismo, seu primeiro ato oficial como patriarca foi incendiar uma capela ariana (Cf. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, v. 3, p. 18).

 

Nestório, numa série de sermões proferidos em 428, combateu uma designação popular dada à Maria de “Qeoto/koj” (“Mãe de Deus”). (Cf. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, v. 3, p. 18). Esta fórmula seria usada pouco depois pelo Concílio de Éfeso (431), alcunhada por Cirilo de Alexandria.[9]

 

Deve ser dito que o Concílio de Éfeso utilizou esta expressão não como uma atribuição de majestade a Maria,[10] mas como reconhecimento de que o que dela nasceu, por obra do Espírito Santo, era o Filho de Deus, o Deus encarnado desde à concepção. A expressão também ressalta que Maria não foi mãe simplesmente da natureza humana de Jesus, mas sim da pessoa Teantrópica de Jesus Cristo (Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, v. 2, p. 64). A expressão é boa? Não. Talvez ela seja inspirada em Lc 1.43, quando Isabel diz à Maria, grávida: “E de onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?” (Lc 1.43). Contudo, foi a melhor que se pôde elaborar naquele contexto para expressar a afirmação desta verdade bíblica. Parece-nos melhor a declaração de que Maria é mãe de Jesus Cristo, Aquele que é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. O fato é que mesmo involuntariamente, o Concílio de Éfeso contribuiu para a deificação de Maria (Cf. Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 1235-1236).

 

Nestório, por sua vez – fugindo do que considerava o extremo oposto, que dizia ser Maria “a)nqropoto/koj” (“Mãe do homem”)[11] – entendia que a expressão correta seria “Xristoto/koj” (“Mãe de Cristo”) (Ver: G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE, 1964, p. 218-219), ou mesmo, “Qeodo/xoj” (“que recebe[12] a Deus”), por considerar distintas as qualidades da divindade e da humanidade. Deste modo, aceitando a sua posição, podemos perceber logo de início o problema da encarnação do Verbo: o menino que nasceu de Maria era Deus-Homem?.

 

Nestório, tentando refutar o Eutiquianismo, ensinava (?)[13] que Jesus Cristo era constituído de duas pessoas e duas naturezas. Sustentava que cada uma das duas naturezas de Jesus tinha a sua própria subsistência e personalidade; a união entre elas não era ontológica, mas apenas moral, simpática e afetiva.

 

Os seus ensinamentos foram rejeitados no Concílio de Éfeso (431) e de Calcedônia (451). Ele foi mandado para um mosteiro em Antioquia, depois exilado (435/436) na distante cidade de Petra, na Arábia, e finalmente foi para o oásis de Upper, no Egito, onde passaria o resto de seus dias.[14]

 

O Nestorianismo permaneceu na Pérsia, onde seus seguidores estabeleceram um eficiente trabalho missionário que permitiu a sua proliferação na Arábia, Índia, Turquestão e China, espalhando-se por diversas regiões da Ásia. Ainda hoje sobrevive o Nestorianismo (“Caldeus Uniatos”) na Mesopotâmia, Pérsia e Síria, havendo um grupo alinhado com a Igreja de Roma e outro independente (“Igreja Nestoriana Não-Unida”).

 

G. Eutiquianismo

 

Nome derivado de Êutico (= Eutiques, Eutíquio) (c.378-454), arquimadrita[15] de um mosteiro em Constantinopla, discípulo de Cirilo de Alexandria. A sua doutrina consiste numa reação ao Nestorianismo. Ele sustentou que a encarnação é o resultado da fusão do divino com o humano em Jesus, sendo a natureza humana absorvida pela divina, ou que desta fusão surgisse uma nova substância “híbrida”;[16] um “terceiro tipo de natureza.”[17] Assim, sua posição envolvia uma pessoa e uma natureza. Ele foi o fundador do “Monofisismo”: Cristo tem uma única natureza; a divina revestida de carne humana. Observem que dentro desta perspectiva, Jesus não salvaria ninguém, já que Ele não seria verdadeiro homem nem verdadeiro Deus…

 

O Eutiquianismo foi condenado no Sínodo Permanente de Constantinopla (22/11/448).[18] Todavia, em outro Concílio, convocado pelo imperador Teodósio II (408-450), realizado em Éfeso (08/449), Êutico foi reabilitado.[19] Isto ocorreu à revelia do bispo de Roma Leão I, “o Grande”,[20] que havia elaborado uma “Carta Dogmática” ouTomo[21] (13/06/449) combatendo a doutrina da natureza única de Cristo. Dióscoro, sucessor de Cirilo († 444) como patriarca de Antioquia, foi quem presidiu este Concílio – com plenos poderes imperiais[22] –, impedindo inclusive que os três legados do bispo de Roma lessem a sua “Carta Dogmática” perante o Concílio.[23]

 

No entanto, dois anos depois, foi convocado o Concílio de Calcedônia (23/05/451)[24] pelo imperador Marciano, que casou-se com Pulquéria (irmã do imperador Teodósio II, falecido prematuramente numa queda de cavalo (28/07/450)). Calcedônia anulou a decisão de Éfeso e o invalidou como Concílio verdadeiramente ecumênico, condenando o Eutiquianismo, exilando Êutico e Dióscoro. Contudo, o Eutiquianismo continuou vigorando como ensinamento genuíno na Igreja Egípcia.

