Eu lhes tenho dado a tua Palavra (Jo 17.1-26) (102)

A Igreja cristã desde o início do segundo século é chamada de “Católica” (= Universal).[1] No Credo Apostólico, declaramos: “Creio no Espírito Santo; na santa Igreja, católica; na comunhão dos santos….”.[2]

A Catolicidade da Igreja traz a certeza de que existe apenas uma única Igreja de Cristo. Cristo não está dividido. Ele tem somente um corpo; por isso mesmo, só há uma Igreja de Cristo.

Calvino resume:

Essa companhia é chamada católica, ou universal, porque não há apenas dois ou três na igreja, mas, ao contrário, todos os eleitos de Deus estão de tal forma unidos e ligados em Cristo que, como dependem de uma só Cabeça, também são incorporados num só corpo, entrelaçados como verdadeiros membros. E realmente formam muito bem um só, e assim, com uma mesma fé, esperança e amor, eles vivem do mesmo Espírito de Deus, e são chamados, não somente para [receberem] uma mesma herança, mas também para [desfrutarem] uma mesma comunhão com Deus e com Jesus Cristo.[3]

Quando um grupo ou denominação advoga para si a catolicidade exclusiva, incorre num equívoco de termos e, ao mesmo tempo, está implicitamente dizendo que as outras denominações não fazem parte da Igreja de Cristo; estão fora de sua universalidade. Assim sendo, a designação “Igreja Católica Romana”, é uma impropriedade terminológica que se torna ainda mais visível em sua teologia que, em muitíssimos aspectos, está divorciada da Palavra de Deus (Vejam-se: Ef 1.20-23; 5.25-27).[4]

 O nosso trabalho deve ser feito com total confiança em Deus, sabendo que cabe a Ele converter o coração do homem e, que a rejeição do Evangelho neste momento não implica necessariamente na rejeição absoluta. Esta convicção nos estimula a trabalhar com fervor e alegre perseverança, conforme nos estimula Calvino:

Visto que a conversão de uma pessoa está nas mãos de Deus, quem sabe se aqueles que hoje parecem empedernidos subitamente não sejam transformados pelo poder de Deus em pessoas diferentes? E assim, ao recordarmos que o arrependimento é dom e obra de Deus, acalentaremos esperança mais viva e, encorajados por essa certeza, aceleraremos nosso labor e cuidaremos da instrução dos rebeldes. Devemos encará-lo da seguinte forma: é nosso dever semear e regar e, enquanto o fazemos, devemos esperar que Deus dê o crescimento (1Co 3.6). Portanto, nossos esforços e labores são por si sós infrutíferos; e no entanto, pela graça de Deus, não são infrutíferos.[5]

A nossa responsabilidade: “E nosso dever proclamar a bondade de Deus a toda nação”.[6]

Portanto, preguemos sinceramente, de forma inteligente, com amor e entusiasmo. Quanto aos resultados, estes pertencem a Deus; escapam da nossa esfera de ação e domínio.[7] Aproveitemos também as oportunidades concedidas por Deus: “…. lembremo-nos de que a porta se nos abriu pela mão de Deus a fim de que proclamemos Cristo naquele lugar, e não recusemos aceitar o generoso convite que Deus assim nos oferecer”, orienta-nos Calvino.[8]

Maringá, 20 de julho de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] A palavra “católico” é uma transliteração do grego kaqoliko/j, que é traduzida por “universal”, “geral”. Ela só ocorre uma vez no Novo Testamento e, mesmo assim, na forma adverbial, acompanhada de um advérbio de negação, sendo traduzida por “absolutamente não” (At 4.18).

O termo “católico” dispunha de grande emprego na literatura secular (Ver: Kaqoliko/j: In: William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature,2. ed. Chicago: University Press, 1979, p. 391; J.N.D. Kelly,  Primitivos Credos Cristianos,Salamanca: Secretariado Trinitario, 1980, p. 454). No entanto, o primeiro homem a usar a expressão “católica” para se referir à Igreja, foi Inácio de Antioquia (30-110 AD). Na sua carta à Igreja de Esmirna, escrita por volta do ano 110, diz: “Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja católica” (Inácio de Antioquia, Carta de S. Inácio aos Esmirnenses,8.2. In:Cartas de Santo Inácio de Antioquia,3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984, p. 81). Aqui, Inácio designa de católica a Igreja universal, representada em cada uma das igrejas locais (Ver: J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, Salamanca: Secretariado Trinitario, 1980, p. 454ss.). Posteriormente, por volta do ano 155 AD., encontramos a mesma expressão na Carta Circular da Igreja de Esmirna, redigida por um escritor anônimo, que conta como foi o martírio de Policarpo, bispo de Esmirna. Na introdução ele escreve: “A Igreja de Deus estabelecida em Esmirna à Igreja de Deus estabelecida em Filomélio e às Igrejas de todos os lugares em que são partes da Igreja santa e católica….” (O Martírio de Policarpo: In: Henry Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE., 1967, p. 35). A expressão “católica”, só é encontrada no Credo Apostólico a partir do ano 450 AD. (Cf. Philip Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. revised and enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, v. 2, p. 55).

