Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (78)

5.9. O Espírito como Senhor da vida e Mestre da Oração (Continuação)

A presença soberana do Espírito é a característica fundamental do cristão. O Espírito é a identidade dos que pertencem a Deus – “….se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9) –, dos filhos adotivos de Deus (Rm 8.15),[1] que são guiados por Ele (Rm 8.14).[2]

Quem tem o Espírito, tem a Cristo. Quem não possui o Espírito não tem a Cristo e, de fato, não pertence a Ele (Rm 8.9-10). Assim, participar do Espírito é o mesmo que participar do Filho. O próprio Espírito testifica continuamente em nós que somos filhos de Deus e, portanto, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo (Rm 8.16,17).[3] Embora a certeza de nossa salvação não seja algo essencial à salvação, o Pai deseja comunicar-nos constantemente esta certeza a fim de que a mesma seja subjetivada em nós e, deste modo, possamos viver a plenitude do privilégio e da responsabilidade de nossa filiação.

Notemos que esta identidade com Cristo pelo Espírito, é uma identidade de sofrimento e glória. A vida cristã consiste numa identificação com Cristo, em seus sofrimentos e em sua glória. “A união com Cristo é a união com Ele na eficácia da sua morte e na virtude da Sua ressurreição – aquele que assim morreu e ressuscitou com Cristo é liberto do pecado, e o pecado não exercerá o seu domínio”, conclui Murray (1898-1974).[4]

Regeneração, Justificação e Santificação

O Espírito é vida, sendo a fonte e o doador da vida: “Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.2/Jo 6.63; 2Co 3.6; Gl 6.8). Por intermédio do Espírito fomos recriados para que possamos responder com fé à Palavra reivindicatória de Deus (Jo 3.5,6,8/Tt 3.5).

A regeneração antecede a fé: Antes, estávamos mortos, portanto, incapazes de atender as reivindicações de Cristo e de ver o glorioso Reino de Deus. É o Espírito Q

quem nos capacita a receber a graça,[5] iniciando uma nova vida em nossos corações, na qual temos os nossos olhos abertos e os corações voltados para a Palavra de Deus.

Antes amávamos o pecado, agora, agrada-nos fazer a vontade de Deus (Sl 119.16,77,97-105/1Jo 5.1-5). O Espírito infunde em nós uma nova disposição que nos conduz em direção à vontade de Deus em uma santa e prazerosa obediência.

Os Cânones de Dort (1618-1619) declaram:

De acordo com o testemunho da Escritura, inspirada pelo próprio autor dessa obra, regeneração não é inferior em poder à criação ou à ressurreição dos mortos. Consequentemente todos aqueles em cujos corações Deus opera desta maneira maravilhosa são, certamente, infalível e efetivamente regenerados e de fato passam a crer. Portanto a vontade que é renovada não apenas é acionada e movida por Deus mas, sob a ação de Deus, torna-se ela mesma atuante.[6]

Assim também a graça divina da regeneração não age sobre os homens como se fossem máquinas ou robôs, e não destrói a vontade e as suas propriedades, ou a coage violentamente. Mas a graça a faz reviver espiritualmente, traz-lhe a cura, corrige-a e a dobra de forma agradável e ao mesmo tempo poderosa. Como resultado, onde dominava rebelião e resistência da carne, agora, pelo Espírito, começa a prevalecer uma pronta e sincera obediência. Esta é a verdadeira renovação espiritual e liberdade da vontade.[7]

A regeneração é um ato, que dá início a um processo; é, em outras palavras, “o começo de um caminho de vida”.[8]

O homem não regenerado pode até achar interessante o assunto e tentar mudar o seu comportamento, todavia, isto não resolve a questão: “a razão e a consciência podem levar um homem a mudar de conduta, mas não podem levá-lo a mudar de coração”, escreveu Hodge.[9]

Se a regeneração é o início da santificação, a justificação é o fundamento judicial da santificação.[10] A justificação e a santificação não podem ser separadas, sem se perder de vista a verdadeira dimensão da vida cristã.[11] Na justificação, por graça, fomos declarados livres da culpa, amparados na justiça de Cristo. Na santificação, a santidade de Cristo é-nos aplicada internamente pelo Espírito de Cristo, o Espírito de santidade.[12]

