“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (142)

c) Louvando a Deus  (Continuação)

A Reforma, Calvino e o Canto

A enxurrada de hinos protestantes que inundou a Europa juntamente com as primeiras crises da Reforma criou dificuldades incomuns para a Igreja Católica Romana. O canto congregacional estava associado ao protestantismo de maneira tão profunda e os protestantes foram tão eficazes na utilização dos hinos que alguns personagens importantes da Igreja Católica por breve tempo consideraram a proibição da música nas missas. – Mark Noll. [1]

          Lutero (1483-1546), nutria profundo respeito e encanto pelos Salmos. No seu Prefácio ao Livro dos Salmos narra historicamente como os Pais da Igreja amavam esse livro. Demonstra em todo prefácio a sua gratidão a Deus pela redação e preservação dos salmos. Lutero chama o livro de salmos como uma “pequena Bíblia”. Justifica:

Dentro dela, tudo o que consta na Bíblia inteira foi composto de maneira mais bela e resumida, como num delgado livro de cabeceira. Com efeito, tenho a impressão de que o próprio Espírito Santo quis dar-se o trabalho de compilar a Bíblia e o livro de exemplos mais curto de toda a cristandade ou de todos os santos, de sorte que quem não pudesse ler toda a Bíblia ainda assim tivesse, em um pequeno livrinho, quase um resumo completo….[2]

          Para os Reformadores os cânticos tinham um grande apelo didático, objetivando inclusive, a fixação das Escrituras (Dt 31.19).[3] Como a Escritura é a Palavra de Deus, cantá-la, significa relembrar e fixar os seus ensinamentos.[4]

          Calvino não ignorava o poder da música:

Todos sabemos pela própria experiência, quão tremendo é o poder da música para agitar as emoções do ser humano; como corretamente ensina Platão,[5] dizendo que, de uma forma ou outra, a música é da maior importância para moldar o caráter moral do Estado.[6]

          O canto tem também uma relação direta com a nossa experiência religiosa, não estando relacionado simplesmente a momentos de lazer e entretenimento. O cantar além de refletir a nossa fé – por se amparar o seu conteúdo na Palavra –, tem também uma conotação de lembrete e estímulo espiritual, mesmo para aquele que canta; é como o “falar entre vós com salmos”,recomendado por Paulo (Ef 5.19).

           Stott (1921-2011) interpreta:

Sempre que os cristãos se reúnem, gostam muito de cantar tanto a Deus quanto uns aos outros. Às vezes cantamos em antifonia, conforme os judeus faziam no templo e na sinagoga, e como também faziam os cristãos (…). Além disso, alguns dos salmos que cantamos são, na realidade, não a adoração a Deus mas, sim, a mútua exortação.[7]

          Comentando o salmo 13, quando Davi em grande aflição, conclui o salmo dizendo: “Cantarei ao Senhor, porquanto me tem feito muito bem”, Calvino diz: ”Davi, ao apressar-se com prontidão de alma a cantar os benefícios divinos, mesmo antes que os houvesse recebido, coloca o livramento, que aparentemente estava então distante, imediatamente diante de seus olhos”.[8]

          Uma fé que se expressa em cântico se fortalece do seu próprio conteúdo proveniente da Palavra de Deus.

          Calvino também optou pelo cântico de Salmos, entendendo que somente a Palavra de Deus era digna de ser cantada. No Prefácio do Saltério Genebrino, explica-nos os motivos dessa prática:

Os salmos nos incitam a louvar a Deus, orar a Ele, meditar nas Suas obras a fim de que O amemos, temamos, honremos e O glorifiquemos. O que Santo Agostinho diz é totalmente verdade; a pessoa não pode cantar nada mais digno de Deus do que aquilo que recebemos dele.[9]

          Aqui, obviamente, está implícito o princípio da inspiração bíblica: Os Salmos provêm do Espírito Santo.

Maringá, 04 de setembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 206.

[2] M. Lutero, Prefácio ao Livro dos Salmos: In: Martinho Lutero: obras selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 2003, v. 8, p. 34.

[3] Ver: John A. Hughes, Por que Educação Cristã e não Doutrinação Secular?: In: John MacArthur, ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 389.

[4] Vejam-se: João Calvino, As Institutas,III.20.28,31,32; Confissão de Westminster,21.5; Segunda Confissão Helvética,XXIII, § 5.221. Também a Confissão Luterana: Confissão de Augsburgo(1530), XXIV. (Vejam-se: Felipe Fernández-Armesto; Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000,Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 163-164 e Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture,p. 52-53).

[5]Platão cita uma frase do famoso mestre de música ateniense do 5° séc. a.C., Dâmon: “Nunca se abalam os gêneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade” (Platão, A República,7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1993], 401d. p. 133). Platão sustenta que o ritmo e a harmonia devem se adaptar à palavra (Ibidem.,400d. p. 131) e que “a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela perfeita….” (Ibidem.,401d. p. 133).

[6] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 14.7), p. 414. Veja-se por exemplo: Platão, A República,424b e ss. p. 168-170.

[7] John R. W. Stott, A Mensagem de Efésios, São Paulo: ABU Editora, 1986, p. 154.

[8] João Calvino, O Livro dos Salmos, (Sl 13.6), v. 1, p. 269.

[9]In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 6, col. 171-172.

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