 

São Paulo, 26 de novembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

 

[1] Cf. Herzog, Appolinarianism: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk Wagnalls, Publishers, 1887 (Revised Edition), v. 1, p. 109.

[2] Em 376 foi censurado pelo Papa Damaso I. Foi então que Atanásio desenvolveu a sua obra, Demonstração da Encarnação Divina, firmando a sua posição.

[3]Cf. Herzog, Appolinarianism: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, v. 1, p. 109.

[4]Cf. Herzog, Appolinarianism: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, v. 1, p. 109.

[5] V.L. Walter, Apolinarismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 98.

[6] Veja-se: Loraine Boettner, Studies in Theology, 9. ed. Philadelphia, The Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1970, p. 263.

[7] Apud J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 220.

[8] Vejam-se: Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 94-95; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 458.

[9] Quanto aos possíveis empregos da expressão antes deste período, ver: Maurice Jourjon; Bernard Meunier, Maria: In: Jean-Yves Lacoste, dir. Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 1095; G.I. Söll, et. al. Maria: In: Angelo Di Berardino, org. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Paulus, 2002, p. 885-886.

[10] O que viria a acontecer por volta do sexto século, quando Maria começaria a ser adorada (Cf. W.C.G. Proctor, Madre de Dios: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michigan: T.E.L..L., 1985, p. 325).

[11] Cf. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberingo, org. História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 74.

[12] Proveniente de “Doxh/”, “recipiente”, “vasilha”, “depósito”. (A palavra é usada no NT. com o sentido de “banquete” (* Lc 5.29; 14.13))

[13]Em 1895 descobriu-se na Síria um escrito de Nestório, O Livro de Heraclides, (publicado em 1910) no qual ele ensina algo que vai justamente de encontro à heresia que supunham que ele sustentava. Referindo-se a Cristo, Nestório afirma que “o mesmo que é um é duplo”; ele também se dizia satisfeito com a Cristologia de Calcedônia. Na atualidade os estudiosos estão divididos quanto à interpretação de seu pensamento e, consequentemente, se foi justo ou não condená-lo. (Vejam-se: H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, v. 3, p. 19; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento,p. 235-240; B. Hägllund, História da Teologia, Porto Alegre, RS.: Concórdia, 1973, p. 79-82; G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE, 1964, p. 54; Johannes Quasten, Patrology, 7. ed. Westminster, Maryland: Christian Classics. INC., 1994, v. 3, p. 516; Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 781-782).

[14] Cf. Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 96; W. Möller, Nestorius: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, v. 2, p. 1630b.

[15] Arquimadrita, significava, na Igreja oriental, o chefe de um ou mais mosteiros. O título também se aplicava aos padres celibatários de destaque.

[16] Cf. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 303.

[17]Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 459.

[18]Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberingo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 87. Quanto às articulações políticas de Dióscoro, patriarca de Antioquia, neste Concílio, Vejam-se: Ibidem., p. 88ss.; Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 98.

[19] Vejam-se: Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberingo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 89-90.

[20]Latourette diz que Leão I “foi um dos homens mais capazes que já ocuparam o chamado trono de Pedro” (Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo,v. 1, p. 220).

[21] Este “Tomo”, que Berkhof chama de “um compêndio da cristologia ocidental”, contribuiria decisivamente para a formulação de Calcedônia (Veja-se: Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 97-98). Do mesmo modo, declara Perrone: “O Tomus ad Flavianum representa uma contribuição decisiva para a solução da questão cristológica, tal como tomará forma na definição de Calcedônia” (Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberingo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 88). Boa parte deste “Tomo”, encontra-se In: H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, p. 83-86.

[22] Veja-se: Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, São Paulo: Vida Nova, (Uma História Ilustrada do Cristianismo), 1980-1988, p. 98.

[23] Este Concílio seria conhecido na História como o “Sínodo dos Ladrões”, alcunha dada por Leão, bispo de Roma, em carta dirigida a Pulquéria, irmã do imperador Teodósio II, em 20/07/451. Isto porque a sua decisão não coincidia com a ortodoxia da Igreja e também, porque o seu documento não foi lido. (Vejam-se mais detalhes, In: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 249-252; Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 98-99).

[24] O Concílio foi convocado primariamente para realizar-se em Nicéia, todavia, em 22/09/451, transfere-o para Calcedônia. (Cf. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberingo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 93).

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