Eu lhes tenho dado a tua Palavra (Jo 17.1-26) (124)

d) Unidade não existe em detrimento da verdade (Continuação)

Para os irmãos refugiados em Wezel (Alemanha), que sofriam diversas pressões de luteranos e sobreviviam numa pequena Igreja Reformada, Calvino, em 1554, os consola mostrando que apesar dos grandes problemas pelos quais passava o mundo, Deus lhes havia concedido um lugar onde poderiam adorar a Deus em liberdade. Também os desafia a não abandonarem a Igreja por pequenas divergências nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de preservar a unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos doutrinários.[1]

Portanto, mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino entendia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade, pois, se assim fosse, essa dita paz seria maldita:

Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for necessário mover céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na luta. Devemos, certamente, fazer que a nossa preocupação primária cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer controvérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema, é algo maldito; enquanto as lutas, indispensáveis à defesa do reino de Cristo, são benditas.[2]

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556) escreveu a Calvino – bem como a Melanchthon (1497-1560)[3] e a Bullinger (1504-1575)[4] – convidando-o para uma reunião no Palácio de Lambeth[5] com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.[6] Cranmer tinha em vista também, a realização do Concílio de Trento[7] que estava em andamento, estando preocupado de modo especial com a questão da Ceia do Senhor.

Em 1552, Calvino escreve ao Arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer (1489-1556), que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração cristã: “Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa”.[8]

Calvino, por experiência própria, sabia o quão difícil é doutrinar uma igreja e, quantos anos são necessários para fazer este serviço ainda que de modo imperfeito:

A edificação de uma igreja não é uma tarefa tão fácil que se torne possível fazer com que tudo seja imediata e perfeitamente completado. (…) Hoje sabemos pela própria experiência que o que se requer não é o labor de um ou dois anos para levantar as igrejas caídas a uma condição mais ou menos funcional. Aqueles que têm alcançado diligente progresso por muitos anos devem ainda preocupar-se em corrigir muitas coisas.[9]

O nosso conforto é que é o Espírito mesmo quem edifica a sua Igreja por intermédio da sua Palavra, cabendo a nós a responsabilidade de transmiti-la com fidelidade.

MacArthur discorrendo sobre o abandono da crença da verdade e a preocupação da Igreja na presente época em agir de forma politicamente correta, acrescenta:

Até mesmo os erros grosseiros são agora totalmente toleráveis em alguns ambientes em nome de preservar a paz. Em lugar de manejar bem a Palavra da verdade e proclamá-la como verdadeira, muitas igrejas agora apresentam palestras, dramas, comédias e outras formas de entretenimento motivacionais – enquanto ignoram as grandes doutrinas da fé.[10]

Maringá, 13 de agosto de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]John Calvin, To the Brethren of Wezel, “Letter,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 346, p. 32-34.

[2] J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.33), p. 437.

[3]Melanchthon mesmo sendo luterano, e amigo pessoal de Lutero, desfrutou também de boa amizade com Calvino, mantendo com este ampla correspondência. Nos dizeres de Schaff (1819-1893), Melanchthon “permaneceu como um homem de paz entre dois homens de guerra” (Philip Schaff,History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 260). O seu principal trabalho teológico foi Loci Communes (abril de 1521). Este tratado foi a primeira obra de teologia sistemática protestante do período da Reforma, marcando época portanto, na história da teologia. Nele Melanchthon segue a ordem da Epístola aos Romanos. (Ver: Philip Schaff, History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 7, p. 368-370).

[4]Bullinger foi amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cerca de 150 obras, entre elas,A Segunda Confissão Helvética (1562-1566).

[5]Residência oficial do Arcebispo de Cantuária em Londres.

[6] Cranmer, na carta a Calvino diz: “Como nada mais tende a separar as Igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazmente os une, e fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evangelho, e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho frequentemente desejado, e agora desejo que esses homens instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgamento, constituíssem uma assembleia em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando as suas opiniões, eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja…. Nossos adversários estão agora organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devemos nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles, e purificar e propagar a verdadeira doutrina?” (Thomas Cranmer to Calvin, “Letter,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), 16).

[7]Cranmer era teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

Os jesuítas foram a força motriz do Concílio de Trento, sendo de fato os teólogos do Papa. Como os bispos geralmente não dispunham de grande conhecimento teológico (Vinham da nobreza com cargos comprados ou impostos (Cf. Aliste McGrath, Origens Intelectuais da Reforma, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 23-24), mesmo titulados em Direito Canônico, eles se valiam de teólogos – em geral pertencentes às ordens religiosas –, que os assessoravam, sendo alguns teólogos enviados diretamente pelo Papa. É nessa condição, de modo especial, que destacam-se os jesuítas, entre eles, Diego Lainez (1512-1565), Afonso Salmerón (1515-1585) – estes dois sugeridos por Loyola –, Claude Le Jay (1504-1552), Pedro Canísio (1521-1597) e Otto von Truchsess (1514-1573), que passaram, alguns deles, a desempenhar no Concílio um “papel teológico de primeira linha” (Marc Venard, O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos,São Paulo: Paulus, 1995, p. 332).

[8]Letters of John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1980, p. 132-133.

[9] João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.5), p. 306.

[10]John MacArthur, Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 53.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *