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“Com que me apresentarei ao Senhor?” (Mq 6.6). - Hermisten Maia

“Com que me apresentarei ao Senhor?” (Mq 6.6).

A indagação que intitula esse texto é, certamente, a grande pergunta com a qual todo ser humano se deparará um dia. O homem foi criado para se relacionar com o Seu Criador. Deus ao criar o homem conferiu-lhe uma identidade própria que o distinguiria de toda a criação. Enquanto os outros seres criados (peixes, aves, animais domésticos, animais selváticos etc.) o foram conforme as suas respectivas espécies, o homem, diferentemente, teve o seu modelo no próprio Deus Criador – “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança….” (Gn 1.26); “e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus….” (Ef 4.24) – sendo distinto, assim, de toda a criação, partilhando com Deus de uma identidade desconhecida por todas as outras criaturas, visto que somente o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus”.

 

Somente o homem pode partilhar de um relacionamento pessoal, voluntário e consciente com Deus. Por isso, quando se trata de encontrar uma companheira para o homem com a qual ele possa se relacionar de forma pessoal – já que não se encontra em todo o resto da criação –, a solução é uma nova criação, tirada da costela de Adão e transformada por Deus em uma auxiliadora idônea, com a qual Adão se completará, passando a haver uma “fusão interpessoal”, “unidade essencial”, constituindo-se os dois uma só carne (Gn 2.20-24; Mc 10.8),[1] unidos por Deus (Mt 19.6; Mc 10.9).[2]

 

Mas se o homem e a mulher se completam física, psíquica e afetivamente, constituindo assim a vida social – o que de fato está longe de ser isso irrelevante –, ambos têm uma matriz metafísica, transcendente: ambos procedem de Deus para viverem com e para Deus.  Por isso, a questão que permanece na tela das atenções do homem, ainda que costumeiramente ele não saiba defini-la, é o seu encontro com Deus.

 

Pela perda da dimensão do eterno, o homem trilha por atalhos que, quando muito, servem como paliativos para as suas angústias, mas, que ao final, aumentam ainda mais a sua dor e desilusão. Assim, o homem procura alento na filosofia, na arte, na filantropia, na religião, na diversão, no consumo, no sexo, no trabalho e nas drogas. Ainda que algumas dessas fugas possam ser úteis intelectual e socialmente, elas, por si só não resolvem a questão fundamental do ser humano: “Com que me apresentarei ao Senhor?” (Mq 6.6).

 

Sem a dimensão metafísica da existência, todo o nosso labor carece de sentido, pois o sentido não é conferido intrinsecamente pelo que pensamos por nós mesmos ou fazemos, mas em Deus, Aquele que confere significado ao nosso real. O homem como uma “síntese de infinito e de finito”[3] carece de um referencial que vá além de si mesmo. Em outras palavras, como ser finito que é, “ele não representa um ponto de integração suficiente para si mesmo”.[4] Sem esse “ponto” o homem  buscará referência apenas em tendências, moda, estatísticas ou no seu “bom senso”; ou seja: carecerá de absolutos. Sem princípios universais não existem absolutos. Sem absolutos, tudo é possível.  Assim, a vida transforma-se em uma “novela das nove”: Tudo é permitido dentro do consenso do produtor, diretor e do grande público…

 

No entanto, Deus existe e o homem foi criado à sua imagem e semelhança. No relato histórico da criação do homem, encontramos o registro inspirado: “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança….” (Gn 1.26). Deus se aconselha consigo mesmo e delibera. Aqui podemos ver a singularidade da criação do homem; em nenhum outro relato encontramos esta forma relacional.

 

Conforme acentua Bavinck (1854-1921):

 

Ao chamar à existência as outras criaturas, nós lemos simplesmente que Deus falou e essa fala de Deus trouxe-as à existência. Mas quando Deus está prestes a criar o homem Ele primeiro conferencia consigo mesmo e decide fazer o homem à Sua imagem e semelhança. Isso indica que especialmente a criação do homem repousa sobre a deliberação, sobre a sabedoria, bondade e onipotência de Deus. (…) O conselho e a decisão de Deus são mais claramente manifestos na criação do homem do que na criação de todas as outras criaturas.[5]

 

Aqui temos o decreto Trinitário que antecede o tempo e que agora se executa historicamente conforme o eternamente planejado.