[2]O Credo dos Apóstolos ou Apostólico, tem a sua origem no Credo Romano Antigo, elaborado no segundo século, tendo algumas declarações doutrinárias acrescentadas no decorrer dos primeiros séculos, chegando à sua forma como temos hoje, por volta do sétimo século.

Tillich (1886-1965), comentando a primeira declaração de fé deste Credo  – “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso Criador do Céu e da Terra”  –, diz que “deveríamos pronunciar essas palavras com grande reverência, porque, por meio dessa confissão, o cristianismo se separou da interpretação dualista da realidade presente no paganismo (…). O primeiro artigo do Credo é a grande muralha que o cristianismo ergueu contra o paganismo. Sem essa separação a cristologia teria inevitavelmente se deteriorado num tipo de gnosticismo no qual o Cristo não seria mais do que um dos poderes cósmicos entre outros, embora, talvez, o maior deles” (Paul Tillich, História do Pensamento Cristão,  São Paulo, São Paulo: ASTE, 1988, p. 34).

O Credo Apostólico era usado na preparação dos catecúmenos, professado durante o batismo, servindo também para a devoção privada dos cristãos. Posteriormente passou a ser recitado com a Oração do Senhor  no culto público. No nono século ele foi sancionado pelo Imperador Carlos Magno para uso na Igreja e, o papa o incorporou à liturgia Romana.  

A Reforma Protestante reconheceu com acerto o  valor desse Credo. Ainda hoje ele continua sendo usado liturgicamente em muitas de nossas igrejas.

Calvino (1509-1564) sumarizou o seu pensamento a respeito do Credo:

“Nele toda a dispensação da nossa salvação é exposta de tal maneira em todas as suas partes que não se omite nem um só ponto. Dou-lhe o nome dos apóstolos, não me preocupando muito com quem terá sido o autor. É grande o número dos que aceitam como certa a atribuição feita pelos antigos da autoria do Símbolo aos apóstolos, quer entendendo que foi escrito por eles em comum, quer pensando que foi uma compilação da sua doutrina, assimilada e filtrada pela reflexão de alguns outros, querendo, contudo, dar-lhe autoridade por meio desse título. Seja como for, não tenho dúvida nenhuma de que, seja qual for a sua origem, desde o início da igreja, e até mesmo desde o tempo dos apóstolos, foi recebido como uma confissão pública e válida da fé cristã. E não é provável que tenha sido composto por algum particular, visto que o tempo todo ele tem tido autoridade inviolável, sempre respeitada, entre os crentes. O que é principal neste caso nos é indubitável, a saber, que toda a história da nossa fé está nele contida em resumo e em excelente ordem, e que não há nada nele que não seja comprovado por diversos testemunhos da Escritura. Tendo conhecimento disso, já não é preciso que nos atormentemos sobre quem é o seu autor, nem que discutamos com outros, a não ser que não achemos suficiente saber que, por este ou por aquele, temos a verdade do Espírito Santo, e queiramos saber, além disso, por qual boca foi declarada ou por qual mão foi escrita” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 2, (II.4), p. 35).

A analogia feita por  Schaff (1819-1893),  resume adequadamente o significado  do Credo Apostólico: “Como a Oração do Senhor é a Oração das orações, o Decálogo a Lei das leis, também o Credo dos Apóstolos é o Credo dos credos” (P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. revised and enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, v. 1, p. 14).

[3]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.4), p. 92.

[4]“O qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais, 21 acima de todo principado, e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro. 22 E pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, 23 a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas” (Ef 1.20-23). 25 Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, 26 para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, 27 para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.25-27).

[5]João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.25), p. 246-247.

[6]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7, (Is 12.5), p. 403.

[7] Vejam-se: João Calvino, As Institutas,II.5.5,7; III.24.2,15.

[8]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios,São Paulo: Edições Paracletos, 1995, (2Co 2.12), p. 52.

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