Na regeneração recebemos um coração novo, com uma santa disposição. Na justificação Deus nos declara justos, perdoando todos os nossos pecados, os quais foram pagos definitivamente por Cristo; por isso, já não há nenhuma condenação sobre nós; estamos em paz com Deus, amparados pela justiça de Cristo (Vejam-se: Rm 5.1; 8.1,31-33). Na justificação Deus declara que já não há mais culpa em nós; na santificação Ele nos purifica da corrupção. Na justificação temos uma mudança em nossa condição legal; a santificação envolve uma transformação moral.[13]

Enquanto não formos gerados por Deus, declarados justos, por intermédio da justificação, não há santificação. “Aqueles que são justificados, também são sempre santificados; aqueles que são santificados sempre foram justificados”, resume Ryle  (1816-1900).[14]

A nossa justificação é pela graça mediante a fé (Gl 3.11; Fp 3.9; Tt 3.4-7).[15] “….A fé é o instrumento pelo qual o pecador recebe e aplica a si tanto Cristo como sua justiça”.[16] O veredicto de Deus sobre o pecador o considera justo porque ele, pela fé, aceitou a justiça de Cristo. Esta justiça nada tem a ver com obras humanas, antes, é a “justiça de fé”. Se assim não fosse, a fé seria por si mesma meritória, sendo a obra sacrificial de Cristo descartada por sua total inutilidade.[17]

A nossa argumentação até aqui visa nos dar conta de como o Espírito é o agente ativo de nossas orações. Como Ele nos criou para isso. Fomos criados para nos relacionar com Deus. Caídos, distantes, alienados de Deus, fomos regenerados e reconciliados para que possamos voltar a ter, por graça, uma relação piedosa com o nosso Senhor.

Maringá, 21 de junho de 2020. Rev. Hermisten


[1]Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15).

[2]Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8.14).

[3]“O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.16-17).

[4]John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 159. “A doutrina sobre a santificação, como ensinada na Bíblia, é que nos tornamos santos (…) por sermos unidos a Cristo, de tal modo que nos reconciliamos com Deus e nos tornamos participantes do Espírito Santo” (C. Hodge, O Caminho da Vida, New York: Sociedade Americana de Tractados, (s.d.), p. 275).(Veja-se: A. Booth, Somente pela Graça,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 45). É impossível falar de qualquer bênção da vida cristã, sem que tenhamos em mente o fato de que estamos unidos a Cristo; aliás, tudo que somos e temos é em Cristo.

            A nossa união com Cristo é tão vital, que a Bíblia emprega diversas figuras para exemplificá-la (Jo 15.5; Ef 2.20-22; 4.15-16; 5.23-32; 1Pe 2.4-5; Ap 19.7-9); todavia, todas as metáforas, mesmo tomadas conjuntamente não expressam a totalidade do significado desta relação vital que temos com o Senhor.

            A.A. Hodge, (1823-1886) observou que, “A designação técnica desta união é ‘mística’ em linguagem teológica, porque ela transcende tanto todas as analogias das relações de parentescos terrestres, na intimidade da sua comunhão, no poder transformador da sua influência e na excelência das suas consequências” (Archibald A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 453).  

[5] Confissão de Westminster,X.2.

[6] Os Cânones de Dort,São Paulo: Editora Cultura Cristã, (s.d.), III-IV.12, p. 37-38.

[7] Os Cânones de Dort,III-IV.16, p. 39.

[8]Hendrikus Berkhof, La Doctrina del Espíritu Santo,Buenos Aires: Junta de Publicaciones de las Iglesias Reformadas; Editorial La Aurora, 1969, p. 78.

[9] Charles Hodge, O Caminho da Vida,p. 280. “O homem pode gabar-se de um grande melhoramento moral, e, todavia, não ter nenhuma experiência da santificação”(L. Berkhof, Teologia Sistemática,p. 536). Veja-se: R.C. Sproul, O Ministério do Espírito Santo,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 93ss.

[10] Veja-se: L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 540.

[11] Veja-se: D. M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 100.

[12] Veja-se: Herman Bavinck, Our Reasonable Faith,p. 474.

[13] Veja-se: Francisco L. Patton, Compendio de Doutrina e a Egreja, p. 96.

[14] J.C. Ryle, Santificação, p. 53. (Veja-se: também, p. 74).

[15]“E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé” (Gl 3.11). 8Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo 9 e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé” (Fp 3.8-9). 4 Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com todos, 5 não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, 6 que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, 7 a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna” (Tt 3.4-7).

[16] Catecismo Maior de Westminster,Pergunta 73. Bavinck, ainda que não de modo convincente, argumenta de forma restritiva quanto à expressão “causa instrumental” atribuída à fé (Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 224-225).

[17]Cf. Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 214.

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