 

O “Façamos”  de Deus, conforme usado em Gênesis 1.26,[6] indica que o homem foi criado após deliberação ou consulta, como explica Calvino: “Até aqui Deus tem se apresentado simplesmente como comandante; agora, quando ele se aproxima do mais excelente de todas as suas obras, ele entra em consulta”.[7]

 

O fato de Deus ter criado o homem após deliberação, tem dois objetivos na concepção de Calvino (1509-1564): 1) nos ensinar que o próprio Deus se encarregou de fazer algo grande e maravilhoso; 2) dirigir a nossa atenção para a dignidade de nossa natureza.[8] Assim, conclui ele:

 

Verdadeiramente existem muitas coisas nesta natureza corrupta que podem induzir ao desprezo; mas se você corretamente pesa todas as circunstâncias, o homem é, entre outras criaturas, uma certa preeminente espécie da Divina sabedoria, justiça, e bondade, o qual é merecidamente chamado pelos antigos de microcosmos  “um mundo em miniatura”.[9]

 

Davi, contemplando a majestosa criação de Deus, escreveu:  “Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as suas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem” (Sl 139.14).

 

É justamente pelo fato de o homem ter a impressão pessoal de Deus no mais alto grau é que ele necessita voltar-se para Deus. A nossa fome espiritual nada mais é do que o revelar do nosso vazio e a necessidade de que ele seja preenchido com algo que ultrapassa as nossas possibilidades. Daí o vazio ser o tema recorrente da humanidade.[10] Algo nos falta, somos como que um recipiente rachado que não consegue se completar; por isso, de certa forma podemos dizer que  “o  desejo  é a própria essência do homem”.[11] Mas, o trágico é que o que buscamos para nos satisfazer nos escapa, a felicidade que procuramos torna-nos, vezes sem conta, ainda mais frustrados. Aqui está algo desalentador: “Parte da cruel ironia da existência humana parece ser que as coisas que, em nossa opinião, iriam nos fazer felizes, deixam de fazê-lo.”[12]  “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim” (Ec 3.11).

 

“Com que me apresentarei ao Senhor?” (Mq 6.6).

 

Fomos criados para adorar a Deus. A Igreja é vocacionada por Deus para prestar-Lhe culto (1Pe 2.9-10).[13] No culto, mais do que cânticos, orações e ofertas, nós oferecemos a nós mesmos a Deus. Apresentemo-nos ao Senhor como oferta suave, colocando os nossos talentos ao seu serviço em nome de Cristo, o nosso único Mediador. Que Deus nos abençoe.

 

 

Florianópolis, 15/16 de dezembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1]“Deu nome o homem a todos os animais domésticos, às aves dos céus e a todos os animais selváticos; para o homem, todavia, não se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea. Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher e lha trouxe. E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada.  Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Gn 2.20-24).

            “Por isso, deixará o homem a seu pai e mãe e unir-se-á a sua mulher,  e, com sua mulher, serão os dois uma só carne. De modo que já não são dois, mas uma só carne” (Mc 10.7-8).

[2]“…. o que Deus ajuntou não separe o homem” (Mc 10.9).

[3]S.A. Kierkegaard Desespero Humano, Doença Até à Morte, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 31), 1974, p. 337.

[4] F.A. Schaeffer, O Deus que Se Revela, São Paulo: Cultura Cristã,  2002, p. 39-40.

[5] Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984, p. 184.

[6]he&A(an (na’aseh), qal, imperfeito.

[7]John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerdamans Publishing Co., 1996 (Reprinted),  v. 1, p. 91.

[8]Cf. John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, v. 1, p. 92. Cf. João Calvino, As Institutas, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, I.15.3.

[9]John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, v. 1, p. 92. Comentando Gênesis 5.1, Calvino diz que Moisés repetiu o que ele havia dito antes, porque “a excelência e a dignidade desse favor não poderia ser suficientemente celebrada. Foi sempre uma grande coisa, que o principal lugar entre as criaturas foi dado ao homem” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, v. 1, p. 227. Ver: J. Calvino, As Institutas, II.1.1).

[10] Ver: Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em busca da realização espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 7.

[11]B.  Espinosa, Ética, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 17), 1973, IV.18. p. 244.

[12] Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da Realização Espiritual, p. 9. Calvino (1509-1564) comenta que “…. enquanto todos os homens naturalmente desejam e correm após a felicidade, vemos quão quanta determinação se entregam a seus pecados; sim, todos aqueles que se afastam ao máximo da justiça, procurando satisfazer suas imundas concupiscências, se julgam felizes em virtude de alcançarem os desejos de seu coração” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1 (Sl. 1.1), p. 51).

[13] “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia” (1Pe 2.9-10).

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